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Processo n.º 20/2017. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrentes: A e B.
Recorrido: Secretário para os Transportes e Obras Públicas.
Assunto: Programa de concurso público de fornecimento de serviços e o respectivo caderno de encargos. Norma regulamentar. Acto administrativo.
Data da Sessão: 21 de Junho de 2017.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – Os textos que regulam o programa de concurso público de fornecimento de serviços e o respectivo caderno de encargos a estabelecer contratualmente com o vencedor do concurso constituem normas regulamentares, não sendo actos administrativos.
II – No recurso contencioso de acto administrativo o juiz pode conhecer, mesmo por sua iniciativa, incidentalmente, da ilegalidade de um regulamento, com fundamento no princípio da hierarquia das normas.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima



ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A e B interpuseram recurso contencioso de anulação do despacho de 29 de Março de 2016, do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, que aprovou o programa do concurso, caderno de encargos e outras peças procedimentais para o concurso público para a prestação de serviços de “Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau”.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por acórdão de 16 de Fevereiro de 2017, rejeitou o recurso contencioso por erro na forma de processo, por ter entendido que ao pedido formulado cabia o processo de impugnação de normas, por estar em causa a impugnação de normas regulamentares e não de qualquer acto administrativo [artigos 88.º a 93 do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC)], não sendo possível a conversão do processo de recurso contencioso em processo de impugnação de normas.
Inconformadas, interpõem A e B recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando as seguintes questões:
- O acto impugnado é um acto administrativo, pelo que é passível de recurso contencioso;
- Não é correcto afirmar que o meio de impugnar as cláusulas em referência é no recurso do acto que excluiu as recorrentes do concurso porque mesmo anulado este acto as condições restritivas e injustas continuam a existir, pelo que foi violado o princípio da tutela jurisdicional efectiva.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

II – Os factos
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
1. O Chefe do Executivo, autorizou, por despacho de 02/02/2016, exarado na Proposta XXX/XXXX/2016, de 06/01/2016, da Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental, a abertura do concurso público para a prestação de serviços de “Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau”.
2. O Programa do concurso, o Caderno de encargos e outras peças procedimentais relevantes foram aprovados por despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 29/03/2016, exarado na Proposta n.º XXX/XXXX/2016, de 23/03/2016, da mesma Direcção de Serviços, ao abrigo da competência delegada pela Ordem Executiva n.º 113/2014.
3. O anúncio do concurso foi publicado no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau, II Série, n.° 16, de 20/04/2016, sem indicação quanto ao autor do acto que aprova o programa do concurso, o caderno de encargos e outras peças procedimentais relevantes.
4. Na cláusula 6 do Programado concurso é exigido como condição de qualificação dos concorrentes que:
6.1.- Para poderem participar neste concurso público, os concorrentes devem ser sociedades estabelecidas e registadas na RAEM, cuja natureza comercial deve estar relacionada com o tratamento de águas residuais. A sede das sociedades e os principais serviços administrativos devem estar localizados na RAEM, sem prejuízo do disposto na cláusula 6.5. Os concorrentes também pode ser um consócio de sociedades.
6.2.- Os concorrentes devem possuir as seguintes experiências (só é reconhecida a experiência provada com o original ou pública-forma do contrato ou documento comprovativo equivalente apresentado pelo concorrente):
Experiência relacionada com a O&M de instalações de tratamento de águas residuais: dois serviços, pelo menos, relacionados com a O&M de instalações de tratamento de águas residuais, terminados ou em curso, nos últimos 10 anos, contados da publicação do anúncio do concurso. As instalações de tratamento de águas residuais acima mencionadas devem ter adoptado um tratamento secundário e métodos biológicos para a remoção de poluentes em águas residuais, com uma capacidade de tratamento projectada não inferior a 50.000 m3 por dia, tendo cada uma das experiências acima mencionadas sido executada por um período de, pelo menos, 2 anos até à data da publicacão do anúncio do concurso:
6.3.- A experiência mencionada na cláusula 6.2 deve estar em conformidade com qualquer um dos seguintes requisitos:
a) Se os concorrentes forem sociedades, as experiências mencionadas na cláusula 6.2 devem ter sido adquiridas directamente pelos concorrentes; ou
b) Se os concorrentes participarem no concurso sob a forma de consórcio, as experiências mencionadas na cláusula 6.2, devem ter sido adquiridas directamente por uma das sociedades do consórcio que possua, no mínimo, 40% da quota do consórcio.
6.4.- Os concorrentes devem submeter a "Declaração sobre a Qualificação do Concorrente" reconhecida notarialmente. (vide o anexo IV).
6.5.- A entidade que preside ao concurso pode aceitar, também, os concorrentes que satisfaçam os requisitos estipulados nas cláusulas 6.2 a 6.3 no entanto, se lhe for finalmente adjudicada a prestação de serviços de "Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau", os requisitos da cláusula 6.1 devem ser cumpridos até à data da celebração do contrato.
6.6.- Se o respectivo concorrente não conseguir satisfazer os requisitos da cláusula 6.1 até à data da celebração do contrato, a entidade adjudicante tem o direito de cancelar a adjudicação da prestação dos serviços de "Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau", sem prejuízo do disposto na cláusula 2.5 das "III.1. Cláusulas Gerais" do "III Caderno de Encargos" do Processo do Concurso.
5. Em 20/04/2016, A, adquiriu junto da Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental (DSPA) cópia de todo o Processo de concurso.
6. Em 19/05/2016, A requereu ao director da DSPA a consulta do processo de concurso, bem, como fotocópia autenticada do despacho do Chefe do Executivo que aprova o concurso em referência.
Ainda em 19/05/2016, em requerimento imediatamente posterior, dirigido à mesma entidade, veio dizer: “Em tempo, venho solicitar que me seja apenas por ora facultada a indicação das datas dos despachos do Chefe do Executivo que autorizaram a abertura dos concursos públicos serviços de “Operação e Manutenção da Estação do Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau e do Parque Transfronteiriço de Macau e que me seja enviada fotocópia autenticada dos referidos despachos para a morada...”.
8. Em 20/05/2016, A interpôs recurso do acto do Chefe do Executivo de 02/02/2016, exarado na Proposta XXX/XXXX/2016 (que aprovou a abertura do concurso público para a prestação de serviços de “Operação e Manutenção da Estação de Águas Residuais da Península de Macau”), o qual corre termos no Tribunal de Segunda Instância sob o n.º 385/2016, tendo requerido a suspensão de eficácia do mesmo acto (procedimento em apenso sob o n.º 385/2016/A), pedido este que foi indeferido por Acórdão de 30/06/2016, desse Tribunal de Segunda Instância.
9. Em 20/05/2016 a DSPA respondeu, por escrito, a pedidos de esclarecimento de dúvidas relativas à interpretação do processo de concurso, onde se inclui A.
10. E, em 25/05/2016, fez saber através de anúncio publicado no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau, II Série, n.º 21, a páginas 11446, que “a entidade que realiza o processo do concurso já prestou esclarecimentos nos termos do ponto 2.2 do programa do concurso, assim como esclarecimentos complementares correspondentes à necessidade real, integrando-os no processo do concurso” e que “Os esclarecimentos, bem como os esclarecimentos complementares acima referidos, encontram-se disponíveis para consulta durante o horário de expediente na sede da Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental, sita na Estrada de D. Maria II, n.ºs 11 a 11-D, Edifício dos Correios, 10.º andar, Macau.”.
11. Em 30/05/2016, foi enviado, para o escritório do advogado representante da A, o ofício com a referência XXXX/XXX/XXXX/2016, da DSPA, comunicando que a cópia autenticada de documentos solicitada em 19 de Maio de 2016, estava preparada, podendo ser levantada durante o horário de expediente, comunicando ainda, o seguinte:
“No entanto, quanto à requerida consulta do processo do concurso, tendo em conta que as respectivas propostas de realização de concurso público, integrantes do processo do concurso dos dois citados projectos, contêm informações relativas ao orçamento das despesas destinadas aos projectos relevantes, e que essas informações não devem ser reveladas antes da apresentação das propostas pelos concorrentes, sob pena de serem comprometidos o objectivo e afinalidade a atingir com o concurso público, nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 63.º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/99/M, de 11 de Outubro, lamentamos não poder autorizar, neste momento, o requerimento por V. Exa.”.
12. Em 06/06/2016, A, em consórcio com B, entregou uma proposta para admissão ao concurso para a prestação de serviços de “Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau”.
13. Em 08/06/2016, foi enviado à A, o ofício com a referência XXXX/XXX/XXXX/2016, da DSPA, informando que a cópia autenticada de documentos, solicitada em 06/06/2016, podia ser levantada durante o horário de expediente.
14. O acto público de abertura das propostas ao concurso público para a prestação de serviços de "Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau" teve lugar a 22/06/2016.
15. A proposta do consórcio formado pelas A e B, foi admitida ao concurso, tal como as restantes três propostas.
16. Por deliberação da Comissão de Avaliação de Propostas, de 27/06/2016, a proposta apresentada pelo Consórcio formado pelas Recorrentes foi excluída na fase de avaliação por não reunir os requisitos de qualificação exigidos no Programa de concurso.
17. Por despacho do Senhor Chefe do Executivo, de 22/09/2016, foi autorizada a adjudicação dos serviços de Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau ao concorrente C.
18. A Recorrente recorreu contenciosamente do despacho do Senhor Chefe do Executivo acima em referência, que corre termos no TSI sob o Proc. N.º 804/2016.


III – O Direito
1. Questões a apreciar
São fundamentalmente duas as questões suscitadas a decidir.
A primeira a de saber se a matéria objecto de recurso contencioso constitui um acto administrativo ou antes são normas regulamentares.
A segunda questão consiste em apurar se foi violado o princípio da tutela jurisdicional efectiva ao não se conhecer da impugnação dos autos.

2. Actos administrativos e normas regulamentares
No sistema administrativo contencioso em que a Ordem Jurídica de Macau se insere está há muito estabelecido que os preceitos que regulam a tramitação dos concursos públicos de realização de obras públicas, de fornecimento de bens e serviços e que estabelecem as regras de admissão a concurso, bem como as normas do caderno de encargos e outras peças procedimentais a seguir na tramitação dos concursos, são normas jurídicas de carácter regulamentar e não actos administrativos, pelo que se estranha que ainda há quem insista em as tratar como actos administrativos.
A natureza do despacho que aprova tais normas não tem qualquer relevância já que o objecto de impugnação são esses conteúdos que regem o concurso.
No acórdão deste TUI, de 4 de Maio de 2005, no Processo n.º 5/2005, discorremos o seguinte sobre as características da norma jurídica:
«Relativamente à característica da generalidade pode dizer-se que há unanimidade doutrinal quanto à sua definição e que a mesma é um atributo indispensável da norma jurídica.
O geral contrapõe-se ao individual. A generalidade, como característica da norma jurídica, consiste em a norma não se dirigir a destinatários determinados, mas a uma generalidade mais ou menos ampla de pessoas. O preceito poderá ter, ainda, a característica da generalidade, mesmo que se refira a uma só entidade, como quando se refere aos poderes do Presidente da República ou do Chefe do Executivo. Neste caso, o comando será genérico se se referir à generalidade das pessoas que ocuparem o cargo e não visar, em concreto, apenas, as pessoas individualmente determinadas que são os titulares do cargo.1
Já quanto à abstracção, as coisas não são pacíficas. Quanto à sua caracterização há, fundamentalmente, duas concepções.
Se todos concordam que o abstracto se contrapõe ao concreto, para uns “Diz-se abstracto o preceito que disciplina ou regula um número indeterminado de casos, uma categoria mais ou menos ampla de situações, e não casos, situações ou hipóteses determinadas, concreta ou particularmente visadas. Note-se que isto não significa que se não possa tratar de situações já concretizadas ou realizadas”. 2
Para outros, “Quando se fala da abstracção como característica da regra jurídica quer-se normalmente dizer que os factos e as situações previstas pela regra não hão-de estar já verificados; são factos ou situações que de futuro se prevê que surjam”.3
Simplesmente, os que defendem esta última concepção entendem que a abstracção não é característica da norma jurídica. Que esta se basta com a característica da generalidade».
No acórdão deste TUI, de 15 de Junho de 2010, no Processo n.º 22/2010, considerámos, a propósito da noção de acto administrativo:
«O artigo 110.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), dispõe que, para os efeitos do próprio diploma legal em causa, “... consideram-se actos administrativos as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”.
E o artigo 28.º, n.º 1, do CPAC considera que “São actos administrativos contenciosamente recorríveis os que, produzindo efeitos externos, não se encontram sujeitos a impugnação administrativa necessária”.
O acto administrativo constitui uma estatuição autoritária da Administração, visando produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.
“Para que um acto jurídico defina situações jurídicas é, na verdade, condição necessária, embora não suficiente, que ele possua um conteúdo decisório, não se esgotando na emissão de uma declaração de ciência, um juízo de valor ou uma opinião”4. É necessário que “exprimam uma resolução que determine o rumo de acontecimentos ou o sentido de condutas a adoptar”5».
Por outro lado, no acórdão de 30 de Julho de 2015, no Processo n.º 46/2015, qualificámos como norma regulamentar a que regulava a prova escrita de conhecimentos do concurso público para um lugar de técnico superior de saúde.
No sumário, que consta, por exemplo, da página da internet dos Tribunais, relativamente ao acórdão de 12 de Outubro de 2011, no Processo n.º 45/2011, deste TUI, o relator qualificou como norma a Cláusula 13.1, alínea f) do Programa do Concurso, que exigia que os concorrentes ao Concurso Público em causa (Concurso Internacional para Modernização, Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau) apresentassem a lista de quantidades, conjuntamente com os preços unitários usados no cálculo do preço da Proposta, relativa a Investimentos e a Operação e Manutenção.
Os textos que regulam o concurso dos autos e o respectivo caderno de encargos não constituem uma estatuição autoritária da Administração, visando produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta. Antes se aplicam a todos os concorrentes ao concurso público em causa, disciplinando as regras de admissão a concurso, o procedimento a seguir e as cláusulas do contrato a estabelecer com a empresa com a proposta vencedora.
São indiscutivelmente actos normativos de natureza regulamentar, pelo que nada há a censurar ao entendimento do acórdão recorrido.

3. Princípio da tutela jurisdicional efectiva
Entendem as recorrentes que não é correcto afirmar que o meio de impugnar as cláusulas em referência é no recurso do acto que excluiu as recorrentes do concurso porque mesmo anulado este acto as condições restritivas e injustas continuam a existir, pelo que foi violado o princípio da tutela jurisdicional efectiva.
Há aqui uma errada compreensão do sistema de impugnação de actos administrativos e de normas jurídicas.
As recorrentes poderiam ter impugnado o programa de concurso, caderno de encargos e outras peças relevantes. Fizeram-no, mas mal. Deveriam ter utilizado o meio processual previsto no artigo 88.º e seguintes do CPAC (impugnação de normas) e não o do recurso contencioso de actos administrativos (artigos 20.º a 87.º do CPAC). Em certas circunstâncias é possível a correcção do meio processual (mal) utilizado. No caso dos autos o acórdão recorrido considerou não ser possível tal correcção e as recorrentes não atacam no presente recurso esta parte do acórdão.
Mesmo assim, é possível no recurso contencioso do acto de adjudicação do concurso, que já ocorreu e preteriu as recorrentes, eleger como um dos fundamentos a ilegalidade das normas regulamentares em questão. Isto é pacifico e satisfaz integralmente as pretensões das recorrentes, já que, se procedente tal fundamento de recurso contencioso, embora as normas em questão não despareçam da Ordem Jurídica, são fundamento para anular o dito acto de adjudicação.
Como escrevem VIRIATO LIMA e ÁLVARO DANTAS6, em anotação ao artigo 88.º do CPAC, “O meio processual aqui previsto não preclude a possibilidade de o tribunal conhecer incidentalmente da ilegalidade de norma regulamentar num processo a que caiba outro meio processual. Por exemplo, no recurso contencioso, visando a anulação ou a declaração de nulidade de acto administrativo, meio processual previsto nos artigos 20.º e seguintes, pode o recorrente suscitar ou o tribunal conhecer oficiosamente da ilegalidade de norma regulamentar que inquine o acto administrativo, anulando este acto com tal fundamento. A esta se questão se refere o Acórdão do TUI de 18 de Julho de 2007, no Processo n.º 28/2006”.
E no mencionado acórdão, entendeu este TUI que:
«Na verdade, o meio processual utilizado pelo recorrente foi o recurso contencioso de anulação - e bem - já que pediu a nulidade e a anulação de um acto administrativo. É o que decorre do disposto no artigo 20.º do Código de Processo Administrativo Contencioso. Isto, porque é doutrina corrente que é o pedido deduzido pela parte que determina a forma de processo a utilizar.
O meio processual dos artigos 88.º e seguintes do Código de Processo Administrativo Contencioso é outra coisa: visa a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, de norma regulamentar. Ou seja, tem por finalidade expurgar da Ordem Jurídica uma norma regulamentar ilegal.
Não foi isso que foi pedido nos autos, nem foi isso que o Acórdão recorrido decidiu. Este limitou-se a anular um acto administrativo por ter na sua base normas regulamentares ilegais. Mas não declarou a ilegalidade, com força obrigatória geral, de norma regulamentar. Mesmo que a tese do Acórdão recorrido prevalecesse, o Regulamento Administrativo n.º 17/2004 continuaria a vigorar e poderia ser aplicado em outros casos pela Administração ou pelos tribunais. O julgado só obrigaria no caso concreto em apreciação.
O que o Acórdão recorrido fez foi conhecer, a título incidental, da legalidade de um Regulamento que o acto administrativo aplicou. Ora, “a título incidental qualquer tribunal poderá conhecer da legalidade dos regulamentos”7. Mas esta questão nunca foi controvertida. Veja-se, por exemplo, a lição de MARCELLO CAETANO8: “não é possível o recurso directo das disposições regulamentares, que constem de decreto9, mas pode-se recorrer do acto administrativo que as aplique, com fundamento em violação de lei resultante da contradição entre o regulamento e a lei a que deve obedecer”.
E o conhecimento incidental da ilegalidade de um regulamento, oficiosamente, pelo juiz, no recurso contencioso de acto administrativo, também nunca suscitou dúvidas, com fundamento no princípio da hierarquia das normas. F. ALVES CORREIA10 explica, seguindo a lição de AFONSO QUEIRÓ11, que o princípio da hierarquia das normas conduz não apenas à recusa de aplicação pelo tribunal – independentemente de ser ou não requerida - de uma norma regulamentar que contrarie a lei, mas também a desaplicação no caso sub judicio de uma norma regulamentar que viole outra norma regulamentar hierarquicamente superior».
Em conclusão, não está em causa qualquer violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva. De resto, mesmo que não fosse possível suscitar a ilegalidade das normas do concurso no recurso contencioso do acto de adjudicação da empreitada, isso seria inteiramente imputável à ora recorrente, que não soube processualmente impugnar directamente tais normas, pelo que nunca estaria em causa a violação de tal princípio.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pelas recorrentes, com taxa de justiça fixada em 8 UC.
Macau, 21 de Junho de 2017.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa
     1 Cfr. J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1995, Almedina, Coimbra, 8.ª reimpressão, p. 92 e 93, J. OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, uma Perspectiva Luso-Brasileira, 1999, Almedina, Coimbra, 10.ª edição, p. 496 e seg., D. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, 2001, Almedina, Coimbra, Vol. II, p. 154 e 226 e A. MENEZES CORDEIRO, entrada “Norma Jurídica”, Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Verbo, Lisboa/São Paulo, 1986, p. 671 e 672.
     2 J. BAPTISTA MACHADO, obra citada, p. 92. No mesmo sentido, D. FREITAS DO AMARAL, obra e volume citados, p. 231.
     3 J. OLIVEIRA ASCENSÃO, obra citada, p. 499. No mesmo sentido, A. MENEZES CORDEIRO, estudo citado, p. 672 e 673.
     4 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Considerações em torno do conceito de acto administrativo impugnável, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no Centenário do Seu Nascimento, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2006, II Volume, p. 284.
     5 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Considerações em torno do conceito..., p. 286.
     6 VIRIATO LIMA e ÁLVARO DANTAS, Código de Processo Administrativo Contencioso Anotado, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Macau, 2015, p. 279.
     7 SANTOS BOTELHO, Contencioso Administrativo, Coimbra, Almedina, 2.ª ed., 1999, p. 322.
     8 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, 9.ª ed., Tomo II, p. 1350.
     9 Era esse o regime legal ao tempo.
     10 F. ALVES CORREIA, A impugnação jurisdicional de normas administrativas, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 16, p. 18.
     11 AFONSO QUEIRÓ, Teoria dos regulamentos, in Revista de Direito e Estudos Sociais, Janeiro-Março de 1986, Ano I (2.ª Série), n.º 1, p. 30.
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