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Processo n.º 234/2016 Data do acórdão: 2017-6-22 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– depósito de valores pecuniários fungíveis
– mútuo
– art.º 1132.º do Código Civil
– art.º 1071.º do Código Civil
– valores depositados no promotor de jogos
– propriedade da coisa depositada
– subtracção de fichas de jogos
– titular do direito de queixa
– art.º 105.º, n.º 1, do Código Penal
– crime semipúblico
– art.º 38.º, n.º 1, do Código de Processo Penal
– indicação da qualificação jurídico-penal dos factos denunciados
– concessionário da exploração dos jogos
– Regulamento Administrativo n.º 6/2002
– conceito de funcionário
– art.º 336.º, n.º 2, alínea c), do Código Penal
– peculato
– furto
– eliminação de dados informáticos
– presunção judicial
– art.o 342.º do Código Civil
– meio de prova
– falsificação informática
– art.º 10.º, n.º 1, da Lei n.º 11/2009
– subtracção de documento
– art.º 248.º, n.º 1, do Código Penal
– concurso real efectivo

S U M Á R I O

1. Por comando do art.º 1132.º do Código Civil (CC), ao depósito de valores pecuniários fungíveis, são aplicáveis, na medida do possível, as normas relativas ao contrato de mútuo.
2. Assim sendo, à luz do art.º 1071.º do CC, os valores pecuniários depositados pelos clientes de um clube promotor de jogos na tesouraria deste se tornam propriedade desta entidade depositária pelo facto do depósito.
3. Daí que a conduta da arguida recorrente de subtracção de fichas de jogos da tesouraria deste clube feriu o património deste, e como tal cabia ao empresário explorador deste (e não aos clientes depositantes) exercer o direito de queixa criminal previsto no art.º 105.º, n.º 1, do Código Penal (CP), por factos integradores de crimes semipúblicos.
4. O art.º 38.º, n.º 1, do Código de Processo Penal não exige do titular da queixa a indicação precisa e concreta da qualificação jurídico-penal dos factos denunciados ou participados.
5. No caso, como a declaração de queixa foi feita pela própria pessoa do empresário individual explorador do dito clube, e os factos inicialmente denunciados relativos à eliminação de alguns documentos e dados informáticos de registo de depósitos dos clientes do clube tinham a ver com a conduta de subtracção de fichas de jogos da tesouraria do mesmo clube e como tal constituíam também objecto de investigação no subjacente processo de inquérito penal aberto no Ministério Público, tal declaração de queixa vale para garantir a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal no âmbito desse processo contra a arguida.
6. Sendo a arguida, à data dos factos, trabalhadora da tesouraria do clube dos autos, clube esse que sendo uma promotora de jogos em cooperação com o casino dos autos não pode ser considerado como concessionário da exploração dos jogos de fortuna e azar em Macau (sobre a definição e natureza da actividade da promotora de jogos, veja-se mormente os art.os 2.º, 14.º, n.º 3, 18.º, 23.º, n.º 1, e 24.º, n.º 1 e n.º 5, alínea 1), do Regulamento Administrativo n.º 6/2002), a situação laboral da arguida não pôde ser equiparada à situação de “funcionário” na acepção definida no art.º 336.º, n.º 2, alínea c), do CP. Portanto, a conduta de peculato por que vinha ela condenada em primeira instância terá que ser convolada para a conduta de furto.
7. Tendo a conduta de eliminação de dados informáticos sido praticada pela arguida depois (e não antes) da conduta de subtracção de fichas de jogos da tesouraria do clube, não se pode considerar que a eliminação de dados informáticos foi praticada para obter enriquecimento ilegítimo. E servindo os dados informáticos para registar os depósitos de valores pecuniários e a sua movimentação ocorridos na tesouraria do clube, os mesmos dados são naturalmente (por presunção judicial, permitada pelos art.os 342.º e 344.º do CC) susceptíveis de servir como meio de prova. Assim sendo, a destrução dolosa, pela arguida, dos dados informáticos de registo de depósitos deve ser punida a nível do tipo-de-ilícito de falsificação informática do art.º 10.º, n.º 1, da Lei n.º 11/2009, de 6 de Julho.
8. Tutelando o tipo-de-ilícito de subtracção de documento do art.º 248.º, n.º 1, do CP e o de furto e o de falsificação informática bens jurídicos distintos (para o constatar, basta atender à redacção das respectivas normas incriminatórias), há concurso real efectivo entre esses três tipos legais de crime.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 234/2016
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguida): A



ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 159 a 164v do Processo Comum Colectivo n.° CR1-15-0121-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), que a condenou como autora material, na forma consumada, de cinco crimes de subtracção de documento, p. e p. pelo art.º 248.º, n.º 1, do Código Penal (CP), na pena de sete meses de prisão por cada, de cinco crimes de peculato, p. e p. pelos art.os 340.º, n.º 1, e 336.º, n.º 2, alínea c), do CP, na pena de um ano e seis meses de prisão por cada, de dois crimes de burla informática, p. e p. pelo art.º 11.º, n.º 1, alínea 1), da Lei n.º 11/2009, de 6 de Julho, na pena de cinco meses de prisão por cada, e de três crimes de burla informática de valor elevado, p. e p. pelo art.º 11.º, n.º 1, alínea 1), e n.º 3, alínea 1), da mesma Lei, na pena de um ano e três meses de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de quatro anos e três meses de prisão, veio a arguida desse processo chamada A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), tendo exposto as seguintes questões e pretensões na sua motivação de recurso apresentada a fls. 179 a 186v dos presentes autos correspondentes:
– a própria recorrente, sendo trabalhadora de uma entidade promotora de jogos à luz do Regulamento Administrativo n.º 6/2002, não pode ser considerada “funcionária” para os efeitos do art.º 336.º, n.º 2, alínea c), do CP, pelo que a ela não é aplicável o tipo-de-ilícito de peculato do art.º 340.º, n.º 1, do CP, de maneira que os crimes de peculato por que vinha condenada em primeira instância deveriam ser convolados para dois crimes de furto e três crimes de furto em valor elevado, respectivamente p. e p. pelos art.os 197.º, n.º 1, e 198.º, n.º 1, alínea a), do CP;
– entretanto, quanto aos dois referidos crimes de furto simples, subsistiria a questão de queixa dos mesmos, porquanto ainda que tenha sido a pessoa representante da entidade promotora de jogos em questão quem exerceu o direito de queixa nos autos, os verdadeiros ofendidos desses dois crimes foram dois clientes dessa entidade promotora de jogos, os quais, porém, não chegaram a exercer o direito de queixa, pelo que o Ministério Público não teria legitimidade para exercer a acção penal por esses dois crimes contra a recorrente, devendo os autos ser arquivados nesta parte;
– a propósito dos crimes semipúblicos de subtracção de documento e de burla informática dos quais é já ofendida tal entidade promotora de jogos, não se deveria considerar ter havido o exercício, por esta, do direito de queixa, visto que essa entidade só delegou poderes na sua empregadora para deduzir queixa dos casos de furto ou de abuso de confiança, e não também dos casos de subtracção de documento e de burla informática. Portanto, não poderia haver acção penal contra a recorrente por crimes de subtracção de documento e de burla informática, ao que acresce a consideração de que os poderes especiais de que se fala no art.º 38.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP) deveriam constar formalmente – o que não se verificou no caso concreto dos autos – de documento autêntico ou autenticado nos termos do art.º 128.º do Código do Notariado. Em suma, os crimes de substracção e de burla informática deveriam ser objecto de arquivamento;
– mesmo que assim não se entendesse, sempre se diria que a recorrente agiu com dolo único de subtracção de fichas de jogos na gaveta, com intuito de se apropriar delas;
– e ainda que não se entendesse assim, sempre se diria que não haveria concurso real efectivo entre o tipo-de-ilícito de furto (incluindo o de furto em valor elevado) e o de burla informática (incluindo o de burla informática em valor elevado), sob pena de ofensa ao princípio de ne bis in idem, já que, mormente, o âmbito de tutela do bem jurídico oferecido pelo tipo legal de furto seria equiparável ao oferecido pelo tipo legal de burla informática, sendo certo que a conduta de eliminação de dados informáticos praticada pela recorrente deve ser considerada como um acto posterior, não punível, da conduta de subtracção de fichas de jogos;
– nem haveria concurso real efectivo entre o tipo legal de furto e o de subtracção de documento, porque a subtracção de documento deveria ser considerada como um acto preparatório ou necessário à prática do furto, em serviço do furto, e como o âmbito de tutela do bem jurídico oferecido pelo tipo legal de furto já bastaria para tutelar o bem jurídico em causa no tipo legal de subtracção de documento, não se deveria punir autonomamente a conduta de subtracção de documento;
– em conclusão, a recorrente só deveria ser punida pela prática de dois crimes de furto simples e de três crimes de furto em valor elevado;
– tendo a recorrente depositado à ordem dos autos, e antes da realização da audiência de julgamento em primeira instância, 240 mil dólares de Hong Kong destinados à reparação de todos os danos sofridos pela parte ofendida, para além de ter confessado os factos a si imputados, a sua pena referente ao tipo legal de furto deveria ser especialmente atenuada sob a égide do art.º 201.º, n.º 1, do CP;
– e fosse como fosse, e na hipótese de ser errada a tese de qualificação jurídico-penal dos factos provados sustentada pela própria recorrente, ela mereceria também a atenuação especial da pena, nos termos gerais do art.º 66.º do CP (atenuação especial essa que não chegou a ser referida ou decidida no texto do acórdão recorrido), dos crimes por que vinha condenada em primeira instância, atentos o depósito acima referido, a confissão dos factos, o sincero arrependimento dos factos demonstrado nesse depósito e na confissão, a falta de antecedentes criminais, e a sua boa conduta posterior, devendo, pois, ser revista a pena, e substituída por pena mais leve;
– e se procedesse qualquer dos pontos acima referidos, e vindo a recorrente a ser punida com pena de prisão não superior a três anos de prisão, deveria ser suspensa a execução da pena de prisão nos termos do art.º 48.º do CP.
Ao recurso, respondeu o Digno Procurador-Adjunto junto do TJB a fls. 188 a 196v dos autos no sentido essencial de procedência do recurso na parte referente ao crime de peculato, sendo de manter a verificação dos crimes de burla informática e de subtracção de documento, para além de pugnar pela condenação da recorrente como autora material de cinco crimes consumados de falsificação informática do art.º 10.º, n.º 1, da Lei n.º 11/2009.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 204 a 207v, opinando que:
– deveriam os cinco crimes de peculato convolados para dois crimes de furto simples e três crimes de furto em valor elevado;
– os cinco crimes de burla informática (três dos quais em valor elevado) deveriam ser convolados para cinco crimes de falsificação informática, visto que a conduta de eliminação de dados informáticos praticada pela recorrente o foi para evitar que a conduta já consumada de subtracção de fichas de jogos viesse a ser descoberta, e não o foi para conseguir subtrair as fichas de jogos;
– a verdadeira ofendida no caso concreto dos autos foi a entidade promotora de jogos em causa, e não os dois clientes desta referidos na motivação do recurso, porque as fichas de jogos foram depositadas por esses dois nessa promotora de jogos, e após descoberta a subtracção das fichas, essa promotora já repôs os saldos dos depósitos desses clientes;
– não há vício de forma nem de fundo na declaração de queixa constante dos autos, não sendo necessário mencionar na declaração de queixa a qualificação jurídico-penal concreta dos factos denunciados, mas sim apenas esses factos objecto de denúncia criminal;
– há concurso real efectivo entre os crimes de subtracção de documento, furto e falsificação informática;
– no caso de convolação dos crimes de peculato para crimes de furto, há lugar a atenuação especial da pena dos furtos nos termos do art.º 201.º, n.º 1, do CP;
– mas já não se pode atenuar especialmente a pena dos crimes de subtracção de documento e falsificação informática;
– em suma, deve ser a recorrente condenada como autora material de cinco crimes de subtracção de documento, dois crimes de furto simples, três crimes de furto em valor elevado e cinco crimes de falsificação informática, com atenuação especial da pena dos crimes respeitantes a furto;
Feito o exame preliminar, foi notificada a recorrente da eventual convolação dos crimes de burla informática para os crimes de falsificação informática, veio a mesma pronunciar-se a fls. 210 a 211 no sentido de se opor a essa convolação, por entender ela não haver factos provados a sustentar a verificação do tipo-de-ilícito subjectivo da falsificação informática.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
– a fundamentação fáctica e jurídica do acórdão recorrido encontra-se escrita a fls. 159 a 164v dos autos, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
– a fl. 97 dos autos é uma declaração dactilografada, com assinatura, reconhecida presencialmente em Cartório Notarial, do empresário individual B como entidade exploradora do “C Club” (C會), da qual consta que esse assinante declara que a propósito da matéria de processo penal aberto (Inquérito penal n.º 7931/2014 do Ministério Público) por causa do caso de furto/abuso de confiança ocorrido no “C Club” do Casino D, exerce o direito de queixa segundo o disposto nos art.os 105 a 107.º do CP, para fazer apurar a responsabilidade criminal da pessoa agente, e delega poderes na empregada Epara receber as notificações da entidade judiciária e para retirar a queixa;
– os factos inicialmente denunciados pela empregada Edo dito Clube à Polícia Judiciária abrangiam também os factos relativos à eliminação, por acção da arguida, dos documentos e dados informáticos pertencentes à tesouraria do próprio Clube alusivos ao registo dos depósitos dos clientes do Clube, e como tal constituíam objecto de investigação no subjacente Inquérito penal aberto sob o n.º 7931/2014 no Ministério Público (cfr. nomeadamente o teor de fls. 2 a 2v dos autos).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Há que ver primeiro a questão de queixa criminal, independentemente da questão da qualificação jurídico-penal dos factos.
A recorrente imputa vícios formal e substancial à declaração de queixa escrita de fl. 97 dos autos.
Contudo, do teor dessa declaração, sabe-se, a montante, que a queixa foi exercida pessoalmente pelo empresário individual B, como entidade exploradora do Clube chamado “C Club”, e não pela sua empregadora Ereferida nessa declaração, e, a jusante, que essa queixa foi exercida por esse empresário individual a propósito da matéria de processo penal aberto (Inquérito penal n.º 7931/2014 do Ministério Público) por causa do caso de furto/abuso de confiança ocorrido no “C Club” do Casino D.
E da matéria de facto dada por provada em primeira instância, é de considerar que aquele empresário explorador do “C Club” é o único ofendido nos autos, e não são ofendidos os clientes deste Clube que inicialmente fizeram depósito aí de valores pecuniários.
É que por comando do art.º 1132.º do Código Civil (CC), a esse tipo de depósitos de valores pecuniários, sendo estes coisas fungíveis, são aplicáveis, na medida do possível, as normas relativas ao contrato de mútuo.
Assim sendo, à luz do art.º 1071.º do CC, é de considerar que os valores pecuniários depositados pelos clientes do “C Club” na tesouraria deste se tornam propriedade desta entidade depositária pelo facto do depósito.
Daí que a conduta de subtracção de fichas de jogos na gaveta da tesouraria deste Clube feriu o património desta entidade, e como tal cabia àquele empresário explorador do Clube (e não aos clientes depositantes) exercer o direito de queixa criminal previsto no art.º 105.º, n.º 1, do CP, por factos integradores de crimes semipúblicos.
E repara-se que para exercer a queixa, a lei (art.º 38.º, n.º 1, do CPP) não exige do titular da queixa a indicação precisa e concreta da qualificação jurídico-penal dos factos denunciados ou participados.
No caso, e repita-se, como a declaração de queixa foi feita pela própria pessoa do empresário individual explorador do dito Clube, e os factos inicialmente denunciados relativos à eliminação de alguns documentos e dados informáticos alusivos ao registo de depósitos dos clientes do Clube tinham a ver com a conduta de subtracção de fichas de jogos na gaveta da tesouraria do mesmo Clube e como tal constituíam também objecto de investigação no Inquérito penal aberto sob o n.º 7931/2014 no Ministério Público, a declaração de fl. 97 dos autos vale para garantir a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal no âmbito desse processo de inquérito contra a arguida ora recorrente.
E não estando em discussão na presente lide recursória qualquer hipótese de desistência da queixa ou de recebimento de notificações, já não é mister aquilatar da validade formal da outorga dos poderes especiais (através da declaração de fl. 97 dos autos) pelo dito empresário individual a favor da sua empregada para retirar a queixa e receber notificações.
Entretanto, já assiste razão à recorrente quando defende que ela não pode ser considerada “funcionária” para efeitos de incriminação do peculato.
De facto, sendo ela, à data dos factos em questão, trabalhadora da tesouraria do Clube dos autos, Clube esse que não sendo o próprio Casino D em si, mas sim uma promotora de jogos em cooperação com esse Casino, não pode ser considerado como concessionário da exploração dos jogos de fortuna e azar em Macau (sobre a definição e natureza da actividade da promotora de jogos, veja-se mormente os art.os 2.º, 14.º, n.º 3, 18.º, 23.º, n.º 1, e 24.º, n.º 1 e n.º 5, alínea 1), do Regulamento Administrativo n.º 6/2002), a situação laboral de então da recorrente não pôde ser equiparada à situação de “funcionário” na acepção definida no art.º 336.º, n.º 2, alínea c), do CP.
Portanto, a conduta de peculato por que vinha condenada a recorrente em primeira instância terá que ser convolada para a conduta de furto.
É de tratar agora da questão da alteração da qualificação jurídico-penal dos factos respeitantes à provada conduta de eliminação de dados informáticos.
Esta questão, suscitada oficiosamente pelo Ministério Público não recorrente, é com toda a razão.
Na verdade: tendo a conduta de eliminação de dados informáticos sido praticada pela arguida depois (e não antes) da conduta de subtracção de fichas de jogos da tesouraria do Clube, não se pode considerar que a eliminação de dados informáticos foi praticada para obter enriquecimento ilegítimo; e servindo os dados informáticos para registar os depósitos de valores pecuniários e a sua movimentação ocorridos na tesouraria do Clube, os mesmos dados são naturalmente (por presunção judicial, permitada pelos art.os 342.º e 344.º do CC) susceptíveis de servir como meio de prova. E assim, a destrução dolosa, pela arguida, desses dados informáticos de registo de depósitos deve ser punida a nível do tipo-de-ilícito, expressamente previsto, da falsificação informática do art.º 10.º, n.º 1, da Lei n.º 11/2009, de 6 de Julho.
Agora, do número de crimes:
– não se pode abraçar a tese de dolo único de furto por parte da recorrente, pois é certo que ela pretendeu apropriar-se ilegitimamente de algumas das fichas de jogos da tesouraria do Clube, mas não é menos certo que ela também tinha o dolo de praticar os crimes de subtracção de documento (e de falsificação informática, nos termos acima vistos oficiosamente);
– por outra banda, tutelando o tipo-de-ilícito de subtracção de documento e o de furto (e o de falsificação informática) bens jurídicos distintos (para o constatar, basta atender à redacção das respectivas normas incriminatórias), há concurso real efectivo entre esses três tipos legais de crime;
– portanto, no caso concreto dos autos, praticou a arguida, em autoria material e na forma consumada, ao total, e ao critério de contagem do número de crimes vertido no art.º 29.º, n.º 1, do CP, cinco crimes de subtracção de documento, p. e p. pelo art.º 248.º, n.º 1, CP, dois crimes de furto simples, p. e p. pelo art.º 197.º, n.º 1, do CP, três crimes de furto em valor elevado, p. e p. pelo art.º 198.º, n.º 1, alínea a), do CP, e cinco crimes de falsificação informática, p. e p. pelo art.º 10.º, n.º 1, da Lei n.º 11/2009, de 6 de Julho.
E agora da medida da pena:
Desde já, no caso concreto da recorrente, atenta a matéria de facto provada em primeira instância, a todos os três crimes de furto em valor elevado e aos dois crimes de furto simples é aplicável directamente a cláusula especial de atenuação especial da pena consagrada no art.º 201.º, n.º 1, do CP. Mas, já não há aplicação da cláusula geral da atenuação especial da pena do art.º 66.º, n.º 1, do CP aos crimes de subtracção de documento e de falsificação informática, dado que são elevadas as exigências da prevenção geral desses dois tipos legais de crime, as quais reclamam a aplicação da respectiva pena dentro da correspondente moldura normal.
Assim sendo, e ponderadas todas as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância com pertinência à tarefa da medida concreta da pena aos padrões indicados nos art.os 40.º, n.os 1 e 2, e 65.º do CP (sendo certo que a respeito de todos os tipos legais de crime em questão puníveis com pena de prisão ou multa, é de aplicar a pena de prisão em detrimento da multa para poder assegurar melhor a realização das finalidades da punição sobretudo a nível da prevenção geral de delitos), é de condenar a recorrente, como autora material, na forma consumada, de:
– cinco crimes de subtracção de documento, p. e p. pelo art.º 248.º, n.º 1, CP (com moldura penal singular de prisão, de um mês até três anos), na pena de sete meses de prisão por cada (mantendo-se, pois, a decisão condenatória recorrida nesta parte);
– dois crimes de furto simples, p. e p. pelos art.os 197.º, n.º 1, e 201.º, n.º 1, do CP (com moldura penal singular de prisão, de um mês até dois anos), na pena de sete meses de prisão por cada;
– três crimes de furto em valor elevado, p. e p. pelos art.os 198.º, n.º 1, alínea a), e 201.º, n.º 1, do CP (com moldura penal singular de prisão, de um mês até três anos e quatro meses de prisão), na pena de um ano de prisão por cada;
– e ainda, cinco crimes de falsificação informática, p. e p. pelo art.º 10.º, n.º 1, da Lei n.º 11/2009, de 6 de Julho (com moldura penal singular de prisão, de um mês até três anos), na pena de cinco meses de prisão por cada.
Em cúmulo jurídico dessas 15 penas parcelares de prisão operado nos termos do art.º 71.º, n.os 1 e 2, do CP, dentro da moldura penal de prisão única de um ano a nove anos e dois meses de prisão, é de condenar a arguida com três anos e três meses de prisão.
Sendo essa pena única de prisão superior a três anos, é inviável a priori qualquer ponderação, sob a égide do art.º 48.º, n.º 1, do CP, sobre a suspensão da sua execução.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar parcialmente provido o recurso e alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal dos factos na parte respeitante à conduta da arguida de eliminação de dados informáticos, com o que passa ela a ser condenada como autora material, na forma consumada, de:
– cinco crimes de subtracção de documento, p. e p. pelo art.º 248.º, n.º 1, Código Penal, na pena de sete meses de prisão por cada;
– dois crimes de furto, p. e p. pelos art.os 197.º, n.º 1, e 201.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de sete meses de prisão por cada;
– três crimes de furto em valor elevado, p. e p. pelos art.os 198.º, n.º 1, alínea a), e 201.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de um ano de prisão por cada;
– cinco crimes de falsificação informática, p. e p. pelo art.º 10.º, n.º 1, da Lei n.º 11/2009, de 6 de Julho, na pena de cinco meses de prisão por cada;
– e em cúmulo jurídico dessas 15 penas parcelares, finalmente na pena única de três anos e três meses de prisão.
Pagará a arguida 3/4 das custas do recurso e nove UC de taxa de justiça em correspondência a esse decaimento parcial no recurso.
Comunique a presente decisão ao empresário ofendido.
Macau, 22 de Junho de 2017.
_______________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_______________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
_______________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
(com declaracao de voto junto)

Processo nº 234/2016 (Autos de recurso penal)
Recorrente: A
Data: 22/06/2017


Declaração de voto

Vencida por seguintes razões:

Não concordo com a decisão condenatória da arguida recorrente pela prática de cinco crimes de subtracção de documento, p.p. pelo art.248º nº1 do Código Penal, por entender que esses crimes seriam crimes instrumentais e deveriam ser absorvidos pelos crimes de furto, p.p. pelo art.197º e 198º do Código Penal.

Por outro lado, continuo entender de que as sociedades que exploram os jogos de fortuna ou azar deixam de ser em regime de exclusivo, e em consequência, os seu funcionários não podem ser equiparados como funcionários.

A Primeira Adjunta

___________________________
Tam Hio Wa




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