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Processo n.º 83/2017. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrentes: A, B e C.
Recorrida: D.
Assunto: Acção de impugnação da paternidade. Legitimidade das partes em acção para declaração de inexistência de casamento. Poder do juiz de providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais.
Data do Acórdão: 10 de Janeiro de 2018.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
I – É pressuposto da acção de impugnação da paternidade, que o indivíduo que consta no registo como pai de alguém era casado com a mãe deste ao tempo do seu nascimento ou da concepção (n.º 1 do artigo 1685.º do Código Civil), o que não sucede quando o autor pede a declaração da inexistência do mencionado casamento.
II – As pessoas que constam do registo do casamento como tendo celebrado este contrato, ou seja, os cônjuges, têm manifesto interesse em contradizer, em acção em que se pede a declaração que o casamento não foi celebrado, pelo prejuízo que dessa procedência pode advir, pelo que são partes legítimas como réus, se não forem os autores.
III – O poder do juiz de providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais é incumbência oficiosa e, portanto, vinculada, face ao disposto no n.º 2 do artigo 6.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 427.º, ambos do Código de Processo Civil.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima


ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório e factos provados
D instaurou no Tribunal Judicial de Base acção declarativa de simples apreciação negativa com processo comum contra A, B e C, pedindo que:
1. A acção fosse julgada procedente, com fundamento na circunstância de os conteúdos da escritura pública de casamento e do certificado de casamento apresentados à Conservatória do Registo Civil de Macau pela 1ª ré sucessivamente em 14 de Julho de 2004 e 31 de Janeiro de 2007, não corresponderem à verdade, pelo que, deve ser declarado que E não se casou com a 1.ª ré;
2. Fosse cancelado o registo de E como pai das 2.a e 3.a rés constante dos assentos de nascimento das mesmas (n.ºs XXXX/2004/RC e XXX/2007/RC) emitidos pela Conservatória do Registo Civil de Macau, nos termos do art.º 3.º, n.º2 do Código do Registo Civil, conjugado com o art.º 70.º do mesmo código (Por E não se ter casado com a 1ª ré, a presunção da paternidade prevista no art.º 1685.º, n.º 1 do Código Civil não é aplicável ao registo de nascimento das 2ª e 3ª rés);
3. Nos termos do art.º 455.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, seja ordenado à 1.ª ré que apresente a V. Ex.ª a “escritura pública de casamento” n.º XXX, da série de “Sui Yue Zheng (2004)” emitida em 24 de Março de 2004 pelo Cartório Notarial do Distrito Yuexiu, Cidade de Guangzhou e o “certificado de casamento” n.º XXXX, da série de “Shunde” emitido em 18 de Setembro de 1998 pelo governo popular da Cidade de Shunde, que tinham sido exibidos e apresentados à Conservatória do Registo Civil de Macau em 14 de Julho de 2004 e 31 de Janeiro de 2007 pela 1.ª ré, a fim de ser feito o exame pericial sobre os dois documentos, para efeitos de confirmação de sua veracidade.
*
Após a contestação de A, 1ª ré, por si e em representação das 2ª e 3ª rés, foi lavrado o seguinte despacho pela Ex.ma Juíza do Tribunal Judicial de Base:
“No presente caso, embora a autora D tenha indicado que a acção em causa tem como objectivo ilidir o facto base da presunção de paternidade, ou seja entre o falecido E e a 1ª ré A não existe relação matrimonial, depois de feita uma análise da causa e do pedido apresentado pela autora na petição inicial, tudo mostra que a autora vem pedir que seja decretado que entre E e a 1º ré nunca se contraiu o casamento, de tal modo a ilidir a filiação estabelecido entre as rés menores e E com base na presunção de paternidade, bem como cancelar os registos de nascimento onde consta E como pai.
Nos termos do art.º 1685.º, n.º 1 do Código Civil de Macau, presume-se que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio tem como pai o marido da mãe.
Nos termos do art.º 1697.º, n. 1 do mesmo código, se a paternidade presumida nos termos do art.º 1685.º não for a verdadeira, pode ser impugnada em juízo.
Daí resulta que a acção em causa visa ilidir a relação matrimonial, de tal modo a ilidir a filiação estabelecida com base na presunção da paternidade, sendo assim, por qualquer razão que seja ao questionar a paternidade presumida, deve ser intentada a acção de “impugnação da paternidade” nos termos do art.º 1697.º do Código Civil de Macau.
Com base nisso, quanto à legitimidade passiva, nos termos do art.º 1700.º do Código Civil de Macau, conjugado com o art.º 1666.º, n.ºs 1 e 2, al. a) do mesmo código, deve o autor intentar acção contra a mãe, o filho e o presumido pai constantes do registo de nascimento e no caso de morte do presumido pai, devem ser demandados os descendentes, assim no presente caso, as descendentes do falecido E também devem ser rés, mas segundo a petição inicial, a autora não intentou acção contra elas.
Pelo que, nos termos dos art.ºs 230.º, n.º 1, al. d), 414.º, 413.º al. e) do Código de Processo Civil, este Juízo rejeita a petição deduzida pela autora, devido à ineptidão da legitimidade passiva.
Custas pela autora.
Notifique e registe.”

Interposto recurso do despacho pela autora D, o Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 22 de Junho de 2017, decidiu revogar o despacho recorrido, determinando o prosseguimento da acção.
Para tal entendeu que:
- A ilegitimidade plural é sanável, pelo que, nos termos do entendimento da Ex.ma Juíza, esta deveria ter promovido a sanação;
- No caso, nem existe ilegitimidade plural, não sendo necessária a intervenção dos herdeiros do falecido E, porque não estamos perante uma acção de impugnação da paternidade em que se intenta provar que a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável. O que a autora pretende se declare é que não existiu qualquer casamento entre o seu marido E e a 1.ª ré A.
Recorrem agora as rés A, B e C para este Tribunal de Última Instância (TUI), pedindo a revogação do acórdão recorrido, de maneira a prevalecer a decisão de 1.ª instância.
Suscitam as seguintes questões:
- Através da seguinte acção a autora pretende ilidir a paternidade de E em relação a B e C, pelo que a paternidade deve ser impugnada através de acção de impugnação de paternidade;
- O artigo 427.º, n.º 1, do Código de Processo Civil confere ao juiz o poder discricionário de providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias;
- Mesmo a não ser assim, a acção é inviável, devendo ser indeferida liminarmente.

II - O Direito
1. As questões a apreciar
As questões a apreciar são as da qualificação da acção, da legitimidade das partes na acção em questão e se o poder do juiz de providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais é incumbência oficiosa e, portanto, vinculada ou antes, discricionária.

2. Qualificação da acção
Apreciemos os pedidos da autora na petição inicial.
O 3.º pedido não é um verdadeiro pedido do ponto de vista substancial, no sentido que este é usado na alínea d) do n.º 1 do artigo 389.º e nos artigos 390.º a 393.º do Código de Processo Civil. Trata-se de uma pretensão relacionada com a prova, que deve ser convertido em requerimento dirigido ao Juiz.
Com o 1.º pedido pretende a autora que o Tribunal declare que E e a 1.ª ré A não contraíram casamento ou que este é inexistente.
Trata-se de um pedido típico de uma acção de simples apreciação negativa [alínea a) do n.º 2 do artigo 11.º do Código de Processo Civil].
O 2.º pedido é o de que se ordene o cancelamento do registo de paternidade de E em relação a B e C, dado que, segundo a autora, estas duas não beneficiam da presunção de paternidade do marido da mãe, em virtude da procedência do 1.º pedido.
Trata-se nesta parte de uma acção constitutiva [alínea c) do n.º 2 do artigo 11.º do Código de Processo Civil].
Como decidiu o acórdão recorrido, mete-se pelos olhos dentro que não está em causa nenhuma acção de impugnação da paternidade, visto que com esta acção se visa impugnar a paternidade presumida do marido da mãe, tendo o autor de alegar e provar que, de acordo com as circunstâncias, a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável (n.º 2 do artigo 1697.º do Código Civil).
Ou seja, é pressuposto da acção de impugnação da paternidade, que o indivíduo que consta no registo como pai de alguém era casado com a mãe deste ao tempo do seu nascimento ou da concepção (n.º 1 do artigo 1685.º do Código Civil).
Não é isto que a autora pretende. Esta quer que o Tribunal declare que não houve qualquer casamento entre o indivíduo que consta no registo como pai das crianças e a mãe destas e que, como consequência que se cancele o registo de paternidade, que só existe porque se considerou que existia um casamento que, na verdade, não existe, na tese da autora.
Mas, em bom rigor, a errada qualificação da acção, pela Ex.ma Juíza, não é determinante para o mérito do recurso, como se dirá de seguida.

3. Legitimidade das partes em acção em que se pede a declaração de inexistência de casamento
Quanto à legitimidade das partes é evidente a falta de razão do acórdão recorrido, dado que as pessoas que constam do registo do casamento como tendo celebrado este contrato, ou seja, os cônjuges, têm manifesto interesse em contradizer, em acção em que se pede a declaração que o casamento não foi celebrado, pelo prejuízo que dessa procedência pode advir, como se exprimia, com total acerto, o n.º 2 do artigo 26.º do Código de Processo Civil de 1961.
De qualquer maneira, o cônjuge é sujeito da relação material controvertida, tal como é configurada pela autora (artigo 58.º do Código de Processo Civil vigente).
Na verdade, seria incompreensível que alguém pudesse ver o seu casamento anulado, declarado nulo ou inexistente, sem ser o autor da acção ou sem ser chamado a esta como réu, no processo em que se deduz tal pretensão.
Tendo o cônjuge marido já falecido, são os seus herdeiros quem tem legitimidade como réus na acção.
Esta questão é de conhecimento oficioso.

4. Poder do juiz de providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais
O poder do juiz de providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais é incumbência oficiosa e, portanto, claramente vinculada, como toda a doutrina defende, face ao disposto no n.º 2 do artigo 6.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 427.º, ambos do Código de Processo Civil.
A ilegitimidade plural na acção declarativa, por falta de alguém que, devendo estar, não foi indicada como parte principal, é sanável, face ao disposto no artigo 213.º do Código de Processo Civil.
Cabe à Ex.ma Juíza convidar a autora a indicar como réus os herdeiros de E, se a autora não tiver esta iniciativa.

5. Outras questões
Não cabe no âmbito do recurso conhecer eventuais vícios da petição inicial, senão os que estão no âmbito do recurso.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso e determinam o prosseguimento da acção, salvo se houver outro motivo que a tal obste, não discutido neste recurso, devendo a Ex.ma Juíza convidar a autora a indicar como réus os herdeiros de E, em determinado prazo, se a autora não tiver esta iniciativa.
Custas pelos recorrentes.
Macau, 10 de Janeiro de 2018.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
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Processo n.º 83/2017