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Proc. nº 772/2017/A
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 07 de Setembro de 2017
Descritores:
-Suspensão de Eficácia
-Acto de conteúdo positivo
-Requisitos
-Grave lesão para o interesse público

SUMÁRIO:

I. O conteúdo do acto suspendendo que aplica ao requerente a pena disciplinar de demissão em apreço tem natureza positiva, face aos efeitos que provoca no “status” do requerente. Passível é, portanto, de suspensão (art. 120º, do CPAC).

II. Sendo suspendendo o acto que aplica a pena disciplinar de demissão, o requisito do “prejuízo de difícil reparação para o requerente”, previsto na alínea a) do art. 121º do CPAC, não carece de demonstração, face ao disposto no nº3 do mesmo art. 121º.

III. O comportamento de um agente da Polícia Judiciária que, em vez de combater o crime, colabora com a namorada na obtenção ilícita de dinheiro com vista à angariação de emprego em Macau, não dignifica a instituição a que pertencia, pondo em causa a imagem de seriedade que toda a polícia deve preservar e transmitir de si mesma para a sociedade.
Proc. nº 772/2017/A

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I – Relatório
A, do sexo masculino, investigador criminal principal do 4º escalão do grupo de investigação criminal do quadro da Polícia Judiciária, residente em Macau, na …,---
Vem requerer a suspensão de eficácia do acto do Secretário para a Segurança, datado de 6/07/2017, que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão.
Para tanto, invoca a existência de prejuízos de difícil reparação caso a eficácia do acto em apreço não seja suspensa. Acrescenta que a suspensão não determina grave lesão do interesse público prosseguido pelo acto e, por fim, defende que não há indícios de ilegalidade do recurso contencioso entretanto interposto.
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O Secretário para a Segurança contestou a providência, destacando essencialmente o grave prejuízo para o interesse público caso o pedido fosse deferido.
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O digno Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido do indeferimento da pretensão, face ao grave prejuízo para o interesse público que a suspensão peticionada representaria.
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Cumpre decidir.
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II – Pressupostos processuais
O tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
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III – Os Factos
1 - A, do sexo masculino, é investigador criminal principal do 4º escalão do grupo de investigação criminal do quadro da Polícia Judiciária.
2 - Foi-lhe instaurado, por despacho de 17/12/2015 do Secretário para a Segurança da RAEM, um procedimento disciplinar, nos termos do qual o instrutor lavrou o seguinte relatório:
“Por despacho de 17 de Dezembro de 2015 do Secretário para a Segurança, foi instaurado o presente processo disciplinar, sob nº P.D. 04/2015, contra o arguido A, investigador criminal principal. O signatário XXX, chefe da Divisão de Investigação Especial, foi nomeado como instrutor deste processo e, a seguir, foi nomeada XXX, investigadora criminal principal, como secretária.
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O arguido A, do sexo masculino, nascido em Macau no dia 18 de Abril de 1967, titular do Bilhete de Identidade de Residente de Macau nº ..., investigador criminal principal de 4º escalão, em regime de nomeação definitiva, do grupo pessoal de investigação criminal do quadro da Polícia Judiciária
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Iniciou-se a instrução no dia 28 de Dezembro de 2015, tendo-se efectuado nos termos da lei a notificação e procedido à investigação. A instrução terminou no dia 11 de Fevereiro de 2016, sendo concluído no prazo legal (fls. 13 a 108 do processo).
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No dia 22 de Fevereiro de 2016, foi deduzida a acusação nos termos da lei e foi o arguido A, investigador criminal principal, notificado da acusação no dia 23 de Fevereiro do mesmo ano (fls. 109 a 121 do processo).
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O prazo de contestação terminou no dia 8 de Março de 2016, não tendo o arguido apresentado contestação (fls. 122 a 123 do processo).
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No dia 17 de Março, foi elaborado relatório nos termos da lei, no qual foi proposta a aplicação de pena de demissão. O processo foi submetido no mesmo dia (fls. 124 a 137 do processo).
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No dia 18 de Março de 2016, o Sr. Director da P.J. proferiu despacho nos termos da lei, propondo a aplicação de pena de aposentação compulsiva. Este foi submetido à apreciação e decisão do Secretário para a Segurança no dia 21 de Março do mesmo ano (fls. 138 a 142 do processo).
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No dia 13 de Abril de 2016, o Sr. Secretário para a Segurança proferiu despacho nos termos da lei, ordenando a P.J. efectuar diligência complementar para recolher mais provas, a fim de responsabilizar disciplinarmente o arguido (fls. 143 do processo).
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Para tais efeitos, foi ouvido, de novo, o arguido A e foi pedido ao Ministério Público o fornecimento de mais dados. Em virtude de não se ter encontrado novos factos, o processo ficou pendente (fls. 152 a 154 do processo)
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O relatório nº 34-JLO/2017 do Gabinete do Secretário para a Segurança apontou que o presente processo ficou pendente e ordenou a P.J. para considerar resolver, nos termos da lei, a pendência do processo através de prolongar adequadamente o prazo ou suspender o procedimento (fls. 159 a 170 do processo).
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Posteriormente, a P.J., com base no magistrado encarregado do Ministério Público (sic), notificou nos termos da lei que foi deduzida acusação penal contra o arguido neste processo, A, investigador criminal principal. Foi fornecida a cópia da acusação (sic) que foi juntada ao processo pelo signatário no dia 26 de Maio de 2017 (fls. 161 a 168 do processo).
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Face ao exposto, de acordo com os novos dados, nomeadamente a acusação penal deduzida pelo Ministério Público contra o arguido neste processo, é reconhecido que o arguido A, investigador criminal principal, praticou, em co-autoria material e na forma consumada, um “crime de burla”, p.p. pelo artº 211º, nº 1 do CP, e um “crime de burla”, p.p. pelo mesmo artº 211º, nº 1, conjugado com o nº 4, al. a) e o artº 196º, al. b) do mesmo Código.
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Efectuada a análise profunda da acusação penal, esta demonstra que o teor e factos na acusação correspondem basicamente à factualidade obtida neste processo disciplinar. Não se encontrou mais novos factos, mantendo-se inalterada a matéria de facto.
Além disso, mesmo que não se tenha proferido decisão final e tendo em conta a eventual desconformidade entre os factos provados na audiência de julgamento, no entanto, com base nos princípios da independência e da dupla responsabilidade do processo disciplinar e responsabilidade disciplinar, os factos neste presente processo, que foram provados, com observância dos termos legais, nas fases irreversíveis tais como instrução, acusação, contestação e diligência complementar, provam suficientemente a culpa do arguido, também provando suficientemente as infracções disciplinares dele, os quais são suficientes para sustentar a punição do arguido pelas infracções disciplinares.
Importa referir que os novos dados neste processo disciplinar - a acusação penal, na qual não foi produzido ou surgiu qualquer facto novo, pelo que não altera a matéria de facto no processo disciplinar, nem afecta os efeitos produzidos nas fases que foram procedidas nos termos legais, sendo apenas uma informação suplementar sobre a culpa subjectiva do arguido nas infracções disciplinares praticadas. Portanto, deve observar-se a instrução dada no relatório nº 34-JLO-2017 do Gabinete do Secretário para a Segurança - resolver, o mais breve possível, a pendência do processo.
Pelo exposto, proponho ao Sr. Director que considere tomar decisão final sobre as infracções disciplinares neste processo. No caso de se manter a punição indicada em fl. 139 do processo - aposentação compulsiva, solicito ao Sr. Director que apresente o processo, no prazo de dois dias, ao Exmo. Sr. Secretário para a Segurança para a prolação de decisão, nos termos do artº 337º, nº 3 do ETAPM, pois, de acordo com o artº 322º do ETAPM, conjugado com o artº 4º do Reg. Adm. nº 6/1999 e o Ordem Executiva nº 111/2014, a aplicação da pena de aposentação compulsiva é da competência do Secretário para a Segurança.
À considera de V.Ex.ª.”
3 – O director da Polícia Judiciária, pronunciou-se da seguinte maneira:
“Concordo com o teor e proposto no relatório elaborado pelo instrutor.
De acordo com o teor e proposto no meu despacho a fls.138 a 141 do presente processo disciplinar e nos termos do artº 316, nºs 1 e 2 do ETAPM, e tendo considerado as circunstâncias atenuantes e agravantes do arguido, proponho a aplicação da pena de aposentação compulsiva ao arguido A, nos termos do artº 315º, nºs 1 e 2, als. c), i), n) e o) (última parte), conjugado com o artº 22º, nº 2 da Lei nº 5/2006 (Polícia Judiciária) e o artº 51º, nº 1, als. c) e d) do D.L. nº 27/98/M.
Remeta-se o processo de investigação disciplinar à Divisão de Ligação entre Polícia e Comunidade e Relações Públicas e Submeta-se o processo ao Exmo. Sr. Secretário para a Segurança para apreciação e decisão”.
4 – O Secretário para a Segurança, em 6 de Julho de 2017, proferiu o seguinte despacho (a.a.):
“Nos presentes autos de processo disciplinar vem suficientemente provada a matéria da acusação neles deduzida contra o arguido, Investigador Criminal Principal, A, titular do BIRM n.º ..., a qual se dá aqui por inteiramente reproduzida e integrada, quanto à descrição dos factos que a sustentam.
Em breve síntese, provou-se que num período que se situa na segunda metade do ano de 2015, o arguido, com inteiro conhecimento da actividade da sua namorada, colaborou com ela, fazendo crer a um elevado número de ofendidos que tinham conhecimentos e exerciam influências facilitadoras do agenciamento de empregos para o Hotel X, nos empreendimentos do X, do que davam garantias plenas, contra o pagamento de cerca de 5.000 (cinco mil) renminbis.
Nesse sentido, o arguido colaborou na recolha e guarda de documentos e de quantias previamente acordadas com os ofendidos, não se abstendo de o fazer, antes corroborando as promessas da namorada, quando os ofendidos começaram a questionar as demoras no respectivo cumprimento, dando sinais de impaciência, desilusão e desconfiança.
Pela sua experiência pessoal e vida profissional, o arguido não só tinha o dever de suspeitar do caminho que os procedimentos estavam a tomar, sinalizando-os às autoridades policiais (artigo 225.º do Código de Processo Penal), como o de tudo fazer para os suster, abstendo-se de qualquer colaboração.
Não o fazendo, o arguido, para além de exercer uma actividade incompatível com as suas funções, sem que para tal tivesse solicitado autorização, infringiu o dever geral de contribuir para o prestígio da administração pública, a que se refere o n.º 1 do artigo 279.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública (ETAPM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro, bem como os deveres de isenção e de zelo, respectivamente previstos nas alíneas a) e b) do n.º2 do mesmo normativo citado e, ainda, infringindo a proibição de exercício de actividades incompatíveis a que se refere a sua alíneas i). O arguido, constituiu-se, ainda, em infracção aos deveres especiais constantes do n.º 2 do artigo 14.º da Lei n.º 5/2006 (Lei da Polícia Judiciária) e, bem assim, aos constantes das suas alíneas 3) - dever de permanente protecção dos cidadãos - e 4) - defesa do cumprimento da Lei.
Favorecendo o arguido a atenuante da alínea c) do n.º 1 do artigo 282.º do ETAPM, a verdade é que a conduta resulta agravada pela presença do circunstancialismo previsto nas alíneas b) - prejuízo para o interesse geral d) - conluio com outrem para a prática da infracção; h) - acumulação de infracções e j) - responsabilidade inerente ao cargo exercido, do n.º 1 do artigo 283.º, daquele estatuto.
Ora, esta conduta infractora, sobre a qual recai um juízo de elevada censura ético-jurídica, afecta seriamente a imagem da Polícia Judiciária a que o arguido pertence, atento o facto de contrariar afrontosamente aquelas que são as suas atribuições públicas de prevenção e de combate ao crime, violando, ainda, um dever especial de não exercer actividades incompatíveis com essa missão, compromete em definitivo a manutenção da sua situação jurídico-funcional, sendo punível com uma pena de natureza expulsiva.
Com efeito, o Investigador Criminal Principal, A, praticou infracções disciplinares subsumíveis ao disposto nas alíneas c) e n) do n.º 2 do artigo 315.º do ETAPM e c) do n.º 1 do artigo 51.º da Lei n.º 27/98/M de 29 de Junho, revelando não possuir idoneidade moral para exercer funções policiais, pelo que o puno com a pena disciplinar de DEMISSÃO, o que faço no uso das competências executivas que me advêm do disposto no n.º 1 da Ordem Executiva N.º. 111/2014.
Notifique o arguido do presente despacho e de que do mesmo cabe recurso contencioso no prazo de 30 dias contado a partir da notificação”
5 – O requerente esteve preventivamente suspenso por 90 dias, de 1 de Janeiro a 30 de Março de 2016.
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IV – O Direito
1 - Não se duvida que o conteúdo do acto suspendendo, que aplica ao requerente a pena disciplinar de demissão em apreço, tem natureza positiva, face aos efeitos que provoca no “status” do requerente. Passível é, portanto, de suspensão (art. 120º, do CPAC).
Por outro lado, e no que respeita aos requisitos que é preciso verificarem-se, não se questiona que o do “prejuízo de difícil reparação para o requerente”, previsto na alínea a) do art. 121º do CPAC, não carece de demonstração, face ao disposto no nº3 do mesmo art. 121º.
Finalmente, e tal como até a própria entidade requerida prontamente acolhe, não ocorre qualquer impedimento à verificação do requisito negativo da alínea c), do nº1 (“inexistência de fortes indícios de ilegalidade na interposição do recurso”).
Resta, assim, indagar se a procedência da providência não determinará “grave prejuízo para o interesse público” (alínea b), do nº1, do cit. art.).
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2 - Como facilmente se pode constatar pela descrição fáctica acima efectuada, a pena em causa foi aplicada ao requerente em virtude de, alegadamente, ter colaborado com a sua namorada na obtenção ilícita de dinheiro proveniente de diversas pessoas interessadas em alcançar emprego em Macau, sem que jamais o tivessem conseguido efectivamente. Ou seja, tudo não passaria de um plano urdido pela namorada, mas com o alegado envolvimento do requerente, de, através de um engano caracterizador de uma actividade burlosa, obter o pagamento de um serviço de agenciamento de emprego.
Dito isto, somos a considerar que nem mesmo a relação de amor ou afecto que unia o requerente à namorada deveria servir de pretexto e desculpa pela atitude deste. Na verdade, a um agente policial pede-se que combata o crime, não que o tolere, muito menos nele participe. E não afasta, sequer, a censurabilidade ético-profissional do requerente a circunstância por si alegada, mas não demonstrada, de não vir a beneficiar do dinheiro obtido ilegalmente pela namorada.
Sendo assim, cremos que o comportamento do requerente não dignifica a instituição a que pertencia, pondo em causa a imagem de seriedade que toda a polícia deve preservar e transmitir de si mesma para a sociedade.
Neste sentido, a reintegração que teve lugar após a suspensão preventiva também não tem o condão de limpar a mancha que o requerente lançou sobre si mesmo, bem como sobre a força policial a que pertencia.
Estamos, enfim, convencidos de que o interesse público da lisura, da transparência, da abnegação, frontalidade e garantia do combate ao crime que a Polícia Judiciária na sua actividade diária deve prosseguir sairia gravemente afectado, dando um mau exemplo para o interior da instituição (e, consequentemente, para os colegas do requerente) e transmitindo para o exterior (para a comunidade em geral) uma imagem negativa que descredibilizaria a força policial caso o requerente visse suspensa a eficácia do acto que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão.
Serve isto para dizer que o requerente não consegue demonstrar o requisito da alínea b) do nº1, do art. 121º do CPAC.
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V – Decidindo
Face ao exposto, acordam em indeferir o pedido de suspensão de eficácia.
Custas pelo requerente com imposto de justiça em 4 UCs.
TSI, 07 de Setembro de 2017
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Fui presente
Joaquim Teixeira de Sousa



Proc. nº 772/2017/A 11