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Processo nº 837/2017
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, arguido com os sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenando pela prática como autor material de 1 crime de “ofensa grave à integridade física por negligência”, p. e p. pelos art°s 142, n.° 1 e 3 do C.P.M. e art. 93°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano e 6 meses, assim como na pena acessória de inibição de condução por 1 ano, também suspensa na sua execução por 1 ano e 6 meses.

Em relação ao “pedido de indemnização civil” enxertado nos autos, decidiu-se o Colectivo condenar a demandada civil “B”, (B), a pagar ao demandante C a quantia de MOP$766.364,83 e juros; (cfr., fls. 365 a 376 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada, a demandada seguradora recorreu.

Motivou para concluir nos termos seguintes:

“I. O presente recurso vem interposto do douto Acórdão, proferido pelo Tribunal Colectivo nos vertentes autos, que condenou a Recorrente no pagamento ao Demandante cível da quantia total de MOP$766,364.83, com base na repartição da culpa na produção do acidente na proporção de 70% para o ora Recorrente e 30% para o ora Recorrido.
II. Resulta claramente que a decisão recorrida, interpretada de per si, com a experiência comum e com os elementos dos autos nela acolhidos, se encontra inquinada do vício constante do art. 400°, n° 2 alínea c) do Código de Processo Penal – erro notório na apreciação da prova, e que após a reapreciação da prova por parte desse Venerando Tribunal da Segunda Instância, deverá ser proferido douto Acórdão que considere responsável exclusivo pela produção do acidente dos autos o próprio sinistrado, com a consequente absolvição da Recorrente relativamente aos pedidos de indemnização formulados nos autos pelo sinistrado, ou, no limite, seja efectuada a graduação das culpa de uma forma justa, sendo a maior percentagem de culpa atribuída ao sinistrado.
III. A ora Recorrente, ao invocar no presente recurso o erro notório na apreciação da prova, que, na sua óptica, inquina a decisão proferida pelo douto Tribunal Colectivo a quo, não pretende apresentar apenas uma simples discordância relativamente à interpretação dos factos feita por aquele douto Tribunal Colectivo, tendo bem presente o dispositivo do art. 114° do Código de Processo Penal, e a natureza insindicável da livre convicção relativamente à apreciação da prova efectuada pelo Tribunal recorrido, e ainda estando bem ciente da jurisprudência afirmada nos Tribunais Superiores da RAEM, segundo a qual O erro notório na apreciação da prova é prefigurável quando se depara ter sido usado um processo racional e lógico mas, retirando-se, contudo, de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irrazoável, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum, bem como das regras que impõem prova tarifada para determinados factos,
IV. Entendendo a Recorrente que tal se verifica na situação dos autos, e que o vício apontado à decisão recorrida resulta dos próprios elementos constantes dos autos, por si só ou com recurso às regras da experiência comum.
V. Tendo em atenção os factos dados por provados na douta sentença nomeadamente o identificado com o número 5) que refere a existência de uma passagem aérea para peões que dista de 25 metros de local da colisão.
VI. Conjugado com o depoimento da testemunha identificada como Polícia de trânsito 118071, o qual referiu que existiam cercas no passeio para evitar o acesso de peões à estrada onde se deu o acidente, e que o sinistrado terá utilizado uma das brechas existentes para o acesso de viaturas ao prédio existente no local, para invadir a estrada, conforme também se pode verificar através do croqui do acidente, não se entende como é que se consignou que por estas violações grosseiras da Lei de Trânsito Rodoviário, o sinistrado apenas terá tido 30% de culpa na produção do acidente.
VII. Sendo que, no que ao Arguido diz respeito, apenas se provou que o mesmo conduziu sem a total atenção ao trânsito, circulando, de resto em estrito cumprimento das normas estradais, nomeadamente, circulando em baixa velocidade, não lhe sendo de todo, previsível, que um peão circulasse naquela zona, até pela existência das cercas metálicas, que vedavam o acesso à estrada.
VIII. Então dúvidas não poderão subsistir que o sinistrado desrespeitou os comandos vertidos nos arts. 68°, n° 1 e 70°, n°s 1, 2 e 5 da Lei do Trânsito Rodoviário, por ter atravessado a faixa de rodagem fora da passagem para peões, quando existia uma passagem para peões a 25 metros do local do acidente, e por ter invadido a faixa de rodagem, num local que estava vedado a peões.
IX. E que a violação por parte do sinistrado dos referidos preceitos da Lei do Trânsito Rodoviário foi a única causa da produção do acidente dos autos, e por sua exclusiva responsabilidade,
X. Sendo por isso de todo incompreensível ter o douto Tribunal a quo determinado que ao sinistrado, coube apenas 30% da culpa na produção do referido acidente.
XI. Acresce ainda que, no visionamento do vídeo junto aos autos e que foi captado a partir do interior do autocarro, comprova-se que o ora Arguido conduzia com a necessária prudência o referido veículo, nada podendo fazer quanto à inusitada e proibida presença do sinistrado no local onde se verificou o embate.
XII. Por serem os factos constantes acima enunciados nesta Motivação de Recurso um conjunto de elementos de prova que imporia retirar-se dos mesmos, através de um processo racional e lógico, e por recurso às regras de experiência comum, a conclusão irrecusável de ter sido o sinistrado o exclusivo responsável pelo acidente de que foi vítima,
XIII. Ocorrendo assim o invocado erro notório na apreciação da prova previsto no art. 400°, n° 2 alínea c) do Código de Processo Penal, devendo ser a decisão ora em crise revogada pelo Venerando Tribunal de Segunda Instância, e proferido douto Acórdão que determine a exclusiva imputação ao sinistrado da responsabilidade pela ocorrência do acidente de que foi vítima, ou, no limite, seja efectuada a graduação da culpa de uma forma justa, sendo a maior percentagem de culpa atribuída ao sinistrado”; (cfr., fls. 391 a 399).

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Respondeu o demandante pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 406 a 410).

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Nada obstando, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls.367-v a 370, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem a demandada seguradora recorrer do Acórdão proferido pelo Colectivo do T.J.B. na parte que apreciou o pedido de indemnização civil enxertado nos autos.

–– E, tal como se retira das suas conclusões de recurso, entende que o segmento decisório em questão padece de “erro notório na apreciação da prova”.

Vejamos.

Repetidamente temos afirmando que: “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 09.03.2017, Proc. n.° 947/2016, de 23.03.2017, Proc. n.° 115/2017 e de 08.06.2017, Proc. n.° 286/2017).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 23.02.2017, Proc. n.° 118/2017, de 16.03.2017, Proc. n.° 114/2017 e de 15.06.2017, Proc. n.° 249/2017).

Dito isto, e motivos não havendo para alterar o assim entendido, quid iuris?

Pois bem, desde já, que a ora recorrente está equivocada quanto ao sentido e alcance do vício de “erro notório na apreciação da prova”.

Com efeito, este “erro”, como o próprio nome o indica, é um erro em que se incorre aquando da “apreciação do material probatório” para efeitos de prolação da “decisão sobre a matéria de facto”.

No caso, e em sede do seu recurso, a ora recorrente (traduz e) transcreve a decisão da matéria de facto do Tribunal a quo, e, sem impugnar nenhum excerto do decidido, afirma não concordar com a (decisão sobre) “percentagem de culpa pelo acidente”.

Como bem se vê, a ora recorrente não considera erradamente julgado nenhum dos “factos (dados como) provados”, pretendendo, apenas, a “alteração da decisão que fixou culpa do arguido” – seu segurado – em 70%, (atribuindo os restantes 30% ao ofendido), considerando que a culpa toda ou, no mínimo, a maior parte dela devia antes caber a este último.

E, nesta conformidade, o que (em boa verdade) pretende a recorrente não é a “alteração da matéria de facto”, mas sim a “alteração da decisão” que, (em sede de interpretação daquela), fixou a percentagem de culpa nos termos a que já se fez referência, o que torna evidente a improcedência do recurso quanto ao alegado vício de “erro notório”.

–– Porém, e seja como for, não se pode negar que com o que alegou na sua motivação impugnou também a ora recorrente o aludido “juízo” que fixou a culpa pelo acidente em 30% para o ofendido e 70% para o arguido.

E, assim sendo, motivos não vislumbramos para se desconsiderar a questão, havendo pois que sobre a mesma emitir pronúncia.

Vejamos.

Retira-se da “factualidade dada como provada” – que, como se viu, não padece de “erro” – que o acidente se deu quando o arguido dos autos conduzia um autocarro numa via recta, e que por conduzir sem a devida atenção e cuidado, não se apercebeu que o ofendido se encontrava a atravessar a via, vindo a embater no mesmo, (causando-lhe os danos e lesões discriminadas na referida facticidade e que constituem a razão da arbitrada indemnização).

Por sua vez, está também provado que a (cerca) de 25 metros do local do acidente havia uma passagem aérea para peões.

E, se bem ajuizamos, foi com esta factualidade que o Tribunal a quo veio a decidir a já referida percentagem de culpa.

Ora, sem embargo do devido respeito por outra opinião, e em conformidade com o que até aqui se deixou exposto, afigura-se-nos que o Tribunal a quo incorreu no vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, vício este por nós entendido como aquele que ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 16.03.2017, Proc. n.° 164/2017, de 30.03.2017, Proc. n.° 169/2017 e de 13.07.2017, Proc. n.° 494/2017, podendo-se também sobre o dito vício em questão e seu alcance, ver o recente Ac. do Vdo T.U.I. de 24.03.2017, Proc. n.° 6/2017).

Com efeito, a matéria de facto (elencada no Acórdão recorrido) não localiza, (mínimamente), o “local do embate”, (se o mesmo ocorre no início, meio ou fim da via, ou seja, a que distância do passeio), nada dizendo também quanto à sua “dimensão”, (se a mesma tinha dois, três ou mais metros de largura, omitindo a eventual existência de “marcas de travagem e a sua extensão”), nada referindo também às pela recorrente alegadas “cercas no passeio” e “local” (“brecha”) que o ofendido terá utilizado para se introduzir na via, matéria esta que, cremos nós, apresenta-se imprescindível para uma boa – ou mais adequada – decisão no que toca à culpa pelo acidente (e sua percentagem), e que, estando indiciada nos autos, (nomeadamente, no croquis e fotografias juntas), apresenta-se-nos evidente e lógico que não poderá deixar de ter sido “matéria” que foi (certamente) abordada em audiência de julgamento, e que, por isso, sendo “matéria objecto do processo” devia ser objecto de expressa pronúncia em sede de “decisão da matéria de facto”.

Na verdade, um acidente de viação, (e sem prejuízo da rapidez com que possa ocorrer), deve de ser – sempre – apreciado como um “facto dinâmico”, e não apenas como uma mera “falta de atenção de um dos intervenientes” e/ou “existência de uma passagem para peões a X metros do local de embate”.

É claro que tais elementos são (muito) relevantes, mas não se apresentam – pelo menos no caso dos autos – mínimamente suficientes para se compreender a alegada “dinâmica do evento” a fim de, com o necessário e desejável rigor, se poder decidir da (eventual) culpa dos intervenientes e, se for o caso, da sua percentagem.

Dest’arte, e em face do exposto, não se apresentando o dito vício sanável por este T.S.I., imperativo é o reenvio dos autos para, em novo julgamento, se (tentar) apurar a atrás aludida matéria e, após expressa pronúncia sobre a mesma, proferir-se nova decisão em conformidade.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam decretar o reenvio dos autos nos exactos termos consignados.

Pelo seu decaimento – quanto ao alegado “erro notório” – pagará a recorrente a taxa de justiça de 4 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 21 de Setembro de 2017
José Maria Dias Azedo
Tam Hio Wa
Chan Kuong Seng (entendo que circunscrito o objecto do presente recurso ao pleito civil então enxertado nos subjacentes autos penais, o art.º 629.º, n.º 4, do CPC, é aplicável à presente lide recursória, e por isso concordo com a ampliação oficiosa da matéria de facto probanda).

Proc. 837/2017 Pág. 16

Proc. 837/2017 Pág. 15