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Processo nº 346/2017
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 22 de Junho de 2017

ASSUNTO:
- Direito de regresso
- Intervenção acessória provocada

SUMÁRIO:
- O direito de regresso não só existe no âmbito das obrigações solidárias, também existe noutras situações, por exemplo, o direito de regresso do comitente contra o comissário (artº 493º do C.C.), o direito de regresso da Seguradora previsto no artº 16º do DL nº 57/94/M, etc.
- Se, face às razões invocadas no requerimento da intervenção acessória provocada, o direito de regresso formalmente existir, é de deferir o chamamento.
O Relator






Processo nº 346/2017
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 22 de Junho de 2017
Recorrente: Sociedade de Importação e Exportação Polytex, Limitada (Ré)
Objecto do Recurso: Despacho que indeferiu o chamamento da RAEM para intervir no processo

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I - Relatório
Por despacho saneador de 09/11/2016, foi indeferida a intervenção provocada da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM).
Dessa decisão vem recorrer a Ré Sociedade de Importação e Exportação Polytex, Limitada, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
1. A intervenção acessória provocada é um mecanismo, previsto nos artigos 272.° e seguintes do CPC, que se destina a permitir a participação num processo de um terceiro que é responsável pelos danos produzidos ao réu demandado pela procedência da acção, isto é, de um terceiro perante o qual o réu possui, na hipótese de procedência da acção, um direito de regresso ou indemnização.
2. Neste quadro, o campo de aplicação da intervenção acessória provocada é delimitado através de um conjunto de requisitos positivos e negativos: ela pressupõe (i) a configuração de um direito de regresso do réu perante um terceiro, (ii) que emerja de uma relação conexa com a relação jurídica controvertida que é objecto da causa principal, e desde que (iii) não seja possível a intervenção desse terceiro como parte principal (cfr. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo Processo Civil, Lisboa, 1997, p , 179).
3. Relativamente ao primeiro requisito, importa, contudo, notar que o conceito de acção de regresso, pressuposto do chamamento para este tipo de intervenção acessória provocada, é diverso do conceito de direito de regresso delineado artigos 490.°, n.º 2, 514.°, n.º e 517.° do Código Civil de Macau, derivando o prejuízo do réu da sua condenação por virtude de pretensão formulada pelo autor.
4. Doutrina e jurisprudência são pacíficas no entendimento de que a acção de regresso a que se refere o artigo 272.°, n.º 1 do CPC envolve o direito de restituição ou de indemnização do réu contra terceiro chamado a intervir pelo montante que venha a ser condenado na hipótese de procedência da acção principal.
5. Quanto ao segundo requisito, a exigida conexão estará assegurada “sempre que o objecto da acção pendente seja prejudicial relativamente à apreciação do direito de regresso” (cfr. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo Processo Civil cit., p. 178).
6. Por fim, a intervenção acessória provocada não é admissível quando o réu possa fazer intervir o terceiro como parte principal (cfr. artigo 272.º, n.º 1, in fine, do CPC).
7. Com efeito, se o réu tem a possibilidade de chamar o obrigado ao processo como parte principal, e, portanto, de constituir com ele um litisconsórcio sucessivo, deve escolher o mecanismo da intervenção principal provocada (cfr. artigo 267.º, n.° 1 do CPC) .
8. Assim, “suponha-se, por exemplo, que existem vários devedores solidários e que só um deles é demandando, o que é admissível porque o litisconsórcio entre eles é voluntário; o devedor demandado pode provocar a intervenção principal dos outros devedores nos termos do artigo 325.º, n.º 1 do CPC [correspondente ao artigo 267.°, n.º 1 do CPC de Macau] pelo que não pode chamá-los a intervir como partes acessórias” (cfr. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo Processo Civil cit., p. 179).
9. O douto despacho recorrido, porém, indeferiu o incidente deduzido pela Recorrente por considerar que não existe qualquer factualidade ou norma que permita concluir pela existência de uma relação de condevedores, de solidariedade, entre a Ré e a RAEM.
10. Deste modo, salvo o devido respeito, que é muito, pelo douto tribunal a quo, afigura-se, porém, que a fundamentação da douta decisão recorrida se adequa antes ao incidente de intervenção principal provocada previsto no artigo 267º do CPC e não ao incidente deduzido pela ora ora Recorrente, o qual tem por referência o artigo 272º e ss. do CPC, destinado aos casos de intervenção acessória provocada.
11. No caso em apreço, estão preenchidos todos os pressupostos que permitem à Ré recorrer ao instituto da intervenção acessória provocada para solicitar a participação neste processo da RAEM.
12. Em primeiro lugar, a Ré poderá invocar um direito de indemnização perante esta entidade na hipótese de vir a ser condenada, no presente processo, a compensar o Autor pela impossibilidade de cumprimento do contrato-promessa.
13. À luz da posição jurídica configurada pela Ré na sua contestação - com base na qual o Tribunal dever apreciar se estão ou não verificados os pressupostos da intervenção de terceiro - existe um direito de indemnização perante a RAEM em caso de procedência da presente acção, que tem como fonte, no caso, a responsabilidade civil por facto ilícito que decorre, no entendimento da Ré, da emissão do Despacho do Chefe do Executivo de 26 de Janeiro de 2016.
14. Em segundo lugar, é manifesto que este direito de indemnização invocado pela Ré emerge de uma relação que é conexa com a relação jurídica controvertida que é objecto desta causa principal.
15. Com efeito, a posição invocada pela Ré é a de que foi a RAEM, ao impedir o aproveitamento da concessão e declarar ilicitamente a cessação da sua vigência, que deu causa à situação de impossibilidade de incumprimento do contrato-promessa que é invocada pelo Autor como causa de pedir da presente acção, pelo que na hipótese, que aqui se admite por mera cautela da patrocínio, de esta acção proceder, a RAEM nunca poderá alegar ser totalmente alheia ao prejuízo que vier a ser assumido pela Ré.
16. A relação que se estabelece entre a RAEM e a Ré, no que respeita à execução do contrato de concessão por arrendamento do Lote “P”, é inegavelmente uma relação jurídica conexa quanto à relação que se estabelece entre a Ré e o Autor, no que respeita à execução do contrato-promessa de compra e venda de uma fracção a construir, pela primeira, naquele Lote.
17. Por fim, verifica-se também o requisito negativo que delimita o campo de aplicação da intervenção acessória provocada: o terceiro cuja interposição é requerida não pode intervir como parte principal no processo (cfr. artigo 272.°, n.º 1, in fine, do CPC de Macau) .
18. Com efeito, como bem o refere a douta decisão recorrida, a responsabilidade que, na posição invocada pelo Autor, impende sobre a Ré por incumprimento do contrato-promessa não é responsabilidade que se estenda, solidariamente, à RAEM, que não é parte nesse contrato nem assume, por força da lei, a responsabilidade pelo seu cumprimento.
19. A RAEM não é, pois, sujeita passiva da relação controvertida objecto da acção, mas sim sujeita passiva de uma relação conexa com ela, justificando-se, portanto, a sua intervenção como parte acessória.
20. Em suma, ressalvada diversa opinião, estão verificados, no caso em apreço, todos os requisitos para que, nos termos do artigo 272.°, n.º 1 do CPC, se proceda ao chamamento da RAEM como interveniente acessório na presente lide.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Fundamentação
A decisão recorrida tem o seguinte teor:
   “...
   Do chamamento da RAEM
   A Ré em sede de contestação vem requerer o chamamento da RAEM, para tanto alega que tem interesse em chamar a RAEM, arrogando-se titular do direito de regresso contra a RAEM, em caso de procedência parcial ou total da presente acção, entendendo que entre a Ré e a RAEM existe uma relação jurídica conexa com a relação jurídica controvertida nos autos.
   Salvo o devido respeito que é muito, a Ré não tem razão.
   O art.º 272º do Código de Processo Civil prevê:
   “1. O réu que tenha acção de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal.
   2. A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento.”
   Mais, o art.º 273º, n.º 2 reza ainda:
   “O juiz, ouvida a parte contrária, defere o chamamento quando, face às razões alegadas, se convença da viabilidade da acção de regresso e da sua conexão com a causa principal.”
   Conforme o preceituado que acima se deixou citado, a admissão do chamamento está sujeita à viabilidade da acção de regresso e a fim de abordar esta viabilidade, precisamos saber se o suposto direito que a Ré alegadamente tem contra a RAEM integra ou não o direito de regresso.
   A Ré fundamentou o seu direito de regresso na acção que a Ré irá propor contra a RAEM de modo que sejam ressarcidos os prejuízos causados pela conduta da RAEM, incluindo o que a Ré possa eventualmente vir a ser condenada nos presentes autos, se no final o período da concessão do terreno em causa não seja renovada ou prorrogada.
   Com efeito, segundo o que veio alegado pela Ré, o direito que eventualmente existe contra a RAEM nunca pode ser o direito de regresso, porquanto o direito de regresso é um verdadeiro direito de compensação concedo ex vi legis ao condevedor que satisfaz o direito do credor. As suas raízes provêm, sem dúvida, do momento constitutivo da obrigação solidária. Isto quer dizer que não basta o direito de ser indemnizado para demonstrar o direito de regresso, é preciso de analisar a relação interna entre os devedores, por outras palavras, e no caso em apreço, importa saber se entre a Ré e a RAEM existe a relação jurídica da natureza de solidariedade perante o promitente-comprador, ora Autor, da fracção autónoma do edifício denominado “Pearl Horizon”. E como é óbvio, conforme a versão de facto trazida pelo Autor, este não quer responsabilizar a RAEM pelo dano causado pelo suposto incumprimento da Ré, também não existe qualquer factualidade ou norma que possa concluir a solidariedade entre a Ré e a RAEM, assim sendo, é manifestamente desprovido do alicerce da tese da Ré quando invoca o direito de regresso, pelo que, não se verifica o pressuposto para ser admitido chamamento requerido.
   Nestes termos, e enquanto não se vislumbra o outro interesse justificável do chamamento da RAEM, o Tribunal não pode deixar de o indeferir.
   Custas deste incidente a cargo da Ré, fixando-se em 3 UCs....”.
Salvo o devido respeito, não podemos sufragar o entendimento da decisão recorrida.
O direito de regresso não só existe no âmbito das obrigações solidárias.
Também existe noutras situações, por exemplo, o direito de regresso do comitente contra o comissário (artº 493º do C.C.), o direito de regresso da Seguradora previsto no artº 16º do DL nº 57/94/M, etc.
Portanto, não pode indeferir a intervenção provocada da RAEM simplesmente com fundamento na inexistência da relação de solidariedade entre a Ré e a chamada RAEM.
Há que averiguar se o direito de regresso formalmente existir em conformidade com o alegado no requerimento da intervenção acessória provocada.
No caso em apreço, a Ré justificou a razão da provocação da intervenção acessória da RAEM, por entender que tem o direito de regresso contra a mesma caso a acção for julgada procedente.
Para o efeito, alegou que a eventual impossibilidade de cumprimento do contrato promessa de compra e venda com os promitentes compradores, caso se se verificar, resulta da actuação ilegal da RAEM, no sentido de ter aprovado a Lei nº 10/2013 que viola a Lei Básica, bem como ter declarado incorrectamente a caducidade da concessão do terreno onde iria construir as fracções autónomas, as quais constituem objecto mediato dos contratos de compra e venda prometidos a celebrar com os promitentes compradores.
Repare-se, a finalidade da intervenção acessória da RAEM visa simplesmente para auxiliar a defesa da Ré, circunscrevendo-se apenas à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada com fundamento do chamamento.
“O que se pretende é evitar que na acção de regresso que, eventualmente, venha a ser posteriormente instaurada, a parte demandada possa questionar o resultado da acção anterior, onde foi proferida a condenação que serve de base à acção de regresso” (Ac. RL, de 8/3/2007, Proc. 10642/06-2, in www.dgsi.net)
É certo que, nos termos do nº 2 do artº 273º do CPCM, o juiz só defere a intervenção acessória provocada quando se convença da viabilidade da acção de regresso e da sua conexão com a causa principal, face às razões invocadas.
Contudo, trata-se simplesmente um juízo liminar, abstracto e formal, que não constitui caso julgado quando à existência ou não do direito de regresso alegado.
Ora, perante a alegação da Ré, ora Recorrente, afigura-se que o alegado direito de regresso formalmente exista, pelo que deve admitir a intervenção acessória provocada da RAEM, caso não existir outras causas impeditivas que a tal obstem.
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III – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conceder provimento ao recurso interposto, revogando a decisão recorrida e determinando a baixa dos autos para o Tribunal a quo decidir de novo nos termos acima consignados.
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Sem custas.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 22 de Junho de 2017.
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Ho Wai Neng
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong




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