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Processo nº 377/2017
(Autos de recurso cível)

Data: 28/Setembro/2017

Assuntos: Legitimidade processual; incertos
      Sucessão na posse - posse exercida em nome da herança

SUMÁRIO
Só os titulares dos interesses em litígio é que são partes legítimas no processo, para pedir ou contra eles ser pedida a composição do litígio, e para tal, deve ser considerada a relação material controvertida configurada pelo autor.
Se, conforme o alegado pelo autor na sua petição inicial, a relação material controvertida é estabelecida entre ele (ou também sua progenitora) e o proprietário do imóvel, e não foram invocadas outras razões ou indicados outros indivíduos que tenham interesse na acção, não se vislumbra qualquer fundamento para fazer intervir os interessados incertos, por falta de legitimidade processual.
Dispõe o artigo 1179º do Código Civil que “por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa”.
Provado está que a posse exercida pelo filho ora recorrente não é uma posse exercida em nome próprio, mas sim em nome da herança aberta por óbito da sua mãe, daí que a morte da mãe do recorrente não é o bastante para fazer o mesmo sentir-se automaticamente sucessor da sua mãe quanto aos eventuais direitos ou interesses que esta tinha sobre o imóvel.
Melhor dizendo, uma vez que o recorrente não indicou que ele era o único herdeiro da sua mãe, não se exclui a existência de outros herdeiros, filhos da mãe do recorrente, com quem o recorrente concorre para a herança. Isso significa que a posse assim exercida pelo mesmo recorrente não lhe permite a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre o prédio em questão; quando muito, tratando-se de uma posse exercida em nome da herança, apenas poderá facultar a aquisição, por usucapião do direito de propriedade à respectiva herança, por ser esta a verdadeira possuidora do prédio, todavia, não é esse o pedido do recorrente.
       
       
O Relator,

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Tong Hio Fong

Processo nº 377/2017
(Autos de recurso cível)

Data: 28/Setembro/2017

Recorrente:
- A (Autor)

Recorridos:
- B e interessados incertos (Réus, representados pelo Ministério Público)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
A, Autor nos autos de acção ordinária que correu termos no Tribunal Judicial de Base da RAEM, inconformado com a sentença que julgou improcedente a acção, dela interpôs recurso para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1. Os interessados incertos são partes legítimas na presente acção, e a sua citação é aliás um requisito legal para a prossecução da acção.
2. Exercendo o autor o poder de facto sobre o prédio, praticando actos como proprietário, sem a oposição de ninguém, deve entender-se que existe corpus possidendi.
3. Existindo corpus possidendi, deve presumir-se que existe animus possidendi, a não ser que a contraparte faça prova contrária; e
4. A posse da mãe do A. deve somar-se à posse do A. para efeitos do cômputo do prazo da usucapião.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o recurso apresentado pelo A. ser recebido e deferido, por provado, e em consequência deve a Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que declare o A., ora recorrente, como o legítimo titular do direito de propriedade do prédio em causa nos presentes autos, para todos os efeitos legais, nomeadamente o de o poder registar em seu nome na Conservatória do Registo Predial, assim se fazendo a costumeira JUSTIÇA!”
*
Ao recurso não respondeu o Ministério Público, em representação dos réus.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
O prédio com o n.º 19 da travessa dos Alfaiates, em Macau, encontra-se inscrito na Matriz Predial Urbana sob o n.º 10310, em nome de B e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 3310, a fls. 229v, do Livro B16.
B adquiriu o mencionado o prédio por escritura celebrada em 1 de Julho de 1937.
O Autor vive no prédio em questão desde há, pelo menos, 30 anos.
Algum tempo depois de o Autor e a mãe terem vivido no prédio na qualidade de arrendatários, a mãe do Autor, entretanto falecida, comprou o prédio em causa.
A família do Autor e este utilizam o prédio em questão como residência de família desde há, pelo menos, 30 anos.
Desde, pelo menos, depois da morte da mãe do Autor, o Autor efectua o pagamento da electricidade, água e telefones devidos do prédio.
Desde, pelo menos, depois da morte da mãe do Autor, o Autor procede às necessárias reparações e limpezas do mencionado prédio, actuando à vista de todos, e de forma continuada, sem a oposição de ninguém, como se de verdadeiro proprietário se tratasse.
Pelo menos, depois da morte da mãe do Autor, o Autor procede ao pagamento da respectiva contribuição predial.
O Autor é reconhecido por toda a gente e, designadamente, pela vizinhança, como legítimo proprietário do mencionado prédio.
*
São duas as questões surgidas neste recurso.
A primeira questão é saber se os incertos são partes legítimas nesta acção, e a segunda consiste em saber se o autor pode adquirir o direito de propriedade da fracção em causa por usucapião.
Vejamos.
Estatui-se no artigo 58º do Código de Processo Civil que “na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Como observa Viriato de Lima, “a legitimidade é uma posição do autor ou do réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objecto do processo.”
Por outras palavras, só os titulares dos interesses em litígio é que são partes legítimas no processo, para pedir ou contra eles ser pedida a composição do litígio, e para tal, deve ser considerada a relação material controvertida configurada pelo autor.
No caso vertente, segundo o alegado pelo autor na sua petição inicial, a relação material controvertida é estabelecida entre ele (ou a mãe) e o proprietário do imóvel, e não foram invocadas outras razões ou indicados outros indivíduos que tenham interesse na acção.
Desta sorte, não se descortinando qualquer fundamento para fazer intervir os interessados incertos, improcedem, pois, as razões aduzidas pelo recorrente, confirmando a sentença recorrida quanto a esta parte.
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A segunda respeita à questão de saber se o recorrente pode adquirir o direito de propriedade por usucapião.
Entende o Tribunal recorrido que não se verifica, por parte do recorrente, o necessário animus possidendi.
Quid iuris?
Estatui o artigo 1212º do Código Civil que “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos relais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação”.
A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1175º do CC).
Dito isto, dúvidas não restam de que a existência da posse não se basta com a actuação ou poder de facto (corpus), mas é necessário ainda que exista a intenção de actuar como titular de um direito real sobre a coisa (animus).
Mais precisamente, é possuidor aquele que exerce o poder de facto sobre a coisa com a convicção e a intenção de actuar como titular do direito real correspondente.
No caso vertente, provado está que o recorrente vive no prédio em questão desde há, pelo menos, 30 anos. Na fase inicial, o recorrente e a sua mãe aí viviam na qualidade de arrendatários, apenas passado algum tempo é que a sua mãe comprou o prédio sem se ter outorgado escritura pública, pelo que a partir de então esta passou a ser possuidora do referido prédio.
Provado ainda que algum tempo depois, a mãe faleceu, passando o recorrente a efectuar o pagamento da respectiva contribuição predial, electricidade, água e telefones devidos do prédio, e proceder a necessárias reparações e limpezas do mesmo prédio, à vista de todos, de forma continuada, sem oposição de ninguém, como se de verdadeiro proprietário se tratasse.
Dispõe-se no nº 2 do artigo 1181º do Código Civil que “presume-se que a posse continua em nome de quem a começou”.
Também se estipula no artigo 1179º do Código Civil que “por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa”.
Ora bem, como decorre da matéria de facto dada como provada, é de verificar que a posse exercida pelo recorrente não é uma posse nova, mas sim a continuação da posse que a sua mãe exerceu até a sua morte, pois quem a começou foi a mãe do recorrente, e não tendo sido ilidida tal presunção, impõe-se concluir que a posse exercida pelo recorrente, após a morte da sua mãe, era apenas continuação da posse exercida em nome da sua progenitora ou em nome da herança, e não em nome próprio.
Por outro lado, nada resulta dos autos que o recorrente tenha invertido o título da posse para se poder concluir que havia cessado a posse anterior exercida pela sua mãe.
Face a estas considerações, somos a concluir que a posse exercida pelo recorrente não é uma posse exercida em nome próprio, mas sim em nome da herança aberta por óbito da sua mãe, pelo que, tem toda a razão a sentença recorrida ao referir que a morte da mãe do recorrente não é o bastante para fazer o mesmo sentir-se automaticamente sucessor da sua mãe quanto aos eventuais direitos ou interesses que esta tinha sobre o imóvel.
Uma vez que o recorrente não indicou que ele era o único herdeiro da sua mãe, não se exclui a existência de outros herdeiros, filhos da mãe do recorrente, com quem o recorrente concorre para a herança. Isso significa que a posse assim exercida pelo mesmo recorrente não lhe permite a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre o prédio em questão; quando muito, tratando-se de uma posse exercida em nome da herança, apenas poderá facultar a aquisição, por usucapião do direito de propriedade à respectiva herança, por ser esta a verdadeira possuidora do prédio, todavia, não é esse o pedido do recorrente.
Por tudo quanto deixou exposto, bem andou a sentença recorrida ao julgar improcedente a acção.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente A, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.
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RAEM, 28 de Setembro de 2017
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira



Recurso cível 377/2017 Página 8