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Processo n.º 19/2017. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorrido: B.
Assunto: Rectificação de erros ou lapsos manifestos. Prazo para o recurso.
Data do Acórdão: 7 de Junho de 2017.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
   A qualificação como manifestamente infundado do requerimento de rectificação de erros materiais, instituto previsto no n.º 1 do artigo 570.º do Código de Processo Civil, não permite desconsiderar a norma do n.º 1 do artigo 592.º do mesmo Código, sendo ainda necessário para tal haver indícios por parte do requerente, de fins não cobertos pela ratio da norma, designadamente, que pretende obstar ao trânsito em julgado da decisão ou que pretende estender o prazo para impugnação da decisão.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório e factos pertinentes
A requereu a providência cautelar de arrolamento, como preliminar de acção de divórcio que iria intentar contra seu cônjuge, B, que foi decretada.
Por despacho de 14 de Junho de 2016, a Ex.ma Juíza declarou a caducidade da providência cautelar, por ter considerado que a requerente não intentou a acção de divórcio no prazo previsto no n.º 2 do artigo 334.º do Código de Processo Civil, por força da alínea a) do n.º 1 do mesmo artigo.
A requerente pediu a rectificação deste despacho com os seguintes fundamentos:
   “A, requerente nos autos acima cotados, notificada do despacho de 14 JUN 2016, a fls. 142 dos autos, vem, muito respeitosamente, requerer, nos termos do art. 570.° do C.P.C., a respectiva RECTIFICAÇÃO, o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
   1. No referido despacho determina-se que a presente providência caducou pois que a respectiva acção principal de divórcio não foi intentada em devido tempo após a notificação do requerido, invocando-se os artigos 330.° e 334.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, ambos do C.P.C.
   2. Salvo o devido respeito, a requerente entende que esta decisão assenta num lapso manifesto, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do art. 570.° do C.P.C.:
«(. .. ) Artigo 570.º (Rectificação de erros materiais)
   1. Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz. (...)» (realce nosso)
   3. Com efeito, de acordo com o despacho de 14 JUN 2016 o Tribunal parece entender que consta a fls. 131 dos autos a notificação à aqui requerente da notificação ao requerido do despacho que decretou o arrolamento e que é, pois, a partir dessa data que se deve contar o prazo para a dedução da acção de divórcio.
   4. Ora, nos termos conjugados dos artigos 330.°, n.º 5, e 334.º, n.º 2, do C.P.C., a requerente deveria ter:
- recebido uma notificação do Tribunal;
- nessa, e através dessa, notificação dever-se-ia ter dado conhecimento à requerente: de que foi já efectuada ao requerido uma notificação específica, consistente em dar conhecimento ao mesmo da decisão judicial que, sem o seu contraditório prévio, havia ordenado o decretamento do arrolamento, isto para que possa agora apresentar, querendo, a respectiva Oposição ou Recurso.
   5. Sucede, contudo, que nem a fls. 131 nem no próprio Ofício da Secretaria do Tribunal, datado de 4 MAI 2016 e que enviou ambas as fls. 130 e 131, se pode apreender ou tomar conhecimento do que quer que tenha sido porventura notificado ao requerido!
   6. É de todo impossível à requerente, com o Ofício remetido em 4 MAI 2016 e as suas fls. 130 e 131, poder saber que o requerido havia já sido notificado do despacho que decretou o arrolamento! Ou que tivesse sido notificado de qualquer outro acto ou conteúdo!
   7. Ou seja, no referido Ofício apenas e tão-somente se junta um "Aviso de recepção/de entrega/de pagamento/de inscrição", alegadamente assinado pelo requerido em data incerta (no local destinado à inscrição da data nada consta), SEM NADA MAIS CONSTAR OU SE REFERIR quanto àquilo que porventura fosse eventualmente recebido/entregue/pago/inscrição relativamente à pessoa do requerido!
   8. Isto é, em lado algum desse Ofício de 4 MAI 2016 se encontra qualquer alusão ou mínima referência a que o requerido tivesse sido aí - nesse dito Aviso de fls. 131 - notificado do despacho de decretamento do presente arrolamento, como a lei manda fazer.
   9. Dizem VIRIATO LIMA e CÂNDIDA PIRES in "Código de Processo Civil de Macau - Anotado e Comentado", Vol. II, pg. 359, em anotação ao n.º 2 do art. 334.° do C.P.C
   «(...) O prazo de 10 dias do n.º 2 (...) conta-se da notificação directa ao requerente da providência de que o requerido foi notificado da decisão que a ordenou, ou de acto de onde aquele deva concluir que tal notificação já foi feita: seja o caso da notificação ao requerente da apresentação, pelo requerido, da oposição (...)» (realces nossos)
   10. Assim sendo, entende a requerente que o despacho de 14 JUN 2016 contém ou, pelo menos, assenta num lapso manifesto, que é o de considerar que a requerente, por força do que consta a fls. 131, foi notificada de que o requerido foi já notificado do despacho de decretamento do arrolamento.
   11. Ora, quer tal lapso manifesto resulta de uma errónea percepção do próprio Tribunal quer resulte de lapso da Secretaria - caso em que caberá aplicar o regime do n.º 6 do art. 111.° do C.P.C. - importa proceder à respectiva correcção, o que se fará através da revogação do despacho de V. Ex.ª de 14 JUN 2016 e a sua substituição por outro que considere que a presente providência cautelar de arrolamento permanece válida, eficaz e em vigor.
   12. Por outro lado ainda, por fim, a requerente informa V. Ex.ª que intentou em 16 JUN 2016 a respectiva acção de divórcio, tendo aí requerido que os presentes autos de arrolamento, nos termos do n.º 3 do art. 328.° do C.P.C., sejam apensados a tais autos de divórcio.
   FACE AO EXPOSTO, a requerente solicita a V. Ex. a a revogação do despacho de V. Ex.a de 14 JUN 2016 e a sua substituição por outro que considere que a presente providência cautelar de arrolamento permanece válida, eficaz e em vigor.”
O requerimento foi indeferido, por despacho de 21 de Julho de 2016, com os seguintes fundamentos:
“Em 14.06.2016, declarou este Tribunal que a presente providência cautelar caducara na medida em que a requerente não intentava a acção principal oportunamente nos termos do art. 334°, nº 1, al.a) e n° 2 do C.P.C.M. (cfr. fls. 142 que aqui se dão como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Notificados da assim decidida, vier a requerente apresentar pedido de rectificação do mencionado despacho, entendendo que se verifica o lapso manifesto do referido despacho.
Alegou, em síntese, que:

*
Nos termos do art° 570° do C.P.C.M.,
“1. Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
2. Em caso de recurso, a rectificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à rectificação.
3. Se nenhuma das partes recorrer, a rectificação pode ter lugar a todo o tempo, cabendo recurso do despacho que a fizer.”
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Salvo o devido respeito, entendo que a decisão em questão não se mostra nenhum lapso na sua fundamentação e clara no seu sentido.
Conforme a fls. 131 e 132 dos autos, a requerente já foi notificada relativo ao recebimento de notificação do requerido, pelo que, o referido despacho deve ser mantido.
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Para concluir, entende-se que a decisão em questão não se verifica lapso algum, salientando que o pedido de rectificação não serve para outro meio de impugnação do mérito.
Assim sendo, julgo improcedente o pedido de rectificação apresentado pela requerente”.
A requerente interpôs recurso do despacho de 14 de Junho de 2016, para o Tribunal de Segunda Instância (TSI), tendo o Ex.mo Relator proferido a seguinte decisão, em 2 de Dezembro de 2016:
“No caso em apreço, se a Requerente da providência cautelar não tivesse requerido a “rectificação” da sentença, o termo do prazo para o recurso da decisão que se declarou a caducidade da providência seria 28/06/2016, tendo em conta que foi notificada da decisão por carta registada datada de 15/06/2016.
É certo que o nº 1 do artº 592º do CPCM prevê que “Se alguma das partes requerer a rectificação, aclaração ou reforma da sentença, nos termos dos artºs 570º e 572º, o prazo para o recurso só começa a correr depois de notificada a decisão proferida sobre o requerimento”.
No entanto, a jurisprudência local tem entendido que a referida norma não se aplica para os casos de pedido de esclarecimento ou de rectificação manifestamente infundados.
Ao nível do Direito Comparado, o STA de Portugal pronunciou-se no acórdão de 16/12/1992 que “não constitui invocação da faculdade dos referidos artºs 667º ou 669º (que correspondem aos artºs 570º e 572º do CPCM) a reclamação contra a sentença em que, sem invocação de quaisquer das circunstâncias previstas nestes preceitos, se sustenta que a sentença decidiu erradamente e se pretende a sua alteração”.
Pois, o nº 1 do artº 592º do CPCM não visa permitir as partes, a pretexto de pedir rectificação de erros materiais ou de esclarecimento, obter prazo adicional para a interposição do recurso.
No caso sub judice, face ao teor acima transcrito, não temos qualquer dúvida em afirmar que o pedido de rectificação da Requerente é manifestamente infundado, visto que o fundamento do pedido consiste em impugnar o mérito da decisão.
Aliás, a Requerente, na parte final do requerimento, em vez de pedir a rectificação dos erros materiais eventualmente existentes, pediu “a revogação do despacho” e “a sua substituição por outro que considere a presente providência cautelar de arrolamento permanece válida, eficaz e em vigor”.
Por outro lado, comparando o teor do pedido de rectificação e o da motivação do recurso, verifica-se que o fundamento para um e outro é algo idêntico.
Face ao expendido, determino a não admissão do recurso, por ser extemporâneo”.
Reclamou a ora recorrente para a conferência do TSI que, por acórdão de 26 de Janeiro de 2017, a indeferiu nos precisos termos do despacho do relator.
Recorre a mesma A para este Tribunal de Última Instância (TUI), alegando que:
- A Juíza titular dos autos de arrolamento nunca considerou que o pedido de rectificação fosse manifestamente infundado ou dilatório, a fim de estender o prazo do recurso;
- A reclamante invocou a existência de um lapso manifesto no mencionado despacho de 14 de Junho de 2016, que foi o de se considerar que a requerente fora notificada de que o requerido fora notificado do despacho que decretou o arrolamento, quando assim não aconteceu;
- Revogando-se o acórdão recorrido deve conhecer-se da questão de fundo.

II - O Direito
1. As questões a apreciar
As questões a apreciar são as suscitadas pela recorrente

2. A questão a decidir
O acórdão recorrido afirma que “a jurisprudência local tem entendido que a referida norma não se aplica para os casos de pedido de esclarecimento ou de rectificação manifestamente infundados”.
Não é claro qual o alcance e âmbito da mencionada expressão (jurisprudência local), sendo certo que este TUI nunca se pronunciou no sentido indicado.
Quanto ao TSI, que se conheça, existe um acórdão, de 4 de Dezembro de 2003, no Processo n.º 252/2003, que entendeu que, se sob a capa de pedido de aclaração de sentença, não se faz um genuíno pedido de aclaração, a tal requerimento não se aplica o disposto no n.º 1 do artigo 592.º do Código de Processo Civil, pelo que ele não interrompe o prazo para interposição de recurso ordinário da sentença.
Ao contrário do que se diz no acórdão recorrido, o acórdão de 16 de Dezembro de 1992, do Supremo Tribunal Administrativo português, Processo n.º 12535 (BMJ 422-406), não é exactamente neste sentido, de que a referida norma não se aplica para os casos de pedido de esclarecimento ou de rectificação manifestamente infundados, antes se tendo sumariado o seguinte, na mencionada publicação, com referência a artigos do Código de Processo Civil de 1961:
I – A aplicação do regime especial do n.º 1 do artigo 686.º do Código de Processo Civil, de diferimento do prazo para recurso se tiver sido pedida a rectificação de erros materiais ou o esclarecimento ou reforma da sentença quanto a custas, ao abrigo dos artigos 667.º ou 669.º do mesmo diploma, não está condicionada ao sentido da decisão proferida sobre tal pedido.
II – Nomeadamente, não está dependente de nesta decisão se concluir ter havido erro de julgamento e não erros materiais.
III – Para que o regime do n.º 1 do artigo 686.º seja aplicável basta que a parte tenha utilizado os meios previstos nos artigos 667.º ou 669.º citados.
IV – Não constitui invocação da faculdade dos referidos artigos 667.º ou 669.º a reclamação contra a sentença em que, sem invocação de quaisquer das circunstâncias previstas nestes preceitos, se sustenta que a sentença decidiu erradamente e se pretende a sua alteração.

3. Rectificação de erros ou lapsos manifestos. Prazo para o recurso
Vejamos. Estava em causa a aplicação do instituto de rectificação de inexactidões da decisão judicial devidas a omissão ou lapso manifesto, previsto no artigo 570.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Em teoria, é fácil distinguir o lapso manifesto, passível de ser rectificado pelo juiz e outros erros, que não cabem no conceito, e que não podem ser objecto de nova pronúncia, pelo juiz. Na prática, nem sempre é tão fácil a distinção.
O indeferimento da rectificação de erros materiais, nos termos do n.º 1 do artigo 570.º do Código de Processo Civil, pode ter como fundamentos dois grandes grupos de situações:
i) Ou o juiz indefere porque considera que, tendo sido invocado um erro material, este não se verifica (indeferimento por pronúncia quanto ao mérito do requerimento);
ii) Ou o juiz indefere porque entende que não foi invocado um erro material, tal como previsto na norma, isto é, erro quanto a custas, lapso manifesto, erro de escrita ou de cálculo (indeferimento sem pronúncia quanto ao mérito do requerimento).
O caso dos autos integra o segundo grupo de situações.
A circunstância de o juiz indeferir a rectificação, por entender que, a haver erro, ele não se insere no conceito de erro material, não pode conduzir à não aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 592.º do Código de Processo Civil, segundo o qual “Se algumas das partes requerer a rectificação, aclaração ou reforma da sentença, nos termos dos artigos 570.º e 572.º, o prazo para o recurso só começa a correr depois de notificada a decisão proferida sobre o requerimento”.
Nem mesmo a consideração de que o pedido de rectificação é manifestamente infundado pode conduzir à não aplicação daquela norma, sob pena de estar permanentemente sobre o recorrente a espada de Dâmocles, isto é, de a tempestividade do recurso ficar completamente dependente do entendimento do juiz do processo ou do tribunal superior de que o pedido de rectificação é manifestamente infundado ou não.
Tenha-se em atenção, por exemplo, que a aplicação do disposto no artigo 637.º do Código de Processo Civil – norma com analogia com o entendimento do acórdão recorrido na situação dos autos – não basta a qualificação de que o requerimento é manifestamente infundado. É ainda necessário que pareça manifesto que a parte tem determinado objectivo ilegal em mente (obstar ao cumprimento do julgado, à baixa do processo ou à sua remessa para o tribunal competente, ou procure obstar ao trânsito em julgado da decisão).
De resto, a ora recorrente invocou um lapso manifesto da decisão judicial, consistindo em se ter considerado que a requerente fora notificada de que o requerido fora notificado do despacho que decretou o arrolamento, quando assim não aconteceu. A circunstância de a requerente pedir a revogação do despacho nada prova contra a ora recorrente, desde que a rectificação do erro envolvesse a revogação do despacho, como seria o caso.
Talvez não fosse um lapso manifesto, para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 570.º do Código de Processo Civil, mas não é possível sufragar-se o entendimento de que se visou “a pretexto de pedir rectificação de erros matérias ou de esclarecimento, obter prazo adicional para interposição de recurso”, por não se vislumbrar, nem indícios dessa intenção, nem interesse da ora recorrente nesse desiderato. Pode, talvez, dizer-se que a ora recorrente pretendeu um atalho para remediar a situação, sem ter de interpor um recurso. Mas não parece razoável punir-se tão desproporcionalmente a ora recorrente, não se conhecendo do recurso.
A qualificação como manifestamente infundado do requerimento de rectificação de erros materiais, instituto previsto no n.º 1 do artigo 570.º do Código de Processo Civil, não permite desconsiderar a norma do n.º 1 do artigo 592.º do mesmo Código, sendo ainda necessário para tal haver indícios por parte do requerente, de fins não cobertos pela ratio da norma, designadamente, que pretende obstar ao trânsito em julgado da decisão ou que pretende estender o prazo para impugnação da decisão.
Impõe-se a revogação do acórdão recorrido, decidindo-se assim, não ser intempestivo o recurso.

4. Não conhecimento da questão de fundo
Não é possível este Tribunal conhecer da questão de fundo em virtude de, no TSI, não se ter passado da apreciação liminar dos pressupostos processuais específicos do recurso.

III – Decisão
Face ao expendido, concede-se provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido para que, com a mesma formação, conheça do objecto de recurso, se mais nenhuma questão a tal obstar.
Sem custas a reclamação no TSI e custas do presente recurso pela parte que suportar as custas do recurso para o TSI.
Macau, 7 de Junho de 2017.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
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Processo n.º 19/2017