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Processo nº 169/2017
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão proferido pelo Colectivo do T.J.B. decidiu-se condenar o arguido B (B), com os restantes sinais dos autos, como autor material da prática de 1 crime de “emissão de cheque sem provisão”, p. e p. pelo art. 214°, n.° 2, al. a) e 196°, al. b) do C.P.M., na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 3 anos, e no pagamento de HKD$9.000.000,00 à assistente “C MACAU S.A.” (C澳門股份有限公司); (cfr., fls. 203 a 215 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Do assim decidido recorreu o Ministério Público.

Em sede de conclusões que a final da motivação apresentada produz, considera que a decisão recorrida padece do vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, pedindo, a final, a absolvição do arguido; (cfr., fls. 226 a 235).

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Respondendo, pugna a assistente pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 252 a 264).

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Neste T.S.I., juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer opinando também no sentido da improcedência do recurso; (cfr., fls. 327 a 328-v).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. O Colectivo do T.J.B. deu como provada a seguinte matéria de facto:

“ 1.
A Assistente é uma sociedade comercial que se dedica a instalar, a operar e gerir jogos de fortuna ou azar em casino e outras actividades conexas, tendo outorgado com o Governo da RAEM, em 19 de Dezembro de 2002, um contrato de subconcessão para a Exploração de Jogos de Fortuna ou Azar ou outros jogos em Casino na RAEM.
2.
A Assistente dedica-se também, acessoriamente, ao exercício da actividade de concessão de crédito para jogo ou apostas em jogos de fortuna ou azar em casino da RAEM, ao abrigo do regime legal estabelecido na Lei nº 5/2004, de 14 de Junho.
3.
Foi precisamente no âmbito desta actividade acessória que a ora Assistente celebrou com o arguido B, em 14 de Janeiro de 2012, um contrato de concessão de crédito para jogo, denominado C Macau Limited Credit Application Agreement, por força do qual concedeu ao arguido uma linha de crédito até ao limite máximo de HKD20,000,000.00 (doravante o “Contrato”, oportunamente junto com a Queixa-Crime como Documento 2).
4.
Em 16 de Janeiro de 2012, a pedido do arguido, a linha de crédito foi aumentada para HKD30,000,000.00, mediante a assinatura de um aditamento ao Contrato (doravante o “Aditamento”, oportunamente junto com a Queixa-Crime como Documento 3).

5.
Ao abrigo desse contrato e aditamento, em 15 de Janeiro de 2012, a Assistente mutuou ao arguido o montante de HKD10,000,000.00, em fichas de jogo e, em 16 de Janeiro de 2012, mutuou mais HKD20,000,000.00, igualmente em fichas.
6.
Contra a entrega das fichas, o arguido assinou e devolveu à Assistente três documentos (títulos de crédito que usualmente se designam por “markers”), nos quais se reconhece devedor das quantias neles inscritas, correspondente ao valor das fichas que lhe foram mutuadas, comprometendo-se ainda a reembolsar a Assistente no prazo de 15 dias a contar da respectiva data de emissão e da entrega das fichas (doravante “markers”, oportunamente junto com a Queixa-Crime como Documento 4, 5 e 6).
7.
A esse montante de HKD30,000,000.00, a Assistente descontou a quantia de HKD2,371,600.00, uma vez que o arguido gozava do estatuto “Premium Player” e, nessa qualidade, tinha direito a uma comissão calculada sobre o valor total das apostas efectuadas.
8.
Abatida a quantia supra descrita, o arguido ficou a dever à Assistente a quantia de HKD27,628,400.00, quantia essa que deveria, nos termos do contrato celebrado entre as partes, ter sido reembolsada à Assistente no prazo de 15 dias a contar da data em que as filhas de jogo lhe foram entregues.
9.
Findo o prazo de reembolso, o arguido deve ainda juros calculados sobre o capital em dívida, à taxa anual de 18%, conforme acordado entre as partes.
10.
O arguido realizou diversos pagamentos à Assistente, tendo em vista a liquidação parcial da dívida, a saber:
a) Em 31.01.2012, pagou HKD2,900,000.00;
b) Em 05.06.2012, pagou HKD2,000,000.00;
c) Em 05.02.2013, pagou HKD2,000,000.00;
d) Em 03.07.2013, pagou HKD5,728,400.00;
e) Em 29.01.2014, pagou HKD1,000,000.00;
f) Em 25.04.2014, pagou HKD1,000,000.00;
g) Em 20.05.2014, pagou HKD1,000,000.00;
h) Em 10.07.2014, pagou HKD1,000,000.00;
i) Em 20.08.2014, pagou HKD1,000,000.00;
j) Em 11.11.2014, pagou HKD1,000,000.00.
11.
Feitos os pagamentos parciais, ficou em dívida, a título de capital, o montante de HKD9,000,000.00, que até à presente data se encontra por saldar.
12.
Para garantir a quantia em dívida para com a Assistente, o arguido assinou e entregou a esta o cheque nº 73********, sacado sobre “CITIC Bank International Limited” (doravante “cheque”, oportunamente junto com a Queixa-Crime como Documento 7 e que ora se volta a juntar), o qual a Assistente preencheu com i) a data de 2 de Fevereiro de 2015 e ii) o valor em dívida de HKD9,000,000.00, ao abrigo do pacto de preenchimento iserto na Cláusula 14ª do Contrato.
13.
A assistente apresentou o cheque a pagamento aos balcões do Banco Ultramarino, no próprio dia 2 de Fevereiro de 2015.
14.
No entanto, o cheque veio devolvido sem que houvesse sido pago, com a menção de “account closed” (ou, na língua portuguesa, conta encerrada), de acordo com a certificação feita no próprio cheque e no talão de devolução do mesmo, do Industrial and Commercial Bank of China (Asia) Limited (cfr. Os Documentos 7 e 8, oportunamente juntos com a Queixa- Crime).
15.
O arguido agiu de forma livre, consciente e deliberada, bem sabendo que a sua conduta de encerrar a conta sobre a qual o cheque iria ser sacado, iria impedir que o cheque emitido à ordem da Assistente pudesse por ela ser sacado, provocando dessa forma um prejuízo de valor consideravelmente elevado à Assistente.
Segundo o CRC, o arguido é primário”; (cfr., fls. 206 a 208 e 283 a 287).

Do direito

3. Vem o Ministério Público recorrer do Acórdão do T.J.B. que condenou o arguido B pela prática como autor material de 1 crime de “emissão de cheque sem provisão”, p. e p. pelo art. 214°, n.° 2, al. a) e 196°, al. b) do C.P.M., na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 3 anos, e no pagamento de HKD$9.000.000,00 à assistente “C MACAU S.A.”.

É de opinião que o Tribunal a quo incorreu no vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”.

Porém, e sem prejuízo do muito respeito por opinião em sentido diverso, cremos que o recurso não merece provimento, necessária não sendo uma grande fundamentação para o demonstrar.

Eis o porque deste nosso entendimento.

Repetidamente temos afirmado que o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 10.03.2016, Proc. n.° 95/2016, de 02.06.2016, Proc. n.° 1062/2015 e de 19.01.2017, Proc. n.° 549/2016, podendo-se também sobre o dito vício em questão e seu alcance, ver o recente Ac. do Vdo T.U.I. de 24.03.2017, Proc. n.° 6/2017).

E, no caso dos autos, basta uma mera leitura ao Acórdão recorrido para se constatar que inexiste a assacada “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, pois que o Tribunal a quo emitiu pronúncia sobre “toda a matéria objecto do processo”, elencando, (como se deixou transcrita), a “matéria de facto dada como provada”, consignando que nenhum facto ficou por provar, e expondo, de forma clara, as razões da sua convicção.

Assim, (e, como in casu ocorre, não havendo contestação), evidente é que não incorreu o Colectivo a quo no vício em questão.

Por sua vez, e verificando-se, igualmente, que na decisão recorrida se fez um correcto “enquadramento jurídico-penal” dos factos dados como provados, (decidindo-se, aliás, em harmonia com o sentido de decisões já proferidas por este T.S.I. e que no Acórdão recorrido vem citadas), nenhuma censura nos merece o Acórdão objecto do presente recurso.

Com efeito, provado está que o arguido emitiu um cheque (em branco), nele apondo a sua assinatura, que a assistente o preencheu (quanto à “data” e “montante”) em (total) respeito do “pacto de preenchimento” firmado com o arguido, e que apresentado o cheque ao Banco, não foi o mesmo pago com a menção de “conta encerrada” nele aposta.

Ora, sendo de considerar que a menção de “conta encerrada”, equivale, para efeitos penais, à verificação da “recusa de pagamento por falta de provisão”, (cfr., v.g., o Ac. do S.T.J. de 08.05.1997, in D.R. 138° de 18.06.1997 e os Acs. deste T.S.I. de 27.04.2012, Proc. n.° 825/2011, de 05.07.2012, Proc. n.° 464/2012, de 11.10.2012, Proc. n.° 461/2012 e de 20.06.2013, Proc. n.° 847/2012), e verificados estando também os restantes elementos típicos do art. 214°, n.° 2, al. a) do C.P.M., à vista está a solução; (cfr., ainda, sobre situação idêntica, o Ac. da Rel. de Lisboa de 25.06.1996, Proc. n.° 0000955, onde se considerou que “Ainda que inicialmente o cheque fosse emitido sem data e com função de garantia, perde esta característica e passa a merecer protecção penal, logo que lhe seja aposta a data de emissão em harmonia com o acordado nas relações imediatas entre emitente e tomador e seja apresentado a pagamento na data acordada; verificando-se então prejuízo patrimonial se o pagamento for recusado por falta de provisão, pois frustou-se o direito do portador de receber o montante para cujo pagamento o cheque serviu”).

Não se olvida que suscita também o recorrente a questão do “dolo do arguido”, acentuando-a em face da circunstância de, no caso, em causa estar um “cheque em branco”, cuja data foi posteriormente aposta pela assistente.

Contudo, e para além de nos parecer uma “falsa questão” em face do que provado ficou em relação ao “elemento subjectivo” ou “dolo do arguido” – tendo-se provado que “(…) agiu de forma livre, consciente e deliberada, bem sabendo que a sua conduta de encerrar a conta sobre a qual o cheque iria ser sacado, iria impedir que o cheque emitido à ordem da Assistente pudesse por ela ser sacado, provocando dessa forma um prejuízo de valor consideravelmente elevado à Assistente” – afigura-se-nos de subscrever o que no Parecer neste T.S.I. junto aos autos se considerou: “(…) destinando-se o cheque a pagar o valor de uma dívida do arguido, ainda não saldada, e estando o tomador do cheque autorizado pelo arguido a completar o respectivo preenchimento e apresentá-lo a pagamento, não podia o arguido encerrar a conta – o que equivale a desprovisioná-la, conforme vem sendo entendimento jurisprudencial pacífico – antes de decorrido o prazo legal da apresentação do cheque a pagamento. Face ao exposto, e tendo presente a matéria dada como provada nos pontos 12 a 15 do acórdão, crê-se suficientemente caracterizado o dolo”, mais nos parecendo que a preocupação do Exmo. Recorrente se relaciona com as alterações introduzidas pelo D.L. 319/97, de 19/11 ao D.L. n.° 454/91 de 28/12 que, em Portugal, regula a matéria do crime de “emissão de cheque sem provisão”, e que tem levado a entendimentos no sentido de não se admitir “cheques pós datados”; (cfr., v.g., G. Marques da Silva, in “O novo regime do cheque sem provisão” e A. Taipa de Carvalho in “Crime de emissão de cheque sem provisão”).

Tudo visto, (e considerando-se que as referidas alterações não ocorreram no C.P.M.), resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Sem tributação dada a isenção do Recorrente.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 30 de Março de 2017

(Relator)
José Maria Dias Azedo

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng

(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
Proc. 169/2017 Pág. 14

Proc. 169/2017 Pág. 13