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Processo nº 298/2017
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 08 de Junho de 2017

ASSUNTO:
- Competência

SUMÁRIO:
- Tendo a Autora demandado a 2ª Ré, Região Administrativa Especial de Macau, como ex-sócia duma sociedade transmitente – a Sociedade de Fomento Predial Lei Tin, Limitada – sem se dotar de qualquer jus imperii, agindo portanto como um contraente privado, e pedido lhe a restituição dos preços da transmissão dos direitos resultantes da concessão, bem como a indemnização para as benfeitorias realizadas no terreno, em consequência da declaração da nulidade do acto do Senhor Chefe do Executivo de 17/03/2006, pelo qual se autorizou a transmissão da concessão e a celebração dos novos contratos de concessão, a relação material subjacente é uma relação jurídico-privada e não jurídico-administrativa, pelo que o Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base é competente para julgar o caso.
O Relator
Ho Wai Neng


Processo nº 298/2017
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 08 de Junho de 2017
Recorrente: Moon Ocean Ltd. (Autora)
Objecto do Recurso: Despacho que declarou incompetente o Tribunal Judicial de Base e ordenou a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I - Relatório
Por despacho de 06/10/2016, declarou-se a incompetência do Tribunal Judicial de Base para julgar a acção e ordenou-se a remessa dos autos para o Tribunal Administrativo.
Dessa decisão vem recorrer a Autora Moon Ocean Ltd., alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
A. O entendimento subjacente à decisão de declaração de incompetência proferida pelo tribunal a quo é errado, na medida em que assenta:
* Em primeiro lugar, numa errada interpretação do Acórdão do TUI de 22.06.2016, citado na sentença recorrida;
* Em segundo lugar, numa visão ficcionada e errada da realidade fáctico-jurídica;
* Numa errada interpretação do thema decidendum e das normas legais que definem a distribuição de competências entre os tribunais civis e os tribunais administrativos.
Com efeito,
B. Contrariamente ao que se sustenta na sentença recorrida, do referido Acórdão do TUI não resulta que a nulidade dos contratos de concessão tenha de ser declarada judicialmente para que possam extrair-se as consequências legais dessa nulidade;
C. A Administração afirmou expressamente não necessitar de recorrer aos tribunais para extrair justamente as referidas consequências legais da nulidade dos contratos - a saber, a reversão dos direitos resultantes da concessão para as Sociedades Transmitentes;
D. Tal reversão operou-se por efeito do despacho do CE de 8.8.12, e foi levada pela própria Administração à Conservatória do Registo Predial, mediante o averbamento da nulidade da transmissão para a ora Recorrente dos direitos resultantes da concessão por arrendamento dos Lotes, o que determinou o cancelamento da inscrição de tais direitos a favor daquela, voltando os referidos direitos a estar inscritos a favor das Sociedades Transmitentes,
E. De onde resulta que o entendimento subjacente à sentença recorrida - no sentido de a procedência dos pedidos da Recorrente depender de uma declaração judicial de nulidade dos contratos de concessão - assenta numa errada interpretação do referido Acórdão do TUI e da realidade fáctico-jurídica,
F. Uma vez que, por um lado, do Acórdão do TUI resulta o entendimento contrário ao sustentado na sentença recorrida, e, por outro, a realidade fáctico-jurídica revela que já se verificou parte das consequências legais que resultam da nulidade dos contratos de concessão,
G. Sendo que o que a Recorrente pretende no presente pleito é apenas que seja extraída a parte restante dessas consequências, a saber, a restituição do preço que pagou pela transmissão dos direitos resultantes da concessão dos terrenos e a compensação pelas benfeitorias que neles realizou.
Por outro lado,
H. O objecto da presente acção não versa sobre a interpretação, execução ou validade dos contratos de transmissão dos direitos resultantes da concessão, por arrendamento, dos Lotes. O que se discute na presente acção são apenas as consequências legais que devem ser extraídas daquela nulidade, e já não as razões ou fundamentos da mesma.
I. Ou seja, a presente acção não é uma acção sobre contratos administrativos, pelo que o artigo 30.º, n.º 2, 3), (3) da LBOJ não é aplicável à presente acção.
Acresce ainda que
J. O presente litígio não emerge de uma relação jurídico-administrativa, essencialmente por três ordens de razão:
K. Primeiro, porque nenhuma das partes envolvidas no presente litígio gozou, no âmbito da relação entre elas estabelecida ao abrigo dos contratos de concessão, de poderes especiais de autoridade; ou seja, nenhuma das referidas partes actuou, no âmbito dos referidos contratos, investida de jus imperium, até porque todas elas são ou eram pessoas colectivas de direito privado.
L. Segundo, porque os contratos em causa nestes autos têm por objecto (i) a transmissão dos direitos resultantes da concessão, por arrendamento, dos Lotes (i.e., a transmissão dos direitos adquiridos pelas Sociedades Transmitentes ao abrigo dos contratos de concessão por arrendamento celebrados entre essas sociedades e a RAEM) e (ii) a revisão de algumas das cláusulas daqueles contratos de concessão celebrados entre as Sociedades Transmitentes e a RAEM,
M. Pelo que comportam uma natureza mista: na primeira parte do seu objecto, ou seja, a parte relativa à transmissão, entre sociedades de direito privado, dos direitos resultantes da concessão, têm a natureza de contratos de direito privado; na segunda parte desse objecto, i.e., a respeitante à revisão dos termos da concessão, têm, naturalmente, natureza pública,
N. Sendo que, como já se referiu, o presente litígio está apenas relacionado com a cláusula primeira dos contratos em apreço, nada tendo a ver com a parte respeitante à revisão dos termos da concessão, i.e., com a parte do contrato que deve ser qualificada como de natureza público-administrativa.
O. Terceiro, porque a relação jurídica controvertida na presente lide - a saber, as consequências da nulidade dos contratos em causa nos presente autos - é regulada por normas jurídicas de direito privado, concretamente pelo disposto no artigo 282.º do Código Civil.
P. Independentemente da qualificação que se fizer dos contratos em causa nos presentes autos, certo é que a presente acção não tem por objecto um litígio emergente desses contratos.
Q. O presente litígio surgiu apenas, aliás, a jusante da vigência dos contratos em apreço, já depois de (e por causa de) ter sido declarada a nulidade desses contratos,
R. Pelo que, mesmo que se entendesse que a relação estabelecida entre a ora Recorrente e as Sociedades Transmitentes ao abrigo dos referidos contratos era uma relação jurídico-administrativa - o que apenas se admite, sem conceder, a benefício de raciocínio e por cautela de patrocínio -, ainda assim não estaríamos perante um litígio emergente de uma relação jurídico-administrativa, uma vez que a presente acção não resulta ou não versa sobre um litígio emergente de tais contratos.
S. Mas ainda que assim não se entenda, i.e., ainda que se entenda que a presente acção tem por objecto um litígio emergente dos contratos em apreço - o que também se equaciona apenas por cautela de patrocínio -, cumpre realçar que, nos termos da Cláusula Décima Quarta desses contratos, as partes acordaram que "Para efeitos de resolução de qualquer litígio emergente do presente contrato, o foro competente é o Tribunal Judicial de Base da Região Administrativa Especial de Macau",
T. Razão por que o tribunal a quo sempre seria competente para julgar a presente acção.
*
A Região Administrativa Especial de Macau e Sociedade de Turismo e Diversões de Macau responderam à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 2718 e fls. 2722 a 2735 respectivamente dos autos, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos, pugnando pela improcedência do recurso.
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
II - Fundamentação
O presente recurso consiste em saber qual o tribunal competente.
A decisão recorrida entendeu que é competente o Tribunal Administrativo da RAEM, nos termos e fundamentos seguintes:
   “Da excepção dilatória de incompetência deste tribunal:
   Arguiram as Rés Região Administrativa Especial de Macau (doravante identificada apenas como RAEM), Sociedade de Turismo e Diversões de Macau SA (doravante apenas STDM), e Companhia de Investimento Tai Fok Wah Limitada (doravante apenas Tai Fok), nas respectivas contestações, a incompetência deste juízo cível para decidir o mérito da presente acção declarativa de condenação por considerarem, de forma muito resumida, que as questões que nela são colocadas pertencem à jurisdição administrativa.
   Para tanto, as RR argumentam, em uníssono, que sendo o contrato de concessão por arrendamento um contrato administrativo (qualificação que a Autora também aceita) as consequências da sua eventual nulidade caem no âmbito da jurisdição administrativa, sendo irrelevante a competência que decorre da formulação do pedido subsidiário.
   A Autora respondeu a esta matéria da excepção no sentido de que a nulidade dos contratos de concessão já foi declarada, pelo que nesta lide se discutirá apenas as consequências jurídicas dessa nulidade, o que tem natureza civilística - v.g. restituição do preço pago – actuando a RAEM na qualidade de ex-sócia das sociedades transmitentes e não na sua veste de jus imperii
   Cumpre decidir.
   Há muito que se firmou na doutrina e na jurisprudência a noção de que a competência é um pressuposto processual que se afere através da análise da causa de pedir e do pedido tal como foram apresentados pelo Autor na petição inicial.
   Será, pois, nos factos que consubstanciam a causa de pedir e que sustentam a pretensão da Autora que iremos encontrar resposta para a questão suscitada e supra enunciada.
   Na petição inicial a Autora narra os seguintes factos que se reputam relevantes para a determinação da competência do tribunal:
   - desde 15 de Novembro de 1999 que as sociedades Tai Lei Loi (1.ª Ré), San Hung Fat – Sociedade de Fomento Predial, Limitada, San Hou Kong Sociedade de Fomento Predial, Limitada, San Vai Ip Sociedade de Fomento Predial, Limitada e Lei Tin Sociedade de Fomento Predial, Limitada eram titulares dos direitos resultantes das concessões, por arrendamento, respectivamente, dos Lotes 1c, 2, 3, 4 e 5, situados na ilha da Taipa, junto à Avenida Wai Long e Estrada da Ponte Cabrita, descritos na Conservatória do Registo Predial, respectivamente, sob os n.ºs 22993, 22991, 22995, 22990 e 22989 ;
   - em 16 de Fevereiro de 2006, essas sociedades requereram junto da autoridade administrativa competente a transmissão dos direitos resultantes da concessão, por arrendamento, dos aludidos 5 Lotes a favor da Autora;
   - a autoridade administrativa elaborou as minutas dos contratos de concessão para a transmissão dos direitos sobre os 5 Lotes, tendo a Autora e as aludidas sociedades aceitado os termos de tais contratos, por declarações apresentadas em 9 de Março de 2006 e 13 de Março de 2006;
   - em 16 de Março de 2006, a Comissão de Terras emitiu pareceres legais todos em sentido favorável ao deferimento do pedido para a transmissão dos direitos sobre os 5 Lotes e à revisão dos Contratos de Concessão;
   - os pareceres da Comissão de Terras foram homologados por Despachos de Sua Excelência o Chefe do Executivo, datados de 17 de Março de 2006 e publicados no Boletim Oficial da RAEM n.º 14, II Série, de 6 de Abril de 2006;
   - nessa sequência, e de acordo com os contratos de concessão celebrados entre a Autora e as sociedades supra mencionadas, a primeira pagou às segundas um preço total de MOP1.368.000.000,00 (mil trezentos e sessenta e oito milhões de patacas) pela transmissão dos direitos resultantes da concessão, por arrendamento, dos 5 lotes de terreno, tendo registado a seu favor, pela inscrição n.º 13088G, o respectivo direito sobre os Lotes.
   - em 8 de Agosto de 2012, por Despacho de Sua Excelência o Chefe do Executivo, publicado no Boletim Oficial da RAEM n.º 33, II Série, de 15 de Agosto de 2012 foi declarada a nulidade dos Despachos do Chefe do Executivo de 17.3.06, supra aludidos, bem como dos respectivos Contratos de Concessão, tendo sido averbada, junto da Conservatória do Registo Predial, a nulidade dos direitos resultantes da concessão por arrendamento dos Lotes, e, consequentemente, cancelada a sua inscrição a favor da ora Autora, tendo os direitos sobre os Lotes passado a estar novamente registados a favor das aludidas Sociedades Transmitentes.
   - no dia 29 de Maio de 2015, a Autora enviou cartas registadas com aviso de recepção para cada uma das Rés, interpelando-as para a restituição do preço pago pela transmissão dos direitos sobre os Lotes, acrescido dos respectivos juros de mora, valores que até à presente data, não foram, sequer parcialmente, restituídos;
   - para além do preço pago, como os Lotes têm como finalidade de utilização a construção de edifícios destinados a habitação, comércio e serviços, de parques de estacionamento e de zonas verdes, a Autora deu início à execução do plano de aproveitamento previamente acordado, tendo realizado obras nos lotes 1c e 2, e conduzido os necessários estudos e trabalhos prévios, tendo para o efeito celebrado contratos de prestação de serviços vários e de empreitada, bem como tendo pago custos de gestão da referida obra em montante que computou em MOP220.547.979,83 (duzentos e vinte milhões quinhentas e quarenta e sete mil novecentas e setenta e nove patacas e oitenta e três avos).
   - segundo a Autora, as obras realizadas nos Lotes resultaram numa valorização dos mesmos e, dada a natureza dessas obras, é impossível proceder ao seu levantamento.
   Em face dos factos supra expostos, a Autora concluiu que, por aplicação do regime geral dos efeitos da nulidade dos contratos, tal como previsto no artigo 282.º do Código Civil, as Rés se constituíram na obrigação de lhe restituir tudo o que a mesma prestou, designadamente o preço pago pela transmissão dos direitos sobre os Lotes e as benfeitorias que neles efectuaram, tendo pedido, subsidiariamente, que tais valores lhe sejam pagos a título de enriquecimento sem causa.
   O objecto da lide coloca-nos, desde logo, a seguinte questão: terá o tribunal de apreciar a validade dos contratos de concessão supra referidos ou, pelo contrário, o vício de que estão afectados ocorre ipso iure, cabendo ao tribunal competente extrair, apenas, as consequências dessa invalidade? E, na segunda hipótese, concluir-se-á de forma diferente relativamente ao tribunal que é competente para conhecer do mérito desta causa?
   O douto Acórdão do TUI de 22.06.2016 enunciou este problema nos seguintes termos: trata-se de saber se, com a declaração de nulidade dos actos do Chefe do Executivo, de 17 de Março de 2006, que homologaram os Pareceres da Comissão de Terras n.ºs 23 a 27/2006, todos de 16 de Março de 2006, a Administração procedeu também à declaração de nulidade dos contratos de concessão e, no caso positivo, se foi violada a referida norma.
   E deu-lhe resposta, com a argumentação que aqui se transcreve:
   A lei é muito clara: a matéria cuja apreciação reclama a intervenção do tribunal prende-se com a interpretação sobre o conteúdo e a validade das cláusulas contratuais, o que se justifica com a eventual divergência e falta de acordo das duas partes sobre o sentido e validade das mesmas.
   Quanto à invalidade do contrato administrativo, convém distinguir as seguintes situações: o contrato é nulo em consequência da nulidade das suas cláusulas contratuais; o contrato padece de nulidade derivada, porque é nulo o acto administrativo de que tenha dependido a sua celebração, nos termos do n.º 1 do art.º 172.º do CPA.
   Na segunda situação, a nulidade do contrato não tem nada a ver com a interpretação ou a validade das cláusulas contratuais, não estando em causa o sentido ou conteúdo do contrato. A nulidade do contrato determina-se com o mesmo vício do próprio acto administrativo que permite a celebração do contrato.
   Ora, tal como entende o Tribunal recorrido, o regime da arguição das nulidades consagrado no art.º 173.º n.º 1 do CPA, que impõe a invocação em juízo das invalidades, é uma particularidade do regime substantivo das invalidades consagrado no art.º 172.º. No caso sub judice e por acto impugnado, a Administração declara a nulidade dos actos do Chefe do Executivo, através dos quais foram homologados os Pareceres da Comissão de Terras favoráveis à transmissão dos direitos resultantes dos contratos de concessão, por arrendamento, dos lotes a favor da recorrente, bem como à revisão da concessão e às minutas de contratos a eles anexas. Considera a Administração que os actos de homologação foram feitos com base nos procedimentos anteriores com pressupostos e motivos criminosos, concretamente com negociação particular acordada pela intervenção ilícita do ex-Secretário para os Transportes e Obras Públicas, que se mostrava importante e decisiva à proposta vencedora a ganhar, fazendo com que o processo de transmissão de terras também padecesse de vício; assim sendo, da intervenção ilícita resultou necessariamente conclusão que a prática do crime de corrupção passiva viciou inevitavelmente o processo de transmissão subsequente, levando a que o acto final do procedimento também padecesse de vício. E são nulos os actos cujo objecto constitua crime. E a nulidade dos contratos é causada necessariamente pela declaração da nulidade daqueles actos de homologação, resultante da nulidade destes actos.
   O que daí decorre é que a Administração não chegou a expor a sua interpretação sobre as cláusulas contratuais nem se pronunciou sobre a validade das mesmas, limitando-se a declarar nulos os actos de homologação do Chefe do Executivo, no exercício do seu poder vinculado, face ao disposto na al. c) do n.º 2 do art.º 122.º do CPA.
   Quanto à nulidade dos respectivos contratos, é a consequência necessária imposta pela norma legal, pois o n.º 1 do art.º 172.º do CPA estipula que, quando forem nulos os actos administrativos de que haja dependido a sua celebração, também são nulos os contratos administrativos. Pelo expendido, afigura-se-nos não verificado o vício de usurpação de poder imputado pela recorrente, já que o acto administrativo impugnado não fez interpretação das cláusulas contratuais nem declarou a nulidade dos contratos administrativos em causa.
   Da fundamentação exposta retira-se que o mais alto tribunal da RAEM considera que os contratos de concessão celebrados entre a Autora e as sociedades transmitentes são nulos (uma nulidade que foi qualificada como de derivada) mas parece concluir que esse vício não foi ainda declarado pelos tribunais para que, subsequentemente, se possam extrair as necessárias consequências legais.
   A este propósito - da relação que se desenvolve entre um contrato conexo com um acto administrativo anterior, cuja anulação é decretada depois do contrato ter sido celebrado – também Mário Aroso de Almeida acentua que, em princípio, a anulação desse acto repercute-se sobre a declaração formal de vontade mediante a qual a administração se vinculou, exprimindo o seu consentimento, em termos de acarretar a invalidade do contrato, sendo diferente a situação em que ficam colocados os contratos administrativos e os contratos de direito privado que a administração tenha celebrado com base no acto anulado (distinção e regime que equivale ao do artigo 172.º do CPA).
   Neste contexto de facto e de direito, parece-nos incontornável que o tribunal competente para julgar esta causa, para poder extrair quaisquer consequências jurídicas dessa nulidade, nos termos pretendidos pela Autora, terá de a declarar, mesmo que essa nulidade seja a consequência necessária imposta pela norma legal, pois o n.º 1 do art.º 172.º do CPA estipula que, quando forem nulos os actos administrativos de que haja dependido a sua celebração, também são nulos os contratos administrativos.
   O facto de a administração (e até os tribunais) já ter reconhecido que os contratos que consubstanciam a causa de pedir desta acção estão viciados – com o vício consequente que a nossa jurisprudência denominou de nulidade derivada – não dispensa o tribunal competente de declarar essa nulidade para, então, dela poder extrair as consequências legais que se imponham.
   Ora, as partes concordam que os contratos cuja nulidade se pretende verificada/declarada são contratos administrativos (definidos no artigo 165.º do Código de Procedimento Administrativo como sendo “o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa”).
   A propósito do que se deva entender por relação jurídica administrativa, José Eduardo Figueiredo Dias salienta tratar-se de uma relação regulada por normas jurídicas dirigidas a uma entidade pública enquanto tal (enquanto titular de funções públicas), disciplinando a sua actuação em termos específicos através da atribuição de poderes ou deveres especiais; relação essa que reflecte os poderes de autoridade ou as restrições de interesse público da administração ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante esta. Como tal, para estarmos perante uma relação jurídica administrativa pelo menos um dos sujeitos tem de actuar nas vestes de autoridade pública, investido de poderes de “imperium” com vista à realização do interesse público.
   A jurisprudência também é unânime quanto ao facto do contrato de concessão por arrendamento de terrenos urbanos do domínio privado da RAEM, previsto na Lei de Terras, ou seja, o contrato que constitui o objecto desta acção, ser um dos contratos administrativos previstos neste ordenamento jurídico.
   Como é sabido, as acções que tenham por objecto contratos administrativos (interpretação, validade ou execução dos contratos, incluindo a efectivação da responsabilidade civil contratual), são da competência do Tribunal Administrativo, tal como resulta do artigo 30.º, n.º 2, 3) III) da Lei de Bases da Organização Judiciária, sendo absolutamente irrelevante para a definição dessa competência material chamar à colação o regime jurídico a que ficará sujeito o vício que invalida o contrato (se o regime previsto nos artigos 287.º e seguintes do Código Civil, ou, pelo contrário, o regime da invalidade do acto administrativo previsto no CPA). Esse é o regime que o tribunal competente terá de definir e aplicar posteriormente (sendo inequívoco que o tribunal administrativo tem competência material para aplicar as normas civilísticas acabadas de mencionar).
   A propósito da natureza dos contratos da administração a doutrina mais avisada esclarece-nos que se deve reconhecer que todos eles, independentemente de serem contratos administrativos ou contratos de direito privado, envolvem necessariamente o exercício da função administrativa, pelo que a regulação pelo direito administrativo de todos os contratos da administração surge como evidente, e embora essa regulação possa não ser integral, quando as normas de direito privado devam ser aplicadas à actividade da administração, têm de ser teleológica e sistematicamente mediadas pelos princípios e regras de direito administrativo e daí que, ainda que esse contrato fosse integralmente composto por normas oriundas de legislação privada, o regime aplicável a um contrato da administração nunca seria rigorosamente idêntico àquele pelo qual se regeria um contrato civil ou comercial com o mesmo objecto.
   Daí que estejam submetidas à jurisdição dos tribunais administrativos as acções para verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração.
   Ora, é exactamente a natureza civil ou administrativa do contrato - e não dos sujeitos que o celebraram – que vai determinar que o seu conhecimento esteja sujeito à jurisdição comum ou administrativa, pelo que, mesmo que fosse defensável a tese da Autora, o que não se concede – de que o tribunal competente teria de extrair, apenas, as consequências da invalidade do contrato - tendo o contrato de concessão por arrendamento de terrenos urbanos do domínio privado do Território natureza administrativa, só a jurisdição administrativa seria competente para tal desiderato.
   Por tudo o que se deixou exposto, declaro este tribunal incompetente para conhecer a presente causa e, em consequência, nos termos dos artigos 413.º alínea a), 30.º, 33.º, 230.º, n.º 1, a) e n.º 2, e 412.º, n.º 1 e 2 todos do Código de Processo Civil, abstenho-me de conhecer do respectivo mérito e ordeno a sua oportuna remessa para o Tribunal Administrativo.
   Custas do incidente a cargo da Autora, fixando-se em 8 UC a taxa de justiça ao abrigo do artigo 15.º do RCT.
   Notifique.”
Salvo o devido respeito, não podemos sufragar este entendimento.
No caso em apreço, a Autora pediu às Rés (Tai Lei Loi – Sociedade de Fomento Predial, Limitada, Região Administrativa Especial de Macau, Cam – Sociedade do Aeroporto Internacional de Macau SARL, Sociedade de Turismo e Diversões de Macau SA e Companhia de Investimento Tai Fok Wah, Limitada) a restituição dos preços que lhes pagou para a transmissão dos direitos resultantes da concessão, bem como a indemnização para as benfeitorias realizadas no terreno, em consequência da declaração da nulidade do acto do Senhor Chefe do Executivo de 17/03/2006, pelo qual se autorizou a transmissão da concessão e a celebração dos novos contratos de concessão.
Repare-se, a Autora não está a pedir a restituição do prémio da concessão pago à Região Administrativa Especial de Macau, mas sim os preços pagos às Rés para a transmissão dos direitos resultantes da concessão.
A 2ª Ré, Região Administrativa Especial de Macau, é demandada nos presentes autos como ex-sócia duma sociedade transmitente – a Sociedade de Fomento Predial Lei Tin, Limitada – sem se dotar de qualquer jus imperii, agindo portanto como um contraente privado.
A questão principal que se discute nos presentes autos é a de saber se as Rés têm ou não a obrigação de restituir os preços da transmissão que receberam, bem como de indemnizar as alegadas benfeitorias realizadas pela Autora no terreno.
Trata-se duma relação jurídico-privada e não jurídico-administrativa.
Ainda que para decidir a referida questão principal implicaria a apreciação da questão da nulidade dos contratos de concessão, que são contratos administrativos legalmente tipificados (cfr. artº 165º do CPA), tal circunstância não determina a incompetência do tribunal para a questão principal, antes poderá constituir, máxime e simplesmente uma questão prejudicial nos termos do artº 27º do CPCM.
Por outro lado, é consabido que a nulidade é de conhecimento oficioso e pode ser declarada por qualquer tribunal, cuja intervenção é meramente declarativa, limitando-se a comprovar a existência de nulidade, uma vez que a nulidade opera ipso jure1.
Face ao expendido e sem necessidade de mais delongas, o recurso não deixa de se julgar como provido.
*
III – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conceder provimento ao recurso interposto, revogando a decisão recorrida e decidindo que o 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base é competente para a presente acção.
*
Custas pelas 2ª, 4ª e 5ª Rés em ambas as instâncias com taxa de justiça de 4UC, sem prejuízo da isenção subjectiva da 2ª Ré (Região Administrativa Especial de Macau).
Notifique e registe.
*
RAEM, aos 08 de Junho de 2017.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
1 No mesmo sentido, veja-se CÓDIGO CIVIL ANOTADO, Abílio Neto, 17ª edição, Ediforum, anotação do artº 286º, nota nº 7, pág. 203.
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