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Processo n.º 23/2017. Recurso jurisdicional em matéria penal.
Recorrente: D.
Recorridos: E e Ministério Público.
Assunto: Recurso em processo penal para o Tribunal de Última Instância. Interesses económicos. N.º 2 do artigo 390.º do Código de Processo Penal. Apreensão em processo-crime.
Data do Acórdão: 21 de Junho de 2017.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – De acórdãos do Tribunal de Segunda Instância em processo penal, é admissível recurso para o Tribunal de Última Instância de decisão em que estejam em causa interesses económicos, quando a decisão seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do primeiro daqueles tribunais, ou seja, de MOP$500.000,00, por aplicação analógica do n.º 2 do artigo 390.º do Código de Processo Penal.
II – Quantia em dinheiro apreendida à ordem de processo-crime deve ser devolvida ao seu proprietário à data da apreensão se o processo terminou com absolvição de todos os arguidos.
O Relator
Viriato Manuel Pinheiro de Lima


ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
I – Relatório e factos provados
Em 2 de Janeiro de 2012, E e a sua esposa, o seu irmão mais novo e duas pessoas amigas entraram em Macau através das Portas do Cerco, para virem jogar nos casinos.
Na noite do próprio dia, E e F encontraram-se na ala principal do Hotel “G” e o primeiro entregou HKD$2.000.000,00 em numerário a F para trocar em fichas de jogo.
E e F deslocaram-se à Sala VIP e F usou os HKD$2.000.000,00 em numerário na respectiva conta para liquidar uma(s) dívida(s) anterior(es) contraída(s) na Sala VIP (vulgarmente conhecido por devolver marker) por H, e ficaram a aguardar que fosse autorizada a emissão de um outro marker no valor de HKD$3.000.000,00 o que não veio a acontecer.
Em 3 de Janeiro de 2012 E deduziu participação criminal na Polícia Judiciária (PJ). Recebida a participação do ofendido, a PJ instaurou inquérito criminal, e nesse dia, a pedido dos agentes da PJ, uma gerente da Sala VIP de jogo J do Casino I do Hotel G, trocou fichas da sala VIP por numerário no montante de HKD$2.000.000,00, na Sala VIP de jogo J, e entregou as notas aos agentes da PJ, que as apreenderam à ordem dos autos.
Deduzida acusação contra H, onde se alegava que esta era tinha uma conta na mencionada sala VIP e que era a patroa de F, viria a referida arguida H a ser absolvida de um crime de abuso de confiança, previsto e punível pelo artigo 199.º, n.º 4, alínea b), em conjugação com o n.º 1, do Código Penal, por decisão transitada em julgado.
O Tribunal Judicial de Base decidiu, em 10 de Novembro de 2015, devolver o mencionado montante de HKD$2.000.000,00 apreendido a E .
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 16 de Fevereiro de 2017, negou provimento ao recurso interposto por D, que é a proprietária da mencionada Sala VIP de jogo J.
Recorre, agora, D para este Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando as seguintes questões:
- A quantia de HKD$2.000.000,00 foi entregue aos seus Serviços de Contabilidade e a recorrente não sabia nem tinha qualquer meio para saber - nem tal lhe era, aliás, exigível - se esse pagamento feito por um terceiro, o arguido F, por conta das dívidas assumidas pela arguida, H, perante a aqui recorrente, tinha ou não subjacente algum comportamento menos próprio, lícito ou ilícito, de cada um dos arguidos, de ambos ou de quem quer que fosse;
- Em 3 de Janeiro de 2012 a funcionária da recorrente, Sr.a K, trocou fichas - bens físicos inequivocamente pertencentes e da exclusiva titularidade da recorrente - por dinheiro - corporizado em concretas e específicas notas físicas - a fim de entregar nas instalações da PJ. 2000 (duas mil) notas de HKD$1.000,00;
- Assim, as notas físicas que estão nos autos, no montante de HKD$2.000.000,00 (dois milhões de dólares de Hong Kong), proveio da troca de fichas feita em 3 de Janeiro de 2012 e que são da titularidade da recorrente;
- Ficou provado que o pagamento recebido pela recorrente foi devido, legítimo e de boa-fé e a quantia apreendida não foi nem produto nem instrumento de qualquer crime - tendo o arguido sido absolvido.
O assistente E e o Ministério Púbico sustentam a irrecorribilidade do acórdão recorrido, porque entendem não se aplicar o disposto no n.º 2 do artigo 390.º do Código de Processo Penal.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público, na resposta à motivação, pronuncia-se pela improcedência do recurso.
No seu parecer, o Ex.mo Procurador-Adjunto manteve a posição já assumida na resposta à motivação.


II - O Direito
1. As questões a resolver
Importa apreciar as questões suscitadas.

2. Recorribilidade do acórdão recorrido
Relativamente à recorribilidade do acórdão recorrido, este TUI já teve oportunidade de se pronunciar sobre dois casos com semelhanças com o dos autos, em que decidimos pela recorribilidade.
Na verdade, no acórdão de 28 de Julho de 2004, no Processo n.º 18/2004, dissemos:
   «4. No acórdão deste Tribunal, de 17 de Setembro de 2003, Processo n.º 20/2003, foi apreciado um caso de recorribilidade em matéria penal para o TUI, que tem relevância para a presente decisão. Tratava-se de saber qual o regime da recorribilidade das decisões sobre custas, em processo penal. Recordou-se, então que:
   “Em matéria penal, a regra geral é a da recorribilidade das decisões, expressando-se o art. 389.º do Código de Processo Penal da seguinte forma:
   “Artigo 389.º
   (Princípio geral)
É permitido recorrer dos acórdãos, sentenças e despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei”.
O art. 390.º estabelece as excepções a tal princípio geral da recorribilidade das decisões:
“Artigo 390.º
(Decisões que não admitem recurso)
1. Não é admissível recurso:
a) De despachos de mero expediente;
b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;
c) De decisões proferidas em processo sumaríssimo;
d) De acórdãos proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que não ponham termo à causa;
e) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que confirmem decisão de primeira instância;
f) De acórdãos proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções;
g) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a dez anos, mesmo em caso de concurso de infracções;
h) Nos demais casos previstos na lei.
2. O recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil é admissível desde que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido”.
E acrescentou-se:
“Mas o art. 390.º é uma norma delimitadora do alcance da anterior, especificando o n.º 1 quatro casos em que não cabe recurso do TSI para o TUI.
Todos estes casos do n.º 1 do art. 390.º se referem às decisões em matéria penal tomadas pelo TSI (decisões não finais e decisões absolutórias e condenatórias dos arguidos).
O n.º 2 do art. 390.º trata da recorribilidade das decisões relativas à indemnização civil.
E não há outras normas que rejam os demais casos em que não esteja em causa nem matéria penal nem matéria atinente à indemnização civil.
Ou seja, não há norma expressa a prever a recorribilidade ou a irrecorribilidade das decisões relativas a custas, multas (ao arguido, partes civis e simples intervenientes processuais, como testemunhas e peritos) e outras decisões que o TSI possa ter que proferir em processo penal.
Quid juris?
Uma possível solução seria aplicar a estes casos o princípio geral da recorribilidade das decisões tomadas em processo penal.
Mas esta solução não teria em conta que, em matéria penal, o TUI só intervém na apreciação dos crimes mais graves em termos de pena abstractamente aplicável1 e que, no que toca à parte da decisão relativa à indemnização civil, o TUI só conhece das decisões desfavoráveis para o recorrente em valor superior a metade da alçada do TSI, ou seja, a MOP$500.000,00.
   Logo, parece evidente que o conhecimento por parte do TUI de decisões não penais nem relativas à indemnização civil do TSI, designadamente em matéria de custas, multas e outras, não pode ser genérico.
   Pois se, em matéria penal e de indemnização civil, a sua intervenção é, respectivamente, limitada aos crimes mais graves e aos interesses económicos mais valiosos, seria totalmente desacertado admitir o conhecimento dos recursos em outras matérias muito menos importantes e relevantes.
   Mas, então, o TUI nunca pode conhecer de tais questões?
   Uma possível solução seria admitir o conhecimento de tais questões quando fossem colocadas em acumulação com outras de que o TUI pode conhecer, nos termos legais.
    Mas tal solução chocaria o senso comum.
   A que título, por exemplo, é que em acumulação com a apreciação de um crime de homicídio voluntário, o TUI poderia apreciar a discussão de custas no valor de 3 UC e já não o faria se estivesse em causa um valor de 40 UC ou até muito superior - porventura ilegalmente fixado - mas em que não estivesse em apreciação outra questão de que pudesse conhecer, como acontece com o crime de injúria, punível com pena de prisão até 3 meses ?
   Quer dizer, estando em causa, no caso de decisão sobre custas, uma questão económica, não faz sentido atrelar o seu conhecimento às matérias estritamente penais, em que os valores em causa são de outra natureza.
   Mas a ser assim, parece haver maior analogia (art. 9.º do Código Civil) de tais questões económicas (custas, multas), com a questão relativa à indemnização civil, em que também estão em causa valores de ordem económica.
   Ora, estabelecendo a lei que só há recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil desde que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido, é curial só admitir o recurso respeitante à decisão sobre custas tomada pelo TSI, quando a decisão seja desfavorável para o recorrente em valor superior a MOP$500.000,00.2 3”
Afigura-se-nos ser de seguir o mesmo critério na presente questão.
O recurso dos autos impugna a decisão que não declara perdidos a favor da Região relógios Piaget, que a recorrente considera falsos.
Como se diz no despacho do Presidente deste Tribunal atrás mencionado, o acórdão recorrido afecta o direito da marca Piaget, sendo indubitáveis os seus enormes interesses económicos.
Está, portanto, em causa, para a recorrente, uma questão com uma vertente marcadamente económica, independentemente de a decisão, que declara perdidos bens a favor da Região, nos termos do art. 101.º do Código Penal, ter ou não natureza penal.
O interesse económico da recorrente deve considerar-se superior a MOP$500.000,00.
Logo, é de admitir o recurso, por analogia com a situação prevista no n.º 2 do art. 390.º do Código de Processo Penal».
Entendemos ser de manter esta jurisprudência.
Estando em causa a discussão sobre a propriedade de uma quantia de HKD$2.000.000,00, superior a MOP$500.000,00, deve conhecer-se do recurso, o que se decide.

3. Propriedade do dinheiro apreendido
Há que conhecer do mérito da causa.
A circunstância de a recorrente ser terceiro de boa-fé, que recebeu dinheiro para pagar uma dívida de terceiro, não a isenta de ter de devolver dinheiro cuja proveniência resulta da prática de um crime, ao contrário do que alega.
Suponhamos que A assalta uma casa e com o produto do assalto, A paga uma dívida que tem para com B, que, sem saber a proveniência do dinheiro, deposita a quantia na sua conta bancária do banco C.
Como é evidente, o dinheiro depositado de boa-fé por B não está isento da apreensão no banco C, apesar de as notas que serão aprendidas não serem as mesmas que foram roubadas, atenta a proveniência criminosa do dinheiro depositado. É o que resulta do disposto no n.º 1 do artigo 166.º do Código de Processo Penal.4
A questão é que no caso dos autos o processo penal findou, por absolvição da única arguida.
Então, há apurar a quem pertencia o dinheiro, quando se procedeu à sua apreensão.
A quantia apreendida foi levantada da conta bancária da recorrente, por uma sua funcionária, para entregar à PJ, a pedido ou por ordens dos agentes que investigavam um crime participado por E .
Uma quantia semelhante à apreendida fora entregue à recorrente por F para pagar uma dívida de H, que existia para com a recorrente e depositada em conta bancária da recorrente no dia anterior ao da entrega à PJ.
A recorrente é terceira relativamente aos negócios entre E e F e entre este e H.
É certo que, como se disse, dinheiro legitimamente recebido por terceiro se provier da prática de crime pode ser apreendido para ser entregue, oportunamente, ao legítimo proprietário.
Só que a H foi absolvida no processo-crime que lhe foi instaurado e o F não foi acusado.
O acórdão recorrido afirma que “sem dúvida que existiu infracção penal, só que no processo não foram decididos os agentes da infracção e as suas responsabilidades”.
Ora, isto não é rigoroso.
No único processo penal que se conhece, relacionado com o montante apreendido, a única arguida foi absolvida, pelo que não se vislumbra onde esteja a infracção penal.
É provável (face aos factos provados) que a quantia utilizada para pagar a dívida de H para com a ora recorrente fosse do E. Mas então terá este de pedir a quantia a F ou H ou aos dois ou demandá-los se estes não lhe entregarem o dinheiro, se ocorreu incumprimento contratual por parte de F ou de H ou dos dois em face de E. Não é questão que cumpra resolver no processo penal em que a arguida foi absolvida. A recorrente é estranha a tal discussão dado que a quantia apreendida proveio dos seus cofres, sendo que quantia semelhante foi depositada para pagar dívida para com ela.
Donde, a quantia apreendida pertencia à recorrente aquando da apreensão.
É, pois, procedente o recurso.

III – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso e determinam a entrega da quantia apreendida à ora recorrente.
Custas pelo assistente E nos dois recursos, com taxa de justiça fixada em 3 UC.
Macau, 21 de Junho de 2017.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

     1 E não em todos, já que não pode apreciar, por exemplo, as decisões absolutórias do TSI, confirmativas de decisões de primeira instância [art. 390.º, n.º 1, alínea d)], por mais graves que sejam os crimes imputáveis aos arguidos.
     2 O que pode suceder não só em casos de fixação de taxa de justiça em montante superior ao legalmente admitido, como também face a valor elevado dos encargos, como despesas efectuadas, retribuições a peritos, etc.
     3 Parece preferível esta solução a outra que privilegiasse o recurso à alçada do TSI, a que recorre o processo civil (art. 583.º do respectivo Código), sendo, no entanto, certo que face à lei processual civil a recorribilidade das decisões depende não só do critério do valor da acção, como da sucumbência, sendo esta, também, tal como na indemnização civil em processo penal, metade da alçada do tribunal de que se recorre.
     4 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, Lisboa, 2011, 4.ª edição, p. 515.

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