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Processo nº 998/2017 Data: 07.12.2017
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”.
“Documento de identificação”.
Bilhete de Identidade da R.P.C..

SUMÁRIO
  O “Bilhete de Identidade” emitido pelas autoridades da República Popular da China integra o conceito de “documento de identificação” do art. 243°, al. c) do C.P.M., pelo que a sua “exigência como garantia de um empréstimo para jogo” constitui o seu autor na prática do crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelos art°s 13°, n.° 1 e 14° da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M..
O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 998/2017
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, arguido com os sinais dos autos, como autor material da prática de 1 crime de “usura para jogo”, p. e p. pelo art. 13°, n.° 1 da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 7 meses de prisão, e outro de “sequestro”, p. e p. pelo art. 152°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão.

Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 1 ano e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, e na pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogo por 3 anos; (cfr., fls. 168 a 175-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Do assim decidido, vem o Ministério Público recorrer, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “violação os art°s 14° da Lei n.° 8/96/M e art. 243°, al. c) do C.P.M.”, pedindo a condenação do arguido como autor da prática 1 crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelos art°s 13°, n.° 1 e 14° da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M., (como acusado estava); (cfr., fls. 180 a 183-v).

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Admitido o recurso e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“O Ministério Público interpôs o presente recurso do acórdão de 8 de Setembro de 2017, exarado no processo CR3-16-0196-PCC, que, entre o mais, condenou o arguido A nas penas parcelares de 1 ano e 6 meses de prisão pela co-autoria de um crime de sequestro, previsto e punível pelo artigo 152.°, n.° 1, do Código Penal, e 7 meses de prisão pela autoria de um crime de usura para jogo, previsto e punível pelo artigo 13.° da Lei 8/96/M, de 22 de Julho. Em cúmulo jurídico, a pena global viria a ser fixada em 1 ano e 9 meses, com execução suspensa por dois anos.
Na parte relativa à usura, o arguido estava acusado de um crime de usura para jogo com exigência ou aceitação de documentos, da previsão dos artigos 14.° e 13.° daquela Lei 8/96/M, porquanto, nos termos do libelo acusatório, o ofendido B entregara o seu Bilhete de Identidade, da República Popular da China, ao arguido e seus colaboradores, por exigência destes, para retenção como garantia do empréstimo.
Todavia, não obstante haver dado como provada essa matéria, o acórdão viria a ponderar que tal documento de identificação (Bilhete de Identidade da República Popular da China), por não poder ser utilizado directamente em Macau, não integra o leque de documentos abrangido pelo artigo 243.°, alínea c), do Código Penal, norma para que remete o apontado artigo 14.° da Lei 8/96/M. Daí que tenha considerado não preenchido o elemento típico exigência ou aceitação de documentos e haja declinado punir o arguido nos moldes daquele artigo 14.°, fazendo-o por reporte à moldura do tipo-base do artigo 13.° da Lei 8/96/M.
É contra este entendimento que se insurge a Exm.a colega recorrente, imputando ao acórdão recorrido a violação, por erro de interpretação, dos artigos 14.° da Lei 8/96/M e 243.°, alínea c), do Código Penal.
Cremos que lhe assiste razão, permitindo-nos dar aqui por reproduzida a sua pertinente e perspicaz argumentação.
Desconhecemos que o Código Penal ou outra lei de Macau façam distinção, para efeitos de protecção penal, entre documento público de identificação de Macau e documentos públicos de identificação estrangeiros, aqui incluídos todos aqueles que não são oriundos das autoridades em cujo espaço geográfico vigora o ordenamento jurídico de Macau.
A interpretação em que se louvou o douto acórdão assenta numa leitura restritiva da norma do artigo 243.°, alínea c), do Código Penal, que não é inculcada pela própria norma, nem no seu espírito, nem tão pouco na sua letra.
A noção de documento de identificação constante daquele inciso começa por uma referência ao bilhete de identidade de residente, que é a designação que o mais comum documento de identificação civil toma em Macau. Mas isso não significa que outros documentos de identificação estrangeiros, comummente designados de bilhete de identidade, cartão de identidade, cartão de cidadão, também vulgarmente conhecidos pela sigla ID (identity document) não estejam abrangidos pela norma, Tanto assim que, no primeiro conjunto de documentos previsto na norma, a par do bilhete de identidade de residente, logo aparece a referência a outro documento autêntico que sirva para certificar a identidade. E, salvo melhor juízo, a norma não impõe que essa aptidão para certificar a identidade seja uma aptidão necessária e exclusivamente válida no espaço da Região Administrativa Especial de Macau.
Daí que um Bilhete de Identidade da China continental – como aquele que estava em causa e assim foi considerado na matéria dada como provada – não possa deixar de se considerar apto a certificar a identidade do seu titular e a integrar, por esse facto, a previsão normativa da alínea c) do artigo 243.° do Código Penal, para a qual remete o artigo 14.° da Lei 8/96/M. Nenhuma razão plausível se descortina, pois, para colocar em pé de desigualdade a protecção penal conferida aos documentos públicos de identidade de Macau e aos documentos públicos de identidade estrangeiros.
Posto isto, havia que punir o referido A pelo crime de usura para jogo com exigência ou aceitação de documentos identificativos, em pena cuja medida, atenta a moldura abstracta aplicável e os critérios por que se norteou a decisão, dev1a situar-se entre os 2 anos e os 2 anos e 6 meses de prisão, a qual, em cúmulo jurídico com a pena aplicada pelo crime de sequestro, redundaria em pena conjunta não superior a 3 anos de prisão, igualmente suspensa, por 2 anos, na sua execução, indo neste sentido o meu parecer.
Procedem, em suma, os argumentos dirigidos contra o acórdão recorrido, pelo que, no provimento do recurso, deve alterar-se a punição por forma semelhante à supra sugerida”; (cfr., fls. 236 a 237-v).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 170 a 172, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (não havendo factos por provar).

Do direito

3. Vem o Ministério Público recorrer do Acórdão prolatado pelo T.J.B., insurgindo-se contra a decisão de condenação do arguido A como autor material da prática de 1 crime de “usura para jogo”, p. e p. pelo art. 13° da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M..

Em síntese, é de opinião que incorreu o Colectivo a quo em “violação os art°s 14° da Lei n.° 8/96/M e art. 243°, al. c) do C.P.M.”, pedindo a condenação do arguido como autor da prática 1 crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelos art°s 13°, n.° 1 e 14° da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M., (como acusado estava).

Cremos que tem o Exmo. Recorrente razão, sendo de se acolher e subscrever o que alegado vem em sede de motivação de recurso e posterior Parecer, pouco havendo a acrescentar.

Não se deixa porém de consignar o que segue.

Vejamos.

Prescreve o art. 13° da Lei n.° 8/96/M que:

“1. Quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial para si ou para terceiro, facultar a uma pessoa dinheiro ou qualquer outro meio para jogar, é punido com pena correspondente à do crime de usura.
2. Presume-se concedido para jogo de fortuna ou azar a usura ou mútuo efectuado nos casinos, entendendo-se como tais para este efeito, todas as dependências especialmente destinadas à exploração de jogos de fortuna ou azar, bem como outras adjacentes onde se exerçam actividades de carácter artístico, cultural, recreativo, comercial ou ligadas à indústria hoteleira.
3. A conduta do mutuário não é punível”.

Por sua vez, estatui o seguinte art. 14° da mesma Lei que:

“Se o crime previsto no artigo anterior for praticado com aceitação ou exigência dos respectivos devedores de documento de identificação nos termos da alínea c) do artigo 243.º do Código Penal de Macau, para servir de garantia, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos”.

E, nos termos do art. 243°, al. c) do C.P.M.:

“Documento de identificação: o bilhete de identidade de residente ou outro documento autêntico que sirva para certificar a identidade, o passaporte ou outros documentos de viagem e respectivos vistos, qualquer dos documentos exigidos para a entrada e permanência em Macau ou os que certificam a autorização de residência, bem como qualquer documento a que a lei atribui força de certificação do estado ou situação profissional das pessoas, donde possam resultar direitos ou vantagens, designadamente no que toca a subsistência, aboletamento, deslocação, assistência, saúde ou meios de ganhar a vida ou de melhorar o seu nível”; (sub. nosso).

E, perante a factualidade dada como provada – da qual resulta que ao ofendido dos autos foi-lhe exigida a entrega do seu Bilhete de Identidade emitido pelas autoridades da República Popular da China como garantia do empréstimo para jogo que lhe foi concedido, e atento o estatuído no transcrito art. 243°, al. c) do C.P.M., à vista está a solução.

Com efeito, iria o legislador fazer uma “distinção” (como a referida na sentença), não considerando como “documento de identificação” (para efeitos do C.P.M.), um Bilhete de Identidade da República Popular da China, (emitido pelas autoridades da R.P.C.)?

E, porque motivos?

Não se alcançam.

De facto, sendo da essência do conceito de “documento” (para efeitos de relevância penal) a sua aptidão para provar um “facto juridicamente relevante”, não seria pura (e gratuita) discriminação, já que o referido documento não deixa de ser um “documento – autêntico – próprio” para “certificar a identidade do seu titular”?

E estaria o legislador de tal forma desatento – e em desarmonia com o estatuído no art. 8° do C.C.M. – que não terá ponderado que os (potenciais) “ofendidos do crime de usura”, (nomeadamente, do art. 14° da Lei n.° 8/96/M), podem ser indivíduos de qualquer origem, “nacionalidade” ou “naturalidade”, (merecendo, aliás, referir que tanto quanto nos é dado a perceber, são, na grande maioria dos casos, “turistas”, pessoas do exterior, e não apenas residentes da R.A.E.M.)?

Dito isto, evidente se nos apresentando a resposta e manifesto sendo que o “documento” em questão integra o conceito de “documento de identificação” da alínea c) do art. 243° do C.P.M. – em especial, na parte que se refere a “outro documento autêntico que sirva para certificar a identidade” – à vista está a solução, havendo agora que se avançar para a(s) pena(s) a aplicar.

–– Quanto à(s) “pena(s)”.

Pois bem, nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

E, em sede de determinação da pena, tem este T.S.I. entendido que “Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 20.07.2017, Proc. n.° 570/2017, de 28.09.2017, Proc. n.° 812/2017 e de 16.11.2017, Proc. n.° 722/2017).

No caso, ao crime pelo arguido (recorrido) cometido – dado que agravado pela “exigência do documento de identificação” do ofendido – corresponde a pena de 2 a 8 anos de prisão; (cfr., art°s 13 e 14° da Lei n.° 8/96/M).

Nesta conformidade, ponderando nos critérios do art. 40° e 65° do C.P.M., e na moldura penal em questão, cremos que justa e adequada é a pena de 3 anos de prisão para este crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelos art°s 13°, n.° 1 e 14° da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M..

Face ao assim decidido, tendo presente a pena de 1 ano e 6 meses de prisão aplicada pelo crime de “sequestro”, em causa estando agora uma moldura penal de 3 a 4 anos e 6 meses de prisão, e ponderando no estatuído no art. 71° do C.P.M., justa e equilibrada se nos apresenta a pena única de 3 anos e 9 meses de prisão, (inviável sendo a manutenção da suspensão da execução da pena por verificado não estar o pressuposto material do art. 48° do C.P.M.).

Decisão

4. Nos termos que se deixam expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, ficando o arguido A condenado pela prática de 1 crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelos art°s 13°, n.° 1 e 14° da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 3 anos de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos e 9 meses de prisão, mantendo-se a pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogo por 3 anos.

Pelo seu decaimento, pagará o arguido recorrido a taxa de justiça de 5 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 07 de Dezembro de 2017
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa

Proc. 998/2017 Pág. 2

Proc. 998/2017 Pág. 1