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Processo n.º 43/2017. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrentes: A, B e C.
Recorridos: Serviços de Saúde e D.
Assunto: Incidente de impedimento de juiz. Recurso. Impugnação da matéria de facto. Alínea e) do n.º 1 do artigo 311.º do Código de Processo Civil.
Data da Sessão: 19 de Julho de 2017.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – Está impedido de intervir como juiz-adjunto no Tribunal de Segunda Instância (TSI), em recurso da sentença do Tribunal Administrativo (TA), se é impugnada a matéria de facto em que o Juiz do TSI interveio como juiz-adjunto no tribunal colectivo do TA, mesmo que o julgamento tenha sido anulado, em consequência de anulação do processado, desde que haja alguma coincidência entre este julgamento da matéria de facto e o posterior, a que seguiu sentença, objecto de recurso, por ter tomado, assim, posição sobre questões suscitadas no recurso” [alínea e) do n.º 1 do artigo 311.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente].
II – Está impedido de intervir como juiz-adjunto no TSI, em recurso da sentença do TA, o juiz deste Tribunal que proferiu a sentença, mesmo que esta tivesse sido anulada, em consequência de anulação do processado, desde que tenha discorrido sobre questões de direito ou de facto suscitadas no recurso, por ter tomado posição sobre questões suscitadas no recurso” [alínea e) do n.º 1 do artigo 311.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente].
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima




ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
Estando pendente no Tribunal de Segunda Instância (TSI) recurso de sentença do Tribunal Administrativo, proferida na acção para efectivação de responsabilidade extracontratual, instaurada por A, B e C contra os Serviços de Saúde e D, que absolveu estes réus do pedido, vieram os autores suscitar o impedimento do Ex.mo Juiz, 2.º Adjunto, Dr. E, com fundamento em este ter intervindo no processo no Tribunal Administrativo, tanto enquanto juiz titular que proferiu a sentença, como enquanto juiz-adjunto do Tribunal Colectivo, embora este julgamento viesse a ser anulado, não tendo o mesmo Juiz já participado no 2.º julgamento, nem proferido a 2.ª sentença, objecto do recurso.
Mais alegaram os autores que o mencionado Juiz tomou posição sobre questões que estão agora a ser decididas em recurso, o que conduz ao impedimento na apreciação do recurso, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 311.º do Código de Processo Civil.
O Ex.mo Juiz, Dr. E, proferiu despacho em que alegou ter proferido a 1.ª sentença que viria a ser anulada, pelo que deixou de existir na ordem jurídica, sendo que também não interveio no 2.º julgamento da matéria de facto, concluindo não aceitar o impedimento.
Reclamaram os autores para a conferência do TSI que, por acórdão de 9 de Março de 2017, indeferiu a reclamação.
Interpõem, agora, os autores para este Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando as seguintes questões:
- O Ex.mo Juiz, 2.º Adjunto dos autos, Dr. E teve intervenção directa não apenas enquanto juiz-titular encarregue do processo no Tribunal Administrativo mas também como juiz-adjunto do respectivo colectivo que proferiu a primeira decisão final, tendo acompanhado e dirigido o processo desde o seu início enquanto seu juiz titular.
- O mesmo Distinto Magistrado esteve presente e acompanhou a produção de prova em julgamento, comparticipando nas respectivas decisões de facto e de direito,
- Por conseguinte, a não ser declarado o impedimento, o mesmo Distinto Magistrado seria chamado a pronunciar-se e conhecer de factos, questões e pressupostos que o próprio, enquanto juiz titular do Tribunal Administrativo, havia anteriormente conformado e materialmente decidido e que, não obstante a anulação parcial pelo T.S.I., perduraram e permanecerem nos autos n.º 70/05-RA.

II - Os factos e o Direito
1. As questões a apreciar
Trata-se de saber se o Ex.mo Juiz, 2.º Adjunto dos autos, Dr. E, está impedido na apreciação do recurso no TSI, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 311.º do Código de Processo Civil, por ter intervindo no processo no Tribunal Administrativo, tanto enquanto juiz titular, que proferiu a sentença, como enquanto juiz-adjunto do Tribunal Colectivo, sendo que o julgamento haveria de ser anulado, não tendo o mesmo já participado no 2.º julgamento, nem proferido a 2.ª sentença.

2. Impedimento de juiz de recurso interposto em processo no qual tenha tido intervenção como juiz, quer proferindo a decisão recorrida, quer tomando de outro modo posição sobre questões suscitadas no recurso
O juiz está impedido de exercer as suas funções quando “Se trate de recurso interposto em processo no qual tenha tido intervenção como juiz, quer proferindo a decisão recorrida quer tomando de outro modo posição sobre questões suscitadas no recurso” [alínea e) do n.º 1 do artigo 311.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente].
Referem CÂNDIDA PIRES e VIRIATO LIMA1 a propósito da mencionada alínea que «A razão que está na base deste fundamento é, se não mesmo a consideração que o amor próprio exerce sobre o espírito do juiz que o levaria a manter a posição já tomada, pelo menos “a predisposição para reproduzir um juízo já emitido”2 .
Não há impedimento se o juiz do recurso foi o juiz do processo na instância inferior mas se limitou a proferir decisões que não estão em causa ou não têm ligação com a questão que se debate no recurso. Por exemplo, não existe impedimento se o juiz proferiu decisões interlocutórias e o recurso é da decisão final. Ou se julgou a matéria de facto, como juiz singular ou membro do tribunal colectivo, mas não proferiu a sentença e o recurso é restrito à matéria de direito.
Pode haver impedimento se o juiz interveio na primeira instância, proferindo a decisão de que se recorre para o TSI, e intervém a apreciar o recurso interposto da segunda instância, no TUI. Neste caso, o juiz não proferiu a decisão recorrida, mas está impedido se tomou posição sobre questões suscitadas no recurso».
O despacho do Ex.mo Juiz, a quem foi oposto o impedimento, e o acórdão recorrido, resolvem um dos fundamentos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 311.º do Código de Processo Civil, porque, na verdade, aquele Juiz não proferiu a decisão recorrida. Interveio no julgamento da matéria de facto e proferiu a sentença, sendo que tanto este julgamento como a sentença vieram a ser anulados e foi realizado um novo julgamento em que já não interveio, nem proferiu a sentença recorrida (a 2.ª).
A questão é que a lei também veda a participação do juiz que, no processo em causa, tomou posição sobre questões suscitadas no recurso.
Temos, assim, que saber que questões é que são suscitadas no recurso da sentença, para aferir se o Ex.mo Juiz tomou posição sobre essas questões enquanto Juiz do Tribunal Administrativo, que possam levar a duvidar-se da sua imparcialidade na intervenção como Juiz no recurso.

3. Questões suscitadas no recurso e intervenção do Dr. E como juiz-adjunto do Tribunal Colectivo do Tribunal Administrativo e como juiz do processo
No recurso para o TSI os recorrentes suscitam, além de outras, as seguintes questões fundamentais:
- Impugnam a decisão da matéria de facto quanto às respostas do Tribunal Colectivo aos quesitos 2.º, 9.º, 11.º, 43.º e 44.º da base instrutória;
- Uma vez provados os quesitos 2.º, 9.º e 44.º, conjugados com a restante matéria provada, deve-se julgar procedente o pedido indemnizatório, por ter havido negligência na conduta do 2.º réu, que retardou o tratamento à encefalite viral, que conduziu à morte da vítima;
- O estado clínico da doente exigia a transferência para os cuidados intensivos, pelo que a não transferência configura culpa funcional do hospital.
O Dr. E, como juiz-adjunto do Tribunal Colectivo, participou no julgamento da matéria de facto, ocorrido em 15 de Fevereiro de 2008, em que se decidiu o seguinte, quanto à matéria de facto em causa no recurso:
Quesito 2.º - Não provado.
Quesito 9.º - Provado apenas que a pneumonia foi contraída durante o seu internamento.
Quesito 11.º - Não provado.
Quesitos 43.º e 44.º - Não provados.
No 2.º julgamento da matéria de facto, ocorrido em 12 de Julho de 2013, em que já não interveio o mencionado Juiz, decidiu-se o seguinte quanto à matéria de facto:
Quesito 2.º - Não provado.
Quesito 9.º - Provado apenas que a pneumonia foi contraída durante o seu internamento.
Quesito 11.º - Não provado.
Quesitos 43.º - Não provado.
Quesitos 44.º - Não provado.
Os quesitos da base instrutória eram do seguinte teor:
23
E poderia ter eliminado a encefalite viral e o edema que estava a causar, ministrando logo o medicamento adequado?
9
A pneumonia foi contraída durante o seu internamento e a causa foi por aspiração de fluídos?
114
Por falta de assistência médica e hospitalar?
435
A lesão por anoxia cerebral, resultante da paragem cardíaca, foi o facto mais importante para o seu falecimento?
44
Havia graves riscos de uma paragem respiratória e de uma pneumonia por aspiração devido à pressão do edema cerebral e estado inconsciente agravado pelo tratamento excessivo e intensivo por calmantes das convulsões?

Pois bem, o julgamento da matéria de facto, no que se refere às respostas do Tribunal Colectivo aos quesitos 2.º, 9.º, 11.º, 43.º e 44.º, foram exactamente iguais nos dois julgamentos da matéria de facto.
Quer isto dizer que os recorrentes impugnam, no recurso, o julgamento da matéria de facto, que coincide, na totalidade, com o julgamento em que o Dr. E interveio, embora o material probatório dos dois julgamentos não coincidisse totalmente, mormente quanto à prova pericial.
Independentemente de o 1.º julgamento ter sido anulado, por anulação de processado, isso não anula o comprometimento intelectual do Dr. E com esse julgamento, em que decidiu que 4 factos que os autores queriam ver provados não se provaram e um outro apenas se provou parcialmente.
Como pode estar este Juiz em condições de apreciar o recurso da matéria de facto, que já julgou, no mesmo processo, enquanto membro do tribunal colectivo de 1.ª instância?
É evidente que não reúne condições mínimas de imparcialidade para o fazer, visto ter tomado posição sobre questões suscitadas no recurso, sendo que, no caso, como quase sempre, aliás, a decisão sobre a matéria de facto é crucial para o êxito ou inêxito da acção de responsabilidade.
Tanto bastaria para julgar procedente o recurso que recusou o seu impedimento para intervir como juiz-adjunto no recurso.
Mas acresce que o Dr. E proferiu a 1.ª sentença em que discorreu largamente sobre questões suscitadas no recurso, dizendo, por exemplo, que a punção lombar – que os autores entendem que deveria sido feita – era desaconselhada e que não permitiria detectar qual o agente etiológico (fls. 724).
Na mesma sentença também se entende, ao contrário da tese dos autores, que o médico não devia ter ministrado medicamentos para eliminar a encefalite e que, também ao contrário da tese dos autores no recurso, o médico não utilizou excesso de barbitúricos e benzodiazepinas, e que tal medicação não contribuiu para a paragem cardíaca sofrida pela vítima e a sua morte.
Por último, na sentença, o Dr. E concluiu que não se provou um nexo de causalidade entre a morte da paciente e a sua não transferência para a unidade de cuidados intensivos, ao contrário do que defendem os autores no recurso.
Quer isto dizer que o Ex.mo Juiz-adjunto do TSI está também comprometido intelectualmente quanto às questões jurídicas suscitadas no recurso, pelo que não tem as condições de imparcialidade necessárias para participar no julgamento do recurso.
A circunstância de tal sentença ter sido anulada é um pormenor sem qualquer relevância no caso, porque ela não apaga a adesão do Ex.mo Juiz-adjunto a entendimentos combatidos pelos autores no recurso.
Procede, portanto, o recurso.

IV – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso e declaram o Ex.mo Juiz, 2.º Adjunto dos autos, Dr. E, impedido de intervir nos ulteriores termos do processo.
Custas pelo vencido a final.
Macau, 19 de Julho de 2017.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai


     1 CÂNDIDA PIRES e VIRIATO LIMA, Código de Processo Civil Anotado e Comentado, Faculdade de Direito da Universidade de Macau, Volume II, 2008, p. 257.
     2 ALBERTO DOS REIS, Comentário…, vol. 1.º, pp.399 e 400.
     3 Convém conhecer o quesito 1,º para se perceber o alcance do quesito 2.º. Naquele perguntava-se: Se o 2.º réu tivesse efectuado logo de início a punção lombar e um encefalograma teria confirmado desde logo a encefalite viral?
     4 Por lapso não houve quesito 1.º, pelo que o texto do 11.º é na sequência do 9.º.
     5 A pergunta refere-se à vítima.
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