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Processo n.º 137/2017
(Autos de recurso cível)

Data: 19/Outubro/2017

Assuntos: Entrega do cheque
  Extinção da dívida
  Compensação de dívidas

SUMÁRIO
O cheque é um meio de pagamento pelo qual uma pessoa (sacador) ordena a um banco (sacado), onde tenha fundos disponíveis (provisão), o pagamento à vista de determinada importância, a seu favor ou de terceiro (tomador ou beneficiário).
Assim, independentemente de a recorrente ter havido ou não o desconto do cheque, com a entrega do cheque, a dívida fica extinta não por efeito de dação, por sim por pagamento.
Uma vez verificada a reciprocidade de créditos, deve operar-se a respectiva compensação de dívidas entre a recorrente e a recorrida.
       
O Relator,

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Tong Hio Fong


Processo nº 137/2017
(Autos de recurso cível)

Data: 19/Outubro/2017

Recorrente:
- A (exequente/embargada)

Recorrida:
- B (executada/embargante)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
Nos autos de execução movida pela exequente A (doravante designada por “recorrente”) contra a executada B (doravante designada por “recorrida”), veio esta deduzir contra aquela, por apenso, a oposição à execução por meio de embargos, pedindo a redução da dívida exequenda, com fundamento na errada quantificação do valor do mútuo e na compensação de dívidas.
Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base, foram julgados parcialmente procedentes os embargos e, em consequência, foi determinada a invocada compensação de dívidas.
Inconformada, interpôs a exequente A recurso para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1. A Recorrente recorre da Sentença na parte em que é vencida, isto é, na parte em que o Tribunal Recorrido decidiu parcialmente procedentes os embargos e determinou que se procedesse à compensação parcial da dívida.
2. O que está em questão é determinar se um cheque entregue por um terceiro à Recorrente, mas não descontado, nas circunstâncias dos factos tidos por provados nesta acção, constitui um pagamento de dívida e fundamento para operar a compensação.
3. Não há lugar a compensação porque não resulta dos autos qualquer facto que permita concluir que da entrega daquele cheque resultou um crédito da Recorrida (Embargante) sobre a Recorrente (Embargada). Só existiria um crédito da Recorrida sobre a Recorrente se a Recorrente de algum modo devesse dinheiro à Recorrida. Tal não é o caso.
4. O cheque não foi pago, e uma vez que o cheque é uma dação pro solvendo (art. 831º do CC), que tem por objecto a assunção de uma dívida (art. 831º/2), destinando-se a facilitar o pagamento, não constituindo ela mesma (a dação) uma forma de pagamento. Assim, não se extinguiu qualquer dívida do terceiro e, por isso, mesmo se fossem verdadeiros os pressupostos em que assenta a decisão do Tribunal, não geraria qualquer crédito a favor da Recorrida.
5. Não tendo a entrega do cheque correspondido a um pagamento e ao nascimento de um crédito, não há lugar a compensação de créditos.
6. O alegado crédito da Recorrida não dá direito a acção de cumprimento ou à execução do património do alegado devedor (a Recorrente), nem habilita, quem o invoca, a obter a respectiva compensação face a um crédito que é certo, seguro e exigível.
7. Procedem contra o alegado crédito da Recorrida excepções peremptórias de direito material, nos termos dos arts. 838º/1-a) do CC e 412º/3 do CPC: (i) o não pagamento do cheque e, logo, a não operação da dação in solvendo; (ii) o facto de a conta bancária através da qual o cheque seria pago não estar provisionada para o efeito; (iii) o facto de a Recorrente não ter descontado o cheque por facto não lhe atribuível.
8. Como refere Antunes Varela, “Para que o devedor se possa livrar da obrigação por compensação, é preciso que ele possa impor nesse momento ao notificado a realização coactiva do crédito (contra crédito) que se arroga contra este”. Tal não é o caso.
9. Por outro lado, as duas obrigações não têm por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade (art. 838º/1-b) do CC). Por isso é uma dação e não um pagamento.
10. Não se trata, pois de uma dívida reconhecida.
11. Acresce que não existe reciprocidade dos créditos, nos termos dos arts. 838º/1 e 842º.
12. Por outro lado, a lei não permite a compensação quando houver prejuízo de direitos de terceiro, constituídos antes de os créditos se tornarem compensáveis (art. 844º/2). Ora, no caso em apreço, o desconto ou não desconto do cheque produziria efeitos jurídicos na esfera jurídica de terceiro.
13. Estamos entre um crédito certo, seguro e exigível e um outro hipotético, eventual e inexigível, o que não permite compensação.
14. O Tribunal recorrido afirma que “Desses factos, vê-se que a Embargada recebeu, de facto, o sinal prestado pelo promitente-comprador” (o terceiro). Tal não é correcto. Sinal é, como resulta dos arts. 434º e 436º do CC, uma forma de pagamento. No caso, uma forma de pagamento antecipado.
15. Um cheque não descontado não constituiu uma forma de pagamento. Logo, não pode valer como sinal, pois sinal é uma forma de pagamento (antecipada).
16. A Recorrida alegou a existência de um direito de crédito sobre a Recorrente do qual resulta outro direito, o direito de compensação de créditos. Para tal teria de provar a existência desses direitos, ou seja, os factos constitutivos desses direitos: art. 335º/1 & 3 do CC.
17. Ora, não foi feita prova de que foi efectuado qualquer pagamento, não foi feita prova de que o sinal foi pago, nem foi feita prova de que se constituiu um direito de crédito a favor da Recorrida sobre a Recorrente. E o ónus da prova cabia à Recorrida.
18. O Tribunal concluiu que a Recorrente é responsável perante a Recorrida em decorrência da relação de representação advinda da outorga e aceitação da procuração. Não da relação advinda do cheque, pois da emissão e recepção do cheque em si não resulta qualquer relação entre Recorrente e Recorrida (somente entre Recorrente e o terceiro).
19. Porém, nada disto foi alegado e nada disto foi provado nos autos, tendo o Tribunal violado o disposto no arts. 563º/2 e 571º/1-d) do CPC.
20. O Tribunal refere que “o facto de estar provado que a procuração utilizada por esta para outorgar a promessa de venda foi passada para garantir o pagamento do empréstimo leva a concluir que a Embargada recebeu o cheque porque quis e em proveito próprio”. Esta suposição não pode ser feita pelo Tribunal na falta de factos alegados e provados.
21. A afirmação de que “estando o cheque emitido em favor da Embargada, o não desconto imediato do cheque só pode ser imputado à Embargada” não é juridicamente aceitável.
22. É também juridicamente insustentável a conclusão de que “para os efeitos pretendidos pela Embargante, deve-se considerar que a Embargada recebeu o valor do cheque quando o cheque lhe foi entregue”. Esta suposição não é processualmente aceitável. O Tribunal não pode dar como suposto que o cheque foi pago quando deu por provado que o cheque não foi pago.”
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Ao recurso não respondeu a recorrida.
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Corridos os vistos, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença deu por assente a seguinte matéria de facto com pertinência para a decisão do recurso:
O documento junto a fls. 23 e 24 nos autos principais serve como título executivo nesses autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (alínea A) dos factos assentes)
Foi acordado que a Embargante assinaria uma procuração a favor da Embargada conferindo-lhe plenos poderes sobre a fracção autónoma designada por “C28”, correspondente ao XXº andar “C”, do prédio urbano sito em Macau, com os números XXX da Rua Central da Areia Preta e 472-C da Rua 1º de Maio, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXX, e registada a favor da Embargante a coberto da inscrição n.º XXX do Livro G, como forma de garantir que esta lhe pagaria o empréstimo referido no título executivo: (resposta ao quesito da 3º da base instrutória)
A Embargante assinou a procuração a favor da Embargada no dia 28 de Março de 2014. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
Em 27 de Março de 2015, a Embargada, na qualidade de procuradora da Embargante, prometeu vender a favor de um terceiro a fracção autónoma referida na resposta ao quesito 3º, tendo a Embargada e este terceiro acordado no preço e nas condições. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
Na sequência dessa promessa de compra e venda, o referido terceiro entregou à Embargada o cheque junto a fls. 81 dos autos, no montante de HK$1.200.000,00, a título de sinal. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
Até à data da discussão e julgamento ocorrida em 19 de Maio de 2016, a Embargada manteve em seu poder o cheque referido na resposta ao quesito 6º, o qual foi emitido em nome da Embargada (resposta ao quesito 8º da base instrutória).
A Embargada não apresentou o cheque a pagamento (resposta ao quesito 9º da base instrutória).
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O caso dos autos
A recorrente (exequente e embargada) concedeu um empréstimo no valor de HKD$4.500.000,00 à recorrida (executada e embargante).
Para garantir o pagamento do empréstimo, foi outorgada pela recorrida a favor da recorrente uma procuração conferindo plenos poderes sobre uma fracção autónoma.
A dada altura, através da referida procuração, a recorrente prometeu vender, em nome da recorrida, a dita fracção, a favor de terceiro, tendo recebido um cheque, no valor de HKD$1.200.000,00, a título de sinal.
Foi movida execução contra a recorrida, tendo esta deduzido embargos, alegando ter lugar a compensação de dívidas, em virtude de a recorrente ter recebido de terceiro o montante de HKD$1.200.000,00, a título de sinal.
Não obstante, a recorrente nunca procedeu ao desconto do referido cheque.
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A questão que se coloca é saber se a compensação alegada pela embargante, ora recorrida, deveria ser atendida, na medida em que a exequente, ora recorrente, apesar de ter recebido um cheque no valor de HKD$1.200.000,00, ainda não procedeu ao respectivo desconto.
Preceitua-se no nº 1 do artigo 838º do CC:
“Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio da compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos cumulativos:
a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material;
b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.”
Como observa Menezes de Cordeiro1, “para que a compensação se verifique é necessário: a) a existência de dois créditos recíprocos; b) a exigibilidade do crédito do autor da compensação; c) que as obrigações sejam fungíveis e da mesma espécie e qualidade; d) a não exclusão da compensação pela lei; e) a declaração da vontade de compensar”.
Antes de tudo, para que a compensação possa funcionar, é necessário que os créditos objecto de compensação existam.
No que toca à recorrente, provado está que ela é credora da recorrida no montante de HKD$4.500.000,00, por causa dum empréstimo concedido por aquela.
Em relação à recorrida, alegou que tomou conhecimento de que a recorrente, na qualidade de sua procuradora, recebeu de terceiro um montante de HKD$1.200.000,00, a título de sinal, na sequência da celebração de um contrato-promessa de compra e venda. Com efeito, pediu a extinção parcial de dívidas por compensação.
Ora bem, conforme a matéria provada, verifica-se que a recorrente prometeu vender, em nome da recorrida, um imóvel pertencente a esta e recebeu do promitente-comprador um cheque emitido em nome da recorrente no valor de HKD$1.200.000,00. Entretanto, a recorrente nunca procedeu ao desconto do referido cheque.
Entende a recorrente que, tratando-se de uma datio pro solvendo, não tendo efectuado o desconto do cheque, não deve ser considerado feito o pagamento do sinal prestado pelo promitente-comprador.
Vejamos.
Dispõe o nº 1 do artigo 831º do CC que “se o devedor efectuar uma prestação diferente da devida para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito, este só se extingue quando for satisfeito, e na medida respectiva”.
É verdade que, tratando-se de dação ou datio pro solvendo, a dívida não se extingue pela mera entrega da coisa, mas só pela realização efectiva do seu valor ou conteúdo.
Aliás, é o que se decidiu no Acórdão do TUI, no Processo n.º 21/2016: “a dação em cumprimento (datio in solutum) distingue-se da dação em função do cumprimento (datio pro solvendo), na medida em que, no primeiro caso, o devedor pretende, com a prestação diversa da devida, extinguir imediatamente a obrigação, ao passo que, no segundo, pretende apenas facilitar o cumprimento, fornecendo ao credor os meios necessários para este obter a satisfação futura do seu crédito.”
No caso vertente, houve entrega de um cheque do promitente-comprador à recorrente, para pagamento do sinal.
O cheque é um meio de pagamento pelo qual uma pessoa (sacador) ordena a um banco (sacado), onde tenha fundos disponíveis (provisão), o pagamento à vista de determinada importância, a seu favor ou de terceiro (tomador ou beneficiário).2
Podendo dizer-se que estaria em causa uma datio pro solvendo, mas com regime específico, isto porque não se pode deixar de contemplar o regime de cheque previsto no Código Comercial.
Preceitua-se no disposto no artigo 1239º do Código Comercial que o cheque é pagável à vista, daí que o cheque emitido e entregue ao tomador representa desde logo uma ordem para pagamento imediato.
Sendo assim, a partir do momento em que o cheque foi emitido pelo sacador, este não pode exigir do banco sacado o seu não pagamento (artigos 1240º e 1243º), ou seja, verifica-se uma indisponibilidade patrimonial do sacador em relação ao montante titulado no cheque.
Isto posto, e em bom rigor, independentemente de a recorrente ter havido ou não o desconto do cheque, com a entrega do cheque, a dívida já ficou extinta não por efeito de dação, por sim por pagamento.
Uma vez efectuado o pagamento do sinal pelo promitente-comprador à recorrente, mediante a entrega do cheque, esta, enquanto procuradora da recorrida, passa a ser devedora da recorrida, daí que, verificada está a reciprocidade de créditos, deve operar-se a respectiva compensação de dívidas entre a recorrente e a recorrida.
Aqui chegados, bem andou a sentença recorrida ao decidir pela compensação parcial de dívidas, negando-se provimento ao recurso.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pela recorrente A.
Custas pela recorrente nesta instância.
Registe e notifique.
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RAEM, 19 de Outubro de 2017
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
1 Obrigações, 1980, 2º-221
2 José Maria Pires, Direito Bancário, 2º volume, pág. 317
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