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Processo nº 813/2016

I

Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM

A, Limitada, devidamente identificada nos autos, vem recorrer do despacho do Senhor Secretário para a Economia e Finanças que, em sede de recurso hierárquico, manteve a decisão da Directora dos Serviços de Finanças que lhe indeferiu a reclamação da liquidação oficiosa do imposto do selo, concluindo e pedindo que:

1. Nos presentes autos discute-se se a arrematação frustrada de bens em leilão está sujeita a Imposto do Selo no âmbito do artigo 5 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TIS).
2. A Entidade Recorrida entendeu que sim, sufragando a posição já assumida pelo Senhor Director dos Serviços de Finanças, contrariando assim o entendimento da Recorrente (cf. doc.l).
3. O acto recorrido sofre de vícios de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, por erro nos pressupostos de direito, violação dos princípios da tipicidade fiscal e capacidade contributiva, e ainda por ilícita restrição à actividade comercial da ora Recorrente.
4. Desde logo, o acto recorrido sofre do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto porquanto a situação objecto do presente litígio não configura o preenchimento do tipo legal previsto no artigo 5 da TGIS.
5. Em Macau não existe legislação específica que regule o regime de venda particular de bens através de leilão.
6. Em geral, as regras dos leilões são definidas por um Regulamento elaborado pela empresa leiloeira.
7. O caso sub judice não foge à regra, tendo o leilão objecto dos autos sido regido por um regulamento próprio inscrito no catálogo do leilão (cf. doc. 3 da contestação junto com o apenso).
8. Nos termos do artigo 19.º do Regulamento do Leilão, logo após a arrematação celebra-se o contrato de compra e venda, de acordo com o preço fixado no lanço mais alto, o que ilustra bem que a arrematação carece depois de ser concretizada por via da celebração de um contrato de compra e venda.
9. Nos termos do artigo 20.º do mesmo Regulamento, o contrato de compra e venda que se segue à arrematação é celebrado com reserva de propriedade até que sejam integralmente pagos o preço do bem licitado, a comissão da leiloeira e as demais despesas.
10. O Regulamento confere ao arrematante a faculdade de optar por não celebrar a compra do bem nos termos anunciados, quer porque os bens têm um defeito enquadrável nos termos do disposto no seu artigo 23.º, caso em que o arrematante tem o direito de reaver tudo o que pagou, quer porque pura e simplesmente o arrematante se arrependeu, o que, nos termos do disposto no artigo 19.º do Regulamento, implica a perda da caução.
11. A arrematação não consubstancia a transmissão da propriedade do bem, uma vez que, após a batida do martelo pelo leiloeiro, há ainda que celebrar o contrato de compra e venda, o qual, por sua vez, está sujeito a uma cláusula de reserva de propriedade (cf. artigo 20.º do Regulamento do leilão).
12. Estando condicionada à celebração de um contrato de compra e venda para efectiva transmissão do bem, por força do respectivo Regulamento do leilão, não estão verificados os pressupostos de facto que legitimem a tributação da arrematação frustrada, razão pela qual o acto recorrido padece do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, sendo por isso anulável nos termos do disposto nos artigos 2l.º, n.º 1, alínea d), do CPAC, e 124.º do CPA.
13. O acto recorrido padece também do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito, uma vez que a Entidade Recorrida faz uma errada interpretação do disposto nos artigos 5l.º do RIS e 5 da TGIS.
14. Ainda que a arrematação sinalizasse o momento da perfeição do contrato, sempre resultaria que o mesmo não teria, ao contrário do que sustenta a decisão recorrida, efeitos translativos, na medida em que o contrato está sujeito a uma cláusula de reserva da propriedade (cf. artigo 403.º, n.º 1, do Código Civil e artigo 20.º do Regulamento do leilão).
15. O bem licitado mantém-se na titularidade do alienante até que o arrematante cumpra todas as obrigações pecuniárias resultantes do contrato.
16. Os bens arrematados que não são efectivamente adquiridos pelo arrematante e continuam a pertencer aos vendedores, podendo ir novamente à praça, se estes assim o desejarem.
17. A Entidade Recorrida incorre num erro na aplicação do direito substantivo ao fazer uso de uma interpretação errónea e excessivamente formalista do conceito de arrematação contido no artigo 51.º do RIS e no artigo 5 da TIS.
18. A interpretação subjacente ao acto recorrido desinteressa-se por completo da verificação dos efeitos jurídicos decorrentes do acto de arrematação objecto do Imposto do Selo, entendendo que a mera formalidade que simboliza o acto de arrematação é suficiente para, nos termos do disposto nos artigos 51.º do RIS e 5 da TIS, ser liquidado o Imposto do Selo, independentemente da venda efectiva do bem arrematado.
19. Do conteúdo do artigo 51.º, n.os 1, 2 e 3, alínea a), do RIS, parece relativamente claro que o conceito de arrematação, aí previsto, relativo à tributação incidente sobre transmissões de bens, apenas pretende abranger a arrematação que tenha produzido um efeito translativo, posição que é reforçada se se tiver presente que o Capítulo XVII do RIS se ocupa da tributação sobre transmissões de bens.
20. Estamos perante uma tributação da arrematação como possível fonte para a transmissão de bens, e é nesse sentido que se pretende tributar, estando em causa, parece ao Recorrente ser claro, essa mesma transmissão.
21. Trata-se de um imposto que assume a natureza de uma tributação que incide sobre a transmissão da propriedade, e não sobre um ou outro dado instrumento contratual que a tenha operado, dado que em bom rigor, para estes efeitos, é indiferente qual o documento, papel ou acto de que se tenha feito uso, desde que se tenham produzido os efeitos translativos da propriedade, ou da sua utilização e fruição, que são visados por este imposto, conforme resulta da referência geral subsidiária no artigo 51.º, n.º 3, alínea q) do Imposto do Selo.
22. E assim também ocorre com o artigo 52.º do RIS, o qual aponta para a restituição do imposto pago na sequência de invalidade ou ineficácia do acto que tenha titulado a transferência de propriedade após sentença transitada em julgado, e, bem assim, o artigo 55.º, n.º 1, do RIS.
23. Posição que, de resto, é assumida com base na intenção legislativa subjacente à aprovação da Lei n.º 8/2001, cujo parecer da Comissão deixou bem claro que a reforma assentou na tributação sobre a transmissão de bens (cf doc. 4).
24. Parece ser, também este, o entendimento desse Venerando Tribunal, na posição que assumiu no acórdão de 5 de Fevereiro de 2015 (proc. n.º 18/2014)(cf. p. 52).
25. Importa salientar que o conceito de "arrematação" deverá ser interpretado de forma sistemática, unitária e coerente como sendo o mesmo ao longo do Regulamento do Imposto do Selo.
26. Para a Recorrente não se justifica, nem mesmo tendo em conta o histórico das alterações legislativas que levaram ao regime do Imposto do Selo actualmente em vigor, que se queira entender que o mesmo conceito jurídico-fiscal de "arrematação" tenha dois sentidos distintos e materialmente não coincidentes, um no artigo 5 da TIS, e o outro no artigo 51.º do RIS, sem que haja um mínimo de base legal que possa eventualmente justificar tal interpretação divergente.
27. Em termos análogos, a arrematação nas vendas judiciais não é propriamente um contrato quoad effectum, onde a transferência de direitos reais sobre coisa determinada se dê por mero efeito do contrato, nos termos do artigo 402.º do Código Civil, dado que o próprio regime processual prevê expressamente que, caso não haja depósito do preço no prazo de 15 dias, o juiz pode determinar que a venda fique sem efeito e nos termos do artigo 795.º do Código de Processo Civil, os bens arrematados apenas são adjudicados e entregues ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço e cumpridas as obrigações fiscais inerentes à transmissão.
28. O regime processual das vendas judiciais consiste, ou pelo menos aproxima-se, na sua essência e nos seus efeitos, a uma modalidade de reserva da propriedade, dado que caso não haja entrega do preço no prazo legal a venda será declarada sem efeito, não se concluindo, procedendo-se a nova venda judicial.
29. Para a Recorrente parece claro que o Regulamento do leilão e os usos gerais da arrematação contêm um regime que se aproxima materialmente do previsto para a venda judicial.
30. Se for entendido que a arrematação na venda judicial é um contrato onde o direito de propriedade se adquire por mero efeito do contrato, sem atender aos efeitos ocorridos, então, seguindo o mesmo raciocínio, teria que se liquidar o Imposto do Selo contido no artigo 5 da TGIS pela simples ocorrência de um acto de "arrematação", mesmo que depois a venda fique sem efeito, não produzindo os efeitos translativos da propriedade que as partes visavam, por falta de entrega do preço, nos termos do artigo 793.º do Código de Processo Civil.
31. Tal interpretação, levada às últimas consequências, conduziria a graves dificuldades na prática das vendas judiciais em Macau, por ser previsível que houvesse casos de tributação sem a adjudicação do bem por falta de pagamento do preço acordado, o que não é suportável, especialmente se for tido em conta que, em última análise, o responsável pelo pagamento do imposto teria que ser... o juiz!
32. O mesmo se passaria no caso da licitação entre os interessados de um bem num processo de inventário para pôr termo à comunhão desse bem (cf. artigo 1001.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
33. O conceito de arrematação, para efeitos dos artigos 51.º do RIS e 5 da TIS, não se pode desligar dos efeitos jurídicos associados ao acto, e caso exista uma reserva da propriedade que impossibilitou a transmissão do bem, não há que tributar.
34. À semelhança do disposto no artigo 51.º do RIS, também o artigo 5 da TIS pressupõe a transmissão efectiva da propriedade, não se bastando com a mera formalidade que constitui o momento da arrematação.
35. Ao ignorar os efeitos jurídicos associados ao acto de arrematação, entendo-o como uma mera formalidade, o acto ora recorrido padece de um vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito, sendo por consequência anulável nos termos do disposto nos artigos 21.º, n.º 1, alínea d), do CPAC e 124.º do CPA.
36. O acto recorrido é também anulável por vício de violação de lei em resultado da violação dos princípios da tipicidade fiscal e da capacidade contributiva, enquanto dimensões dos princípios da legalidade, igualdade e justiça fiscal.
37. Só as manifestações de capacidade contributiva podem ser alvo de tributação, o que é dizer que só cabe pagar imposto a quem manifeste, por um qualquer acto ou facto, riqueza susceptível de desencadear o nascimento de qualquer obrigação fiscal.
38. As arrematações (e, bem assim, as batidas do martelo) não constituem, por si só, uma manifestação de capacidade contributiva da ora Recorrente.
39. É ilegal qualquer imposto liquidado e/ou cobrado a algum sujeito jurídico que não manifeste qualquer indício de capacidade contributiva (cfr. os arts. 5.º, n.º 2, e 7.º, do CPA), sendo exactamente isso que ocorre no caso vertente com a liquidação do Imposto do Selo à ora Recorrente.
40. A correcta interpretação do conceito de arrematação constante dos artigos 51.º do RIS e 5 da TGIS para efeitos de incidência objectiva diz-nos que a arrematação só pode constituir facto tributário quando acompanhada da efectiva transmissão do bem, o que é confirmado pelo n.º 1 do artigo 55.º do RIS.
41. Por outras palavras, as arrematações, isto é, as batidas do martelo, não constituem, por si só, uma manifestação de capacidade contributiva da ora Recorrente, quando não coincidem com o momento da transmissão da propriedade.
42. Mesmo que se admitisse que as arrematações ou o batimento de martelo em leilão significariam, por si só, a percepção, pela leiloeira, dos montantes a que tais arrematações respeitam, em consequência da realização de efectivas vendas, isto não significaria que as leiloeiras estariam a manifestar uma capacidade contributiva nos montantes correspondentes ao valor de tais vendas, uma vez que seriam os arrematantes que estariam a evidenciar um determinado grau de capacidade contributiva, ou de riqueza (cf artigo 53.º, n.º 1, do RIS).
43. São os adquirentes de bens em leilão, no momento em que os adquirem (no momento em que tais bens lhes são efectivamente vendidos!), que manifestam capacidade contributiva por via de tais aquisições de bens.
44. A incidência subjectiva do imposto em causa - definida pela sua necessária tipicidade (que há que conjugar com o consagrado princípio da capacidade contributiva) - só pode ocorrer sobre os clientes da leiloeira, e nunca sobre esta, como é o caso da ora Recorrente.
45. Em síntese, faria sentido que as leiloeiras tivessem que entregar às Autoridades da RAEM montantes de imposto calculados sobre quantias que nunca receberam, por supostas vendas efectuadas aos seus clientes?
46. Numa palavra, a arrematação frustrada de bens em leilão não pode constituir fundamento para a tributação da leiloeira!
47. Do exposto decorre que a decisão ora recorrida padece de vício de violação de lei por violação dos princípios da tipicidade fiscal e da capacidade contributiva enquanto dimensões dos princípios da legalidade, da igualdade e da justiça fiscal. sendo por consequência anulável, nos termos do disposto nos artigos 21.º, n.º 1, alínea d), do CPAC, e 124.º do CPA.
48. Por outro lado, a arbitrária liquidação do Imposto do Selo em apreço consubstancia um verdadeiro estrangulamento tributário, inviabilizador da continuidade da actividade económica das empresas leiloeiras e, em particular, da ora Recorrente, constituindo um inadmissível atentado à liberdade de escolha de profissão, de organização económica, e de usufruto de um mercado livre, tal como estabelecido pela Lei Básica da RAEM;
49. Não havendo qualquer relação entre a liquidação do imposto e a capacidade contributiva da ora Recorrente, fica a liberdade de iniciativa económica desta completamente dependente de juízos arbitrários da administração fiscal, com desrespeito pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade.
50. Também nesta vertente, a decisão ora recorrida padece de um vício de violação de lei por ilícita restrição à actividade comercial da Recorrente, tutelada pelos artigos 35.º e 114.º da Lei Básica, sendo por isso anulável nos termos do disposto nos artigos 21.º, n.º 1. alínea d), do CPAC, e 124.º do CPA.
Termos em que deve o presente recurso contencioso de anulação ser admitido e, em consequência, anulado o acto recorrido, com fundamento nos supra mencionados vícios de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, por erro nos pressupostos de direito, por violação dos princípios da tipicidade fiscal e capacidade contributiva e por ilícita restrição à actividade comercial da Recorrente, tudo nos termos do disposto nos artigos 21.º, n.º 1, alínea d), do CPAC, e 124.º do CPA.


Citado, veio o Senhor Secretário para a Economia e Finanças, contestando pugnando pela improcedência do recurso.

Não havendo lugar à produção de provas, foram a recorrente e a entidade recorrida notificadas para apresentar alegações facultativas.

Tanto a recorrente como a entidade recorrida não apresentaram alegações facultativas.

Em sede de vista final, o Dignº Magistrado do Ministério Público opinou no seu douto parecer pugnando pelo não provimento do presente recurso.

Fica assente a seguinte matéria de facto com relevância à decisão do presente recurso:

* Em 21JUN2015, a Recorrente realizou em Macau um leilão;

* Conforme o relatório de fiscalização elaborado pelo pessoal da DSF, que se encontrava presente no decorrer do leilão, foram arrematados 78 lotes no valor de HKD$878.217.300,00;

* Em 23JUN2015, a Recorrente fez dirigir à DSF uma carta, ora constante das fls. 50 dos p. autos, e cujo teor se dá por integralmente produzidos, onde de declarou os lotes transaccionados no leilão, assim como os valores dos lotes e o valor do imposto de selo por ela calculado;

* Nessa carta, invocando que foi efectuado apenas o pagamento de oito lotes, a Recorrente procedeu-se à liquidação do imposto do selo, sobre o valor de HKD$327.600,00, calculada à taxa de 5‰, na quantia de MOP$1.687,20;

* Nessa mesma carta, foram coladas as estampilhas, no valor de MOP$1.688,00, que corresponde ao valor do imposto de selo liquidado pela ora recorrente;

* Em face disso, por despacho da Directora dos Serviços de Finanças, foi determinada a liquidação oficiosa que incide sobre o valor de diferença (MOP$2.708.447,00 – MOP$171.598,00 = MOP$2.536.849,00);

* Dentre os oito lotes que a recorrente declarou pagos, apenas três fazem parte dos 78 lotes que o relatório considerou licitados no decorrer do leilão;

* Por despacho do Director da DSF, datado de 24SET2015, foi autorizada a liquidação oficiosa do imposto de selo que incide sobre os restantes 75 lotes, e fixado o valor do imposto de selo por pagar em MOP$4.521.752,00;

* Inconformada com a liquidação oficiosa, a ora Recorrente reclamou para a DSF pedindo a revogação da liquidação oficiosa;

* Por despacho do Director dos Serviços de Finanças, foi negado provimento à reclamação;

* Novamente inconformada, interpôs o recurso hierárquico para o Secretário para a Economia e Finanças; e

* Por despacho do Secretário para a Economia e Finanças, ora recorrido, foi negado provimento ao recurso hierárquico.

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.

O processo é o próprio e inexistem nulidades e questões prévias que obstam ao conhecimento do mérito do presente recurso.

Os sujeitos processuais gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.

Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi do artº 1º do CPAC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Em face das conclusões na petição do recurso interposto, a recorrente imputa ao acto recorrido vários vícios de violação da lei.

Apesar de a recorrente ter “nominado” os vícios da violação da lei com várias designações, o certo é que no fundo, a questão suscitada pela recorrente consiste unicamente em saber qual é o valor a ser atendido para a fixação da matéria colectável para o efeito do cálculo do imposto do selo a pagar, ou seja, se é o valor dos lotes licitados ou o valor dos lotes efectivamente pagos.

Ora, a questão idêntica já foi exaustivamente debatida e bem decidida por este TSI no Acórdão de 05FEV2015, tirado no processo nº 18/2014, que o ora 2º Adjunto subscreveu.

Diz o mesmo Acórdão:
……
    4. Vamos então analisar a questão de fundo.
    4.1. Resume-se ela em saber se assiste à Administração Fiscal o direito de cobrar imposto de selo a uma leiloeira por três actos de licitação e arrematações que não se chegaram a concretizar relativas a três peças leiloadas no valor de várias dezenas de milhões de patacas, porquanto os licitantes, um do Canadá, alegando falta de genuidade da peça, não depositou o respectivo preço, outra de Taiwan que alegou indisponibilidade financeira e também não depositou o preço respeitante a duas peças por si licitadas.
    Isto, num quadro de actividade leiloeira, em que foi cobrado e pago o imposto de selo, respeitante a muitos outros actos em que se consumou a arrematação.
    A questão que se põe é a seguinte: é ou não devido imposto de selo pela actividade desenvolvida pela recorrente em relação àquelas três peças?
    4.2. O acto recorrido é o despacho de 15 de Outubro de 2013, da autoria do Senhor Secretário para a Economia e Finanças que indeferiu o recurso hierárquico necessário do despacho de 18 de Julho de 2013, da Senhora Directora dos Serviços de Finanças, que indeferiu o pedido de revogação do acto de liquidação oficiosa do imposto do selo por arrematação de bens, proferido em sede de reclamação graciosa.
    4.3. Pretende a recorrente que não há lugar ao imposto do selo, porque, pese o facto de terem sido licitados alguns bens que foram à praça a fim de serem vendidos em leilão por si organizado os respectivos licitantes não concretizaram a compra de tais bens, o que significa que a arrematação não foi concretizada pelo pagamento imediato do preço pelos arrematantes e, nessas circunstâncias, a venda ficou sem efeito, não tendo havido transmissão de bens, para efeitos fiscais, nem, tão pouco, houve valores sobre os quais pudesse ter sido fixada a matéria colectável do imposto do selo.
    4.4. Afirma-se no acto recorrido: "Conforme estipulado no art. 1.º do Regulamento do Imposto do Selo, este recai sobre os documentos, papéis e actos designados na Tabela geral anexa ao seu regulamento. O artigo 2.º refere que a RAEM adquire o direito ao Imposto do Selo, quer pelo facto da sua liquidação e pagamento, quer pela prática do acto em que o mesma incida".
    A entidade recorrida embora defenda que "o imposto do selo procura atingir, entre outros, os actos económicos, recaindo sobre as operações que constituem a revelação do rendimento ou riqueza (…)" , estranhamente, por outro lado, não deixa de referir que a arrematação, enquanto acto translativo tem por incidência objectiva nos termos do art. 51.° do Regulamento, apenas, as transmissões de bens imóveis, quer a título oneroso, quer gratuito e transmissões de bens móveis sujeitos a registo de valor superior a 50.000 patacas, excluindo as obras de arte e as antiguidades, porque são bens móveis não sujeitas a registo.
    4.5. Não se percebe bem a referência feita pela entidade recorrida quanto ao conceito de "arrematação" que pretende ter uma natureza de acto translativo, dentro de uma categoria de tributáveis quando referidos a bens imóveis e bens móveis sujeitos a registo de valor superior a 50.000 patacas e já não a bens móveis não sujeitos a registo.
    4.6. Vejamos o que dispõe o artigo 51º da Lei n.º 17/88/M, de 27 de Junho:
    “1. É devido imposto do selo por quaisquer documentos, papéis e actos que sejam fonte, para efeitos fiscais, de transmissão entre vivos, temporária ou definitiva:
    a) A título oneroso ou gratuito de imóveis;
    b) A título gratuito, de quaisquer outros bens, direitos ou factos sujeitos a registo, de acordo com a legislação aplicável, de valor superior a 50 000 patacas.
    2. São consideradas fontes de transmissão de bens para efeitos fiscais todos os documentos, papéis ou actos que titulem a transferência dos poderes de facto de utilização e fruição do bem.
    3. Para efeitos do disposto no número anterior são sujeitos a imposto do selo:
    a) Os contratos de compra e venda, troca, arrematação ou adjudicação por acordo ou decisão judicial ou administrativa, constituição de usufruto, uso e habitação, servidão ou direito de superfície;
    b) Os contratos-promessa de compra e venda ou outro documento, papel ou acto que, ainda que lícito, válido e eficaz, não seja susceptível de transmitir o direito de propriedade ou outro direito real de gozo;
    c) A cedência do usufruto, uso e habitação ou de servidão a favor do proprietário e a aquisição do direito de superfície pelo proprietário do solo;
    d) A aquisição de benfeitorias e a de bens imóveis por acessão;
    e) A remição de bens imóveis nas execuções;
    f) A adjudicação de bens imóveis aos credores, bem como a entrega feita directamente aos mesmos como dação em cumprimento ou em função do cumprimento, ou a entrega feita a outrem com a obrigação de lhes pagar;
    g) A remição, redução ou aumento de foros, ainda que seja por incómodo da cobrança, bem como a devolução de bens aforados ao senhorio;
    h) A cessão da posição contratual, independentemente da forma assumida;
    i) As entradas dos sócios com bens imóveis ou direitos reais sobre os mesmos para a realização do capital das sociedades comerciais e a adjudicação dos mesmos aos sócios na liquidação dessas sociedades;
    j) As entradas dos sócios com bens imóveis ou direitos reais sobre os mesmos para a realização do capital das sociedades civis, na parte em que os outros sócios adquirirem comunhão ou qualquer outro direito nesses imóveis, bem como, nos mesmos termos, as cessões de partes sociais ou de quotas ou a admissão de novos sócios;
    l) As entradas dos cooperantes com bens imóveis ou direitos reais sobre os mesmos para a realização de cooperativas e a adjudicação dos mesmos bens aos cooperantes na liquidação dessas cooperativas;
    m) A transmissão de bens imóveis por cisão das sociedades referidas nas alíneas i) e j) ou por fusão de tais sociedades entre si ou com sociedade civil;
    n) A constituição ou transmissão de concessão por aforamento ou por arrendamento, nos termos da lei de terras;
    o) A subconcessão ou trespasse das concessões feitas pela Região Administrativa Especial de Macau, para uso ou fruição de imóveis do seu domínio privado, ou para a exploração de empresas comerciais ou industriais, tenha ou não começado a exploração;
    p) As procurações ou substabelecimentos que concedam poderes de disposição do bem ao procurador e sejam irrevogáveis sem o acordo do interessado, nos termos do n.º 3 do artigo 258.º do Código Civil;
    q) Qualquer outro documento, papel ou acto que transfira os poderes de facto de utilização e fruição de um bem ou direito.
    4. O pagamento do imposto do selo nas transmissões tituladas pelos documentos referidos na alínea b) do número anterior, desoneram o respectivo sujeito passivo do seu pagamento aquando da celebração do contrato definitivo, desde que não exista alteração das partes, do objecto e se mantenha o valor da transmissão.
    5. Presume-se, sendo admitida prova em contrário, o conhecimento do mandatário ou substabelecido nas procurações ou substabelecimentos referidos na alínea p) do número anterior.
    6. O pagamento do imposto do selo nas procurações ou substabelecimentos referidos na alínea p) do n.º 3 que prevejam a celebração de negócio consigo mesmo desoneram o mandatário ou substabelecido do pagamento do imposto aquando da celebração desse negócio.
    7. Não são tributadas em imposto do selo as adjudicações ou arrematações nem as cessões da posição contratual referidas nas alíneas a) e h) do n.º 3, respectivamente, quando tenham por objecto bens imóveis que, por força de lei especial, devam ser revendidos decorrido prazo certo.”
    
    4.7. Na verdade, o art. 51.°, n.º 2, do Regulamento do Imposto do Selo, prescreve que: "São consideradas fontes de transmissão de bens para efeitos fiscais todos os documentos, papéis ou actos que titulem a transferência dos poderes de facto de utilização e fruição do bem" e, por sua vez, o n.º 3, estipula: "Para efeitos do disposto no número anterior são sujeitos a imposto do selo": "(...) q) Qualquer outro documento, papel ou acto que transfira os poderes de facto de utilização e fruição de um bem ou direito.”
    Se a entidade recorrida se refugiou na falta de um conceito legal de "arrematação", alegando que deve ser extraído da interpretação sistemática de todo o diploma - Regulamento do Imposto do Selo - , sempre se dirá que o seu art. 55.°, n.º 1, estabelece que "A matéria colectável do imposto do selo previsto neste capítulo tem por base o valor do bem ou direito transmitido, constante do documento, papel ou acto respectivo". Isto é, não deixa de estar subjacente para a entidade recorrida a existência de uma transmissão do bem, mesmo que se afirme ser claro que o facto tributário previsto no art. 5.° da Tabela Geral do Regulamento do Imposto do selo "é a realização da actividade económica em si, processo especial com vista à comercialização de produtos, pela melhor oferta de valores, efectuada de forma aberta e aceita por um leiloeiro, não sendo decisivo o momento no qual se transmite o direito de propriedade de bens arrematados".
    Há, no entanto, que referir que as transmissões tributadas são as previstas no n.º 1, o que não abrange a situação dos autos.
    
    Temos assim que nos voltar para a base de incidência contemplada no artigo 5º da Tabela, devendo ser essa e apenas essa a base do imposto.
    4.8. Antes, porém, de analisar este artigo, vejamos da natureza do imposto de selo.
    A vida civil e económica na sua complexidade é constituída de actos numerosos que o Direito disciplina e é sobre grande variedade e diversidade desses actos que se concretizam na emissão de documentos e actividades que incide o chamado imposto de selo. É dos capítulos mais complicados e difíceis da teoria dos impostos, obrigando o Fisco e os juristas a delimitar o seu alcance. A dificuldade adensa-se da confusão entre selo-meio-de-cobrança e selo-imposto.
    Na origem do imposto está uma necessidade de os poderes públicos controlarem uma série de actos através da venda de suporte documental oficial para os mesmos e rapidamente se tornou num modo de tributar as realidades mais diversas, abrangendo hoje actividades que se encontram tributadas pelos mais diferentes impostos.1 Na exposição de motivos que antecedeu a publicação do Código do Imposto do Selo, na sua versão de 1999, em Portugal, escreve-se logo no início: "o Imposto do Selo é hoje geralmente identificado como um elemento anacrónico do sistema fiscal português. As suas bases de incidência, liquidação e pagamento consistiriam, segundo um ponto de vista vulgarizado na opinião pública, em excrescências do passado, a suprimir com a necessária modernização do ordenamento jurídico tributário. “Esta característica anacrónica manifesta-se basicamente no seu intenso casuísmo e na ausência de princípios que possam ajudar à sua interpretação e aplicação como norma jurídica, além da sua excessiva adesão a conceitos importados do Direito Civil, geralmente inadequados para a previsão normativa no Direito Fiscal, pelo seu carácter excessivamente formalista.
     “Isto comporta a dupla consequência da dificuldade da sua interpretação e da imprevisibilidade das suas consequências jurídicas. Acresce a facilidade com que a sua previsão normativa pode ser contornada por mera alteração de forma, com a consequente frustração da intenção normativa.”, continua o Autor acima citado.
    Na teleologia do Imposto do Selo descortina-se que ele deve recair sobre as operações que, constituindo a revelação do rendimento ou riqueza, por qualquer outro motivo não sejam abrangidas por qualquer outro tipo de tributação indirecta.
     Para uns autores a relação de imposto do selo é a que liga o vendedor ao comprador do valor selado e que se traduz na aquisição do selo em contrapartida de um preço, que é a verdadeira receita fiscal que ingressa nos cofres públicos. Para outros, todavia, essa relação é uma simples relação preliminar da verdadeira obrigação tributária que nasce quando se verifica o facto a que a lei liga a consequência do imposto. Este, em qualquer das suas formas é uma designação genérica que encobre realidades muito heterogéneas, sendo já “ muito diversos os pressupostos de facto das obrigações tributárias submetidas àquele regime de cobrança. À cobrança por selo podem estar sujeitos impostos, impostos tão diversos como as quotizações para o Fundo de Desemprego, o imposto sobre especialidades farmacêuticas, anúncios, bilhetes de espectáculos, letras, contratos, etc.”2
     4.9. Vejamos, entre nós, o que se passa.
    Como impostos sobre os actos e documentos encontra-se o imposto do selo, previsto no Regulamento do Imposto do Selo (RIS) e na Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), aprovados pela Lei n.º 17/88/M, de 27 de Junho.
    “O imposto do selo tem sido classificado na categoria dos impostos indirectos, pois trata-se, geralmente, de um imposto de prestação única e que, incidindo sobre a despesa, tributa actos e factos isolados, cuja matéria colectável se manifesta indirectamente na capacidade contributiva do sujeito passivo. Através do imposto do selo tributa-se a circulação de riqueza, de bens e de valores, principalmente quando tais valores ou bens não tenham podido ser tributados por outra via. A par destes casos de tributação, a Tabela Geral do Imposto do Selo e outros diplomas prevêem numerosos casos de inutilização de estampilhas fiscais, como forma de pagamento de taxas devidas por serviços prestados pelo Território [cf, TGIS. art.º 8.º, 11.º, 12.º, 35.º, etc.], embora não seja de excluir que, conjuntamente com a importância da taxa, esteja a ser cobrado um imposto. (...) o legislador não definiu qualquer norma geral de incidência do imposto do selo, sendo a incidência deste imposto fixada por remissão para a Tabela Geral do Imposto do Selo, pois "o imposto do selo recai sobre todos os documentos, papéis e actos designados na Tabela Geral anexa ao presente regulamento, a qual faz parte integrante dele (RIS, art.1º). Para uma melhor compreensão da sua natureza e aplicação, pode decompor-se o imposto do selo de acordo com os diferentes actos e documentos passíveis de tributação. “3
    
    4.10. Posto isto, há que dilucidar no objecto que integra a base de tributação o âmbito deste imposto, sendo que no artigo 1º nada se concretiza, pelo que urge indagar na Tabela qual o acto que concretamente se visa tributar.
    O que está em causa nos autos é o artigo 5º da Tabela que faz tributar as “Arrematações de produtos, de géneros e de bens ou direitos sobre móveis ou imóveis, sobre o preço da arrematação ou da adjudicação.” A taxa é de 5‰ e a forma de pagamento é por Estampilha ou selo de verba. Naquele artigo mais se refere que “Esta permilagem é paga por meio de estampilhas coladas no respectivo auto e inutilizadas por quem presidir à praça ou conceder a remição ou distrate.
    Quando se trate, porém, de arrematações ou adjudicações feitas perante quaisquer autoridades ou em serviços da RAEM ainda que personalizados, órgãos municipais, empresas públicas e pessoas colectivas de utilidade pública e de utilidade pública administrativa, pode cobrar-se por meio de selo de verba a respectiva taxa, efectuando-se o pagamento no primeiro dia útil que se seguir ao da realização da praça, remição ou distrate.
    Nos documentos que titulem a arrematação, remição ou distrate é sempre mencionada a importância do imposto do selo pago.”
    
    4.11. A primeira dificuldade reside na densificação do que seja a arrematação ou adjudicação, à falta de uma noção legal para tais actos. Merecendo o mesmo tratamento, será que traduzem realidades diferentes? Concretamente em que se traduzem? Implicam a transmissão da coisa?
    4.12. Na falta de uma previsão própria para as leiloeiras, vamo-nos servir do que se mostra regulado para as vendas judiciais. A arrematação é o “acto processual da venda judicial (quando esta seja feita sob a forma de arrematação em hasta pública), que consiste na colocação em leilão de cada bem ou lote e abertura de licitação entre os interessados. Fala-se também de arrematação em relação a cada bem ou lote e chama-se arrematante àquele licitante a quem, por ter feito o lanço mais elevado, o objecto ou lote é adjudicado.”4 “Por outro lado, a adjudicação, em processo civil, é o ”Acto processual pelo qual o tribunal transmite em favor de um ou vários interessados (por exemplo, co-licitantes na venda em hasta pública, co-proponentes na venda por meio de propostas em carta fechada, com­ proprietários da coisa comum divisível ou indivisível, co-herdciros ou outros interessados na partilha no processo de inventário, etc.) a totalidade ou parte de uma coisa, por ter sido reconhecido o direito dessa ou dessas pessoas à coisa, por terem direito de preferência, terem licitado mais alto no acto de arrematação e/ou cuja proposta em carta fechada tenha prevalecido. Por vezes, existindo co-interessados ou co­proponentes em igualdade de circunstâncias, a determinação daquele a quem deve ser adjudicada a coisa (ou a determinação de a quem deve ser adjudicado cada quinhão no caso de uma universalidade de coisas a partilhar e adjudicar) é feita por sorteio.”5
    No âmbito do Processo Civil, aceite alguma proposta o proponente é notificado para, no prazo de 15 dias depositar o preço - art. 792º do CPC - e se o não fizer é liquidada a sua responsabilidade (no direito antigo, antes de 1977, ía preso) e o juiz pode determinar que a venda fique sem efeito, procedendo-se a nova venda - art. 793º.
    
    4.13. Daqui somos a retirar que mesmo na venda judicial o contrato se consubstancia com a arrematação, sendo um contrato quoad effectum, isto é o direito de propriedade adquire-se por mero efeito do contrato - art. 402º, n.º 1 do CC-, sendo a entrega da coisa e o pagamento do preço meros efeitos do contrato, como resulta do art. 869º do CC. Na verdade, só nos contratos ad constitutionem a entrega da coisa integra um elemento constitutivo do próprio contrato (casos do mútuo, depósito, comodato).
    No nosso caso, o que terá faltado foi o pagamento do preço e a entrega também não se consumou, mas o contrato de venda deve ter-se por realizado.
    
    4.14. Passemos agora o olhar sobre a Jurisprudência Comparada que possa de alguma forma ajudar à dilucidação da melhor interpretação, ainda que respeitante a vendas judiciais.
    - “O facto de a compradora ainda não ter pago integralmente o preço à data da entrada do pedido de remição no tribunal é de todo indiferente. O que para o efeito releva e importa é a assinatura do auto da arrematação. Não, seguramente, o pagamento integral do preço, como o recorrente defende. E isto, não só por à adquirente ter sido concedido o prazo legal de 15 dias para satisfazer o resto do preço (artigo 904, n. 3 do Código de Processo Civil), como também por a transmissão dos bens a favor do adjudicatário, quando estes são vendidos em hasta pública, se operar com a assinatura do auto de arrematação - suficiente para se requerer o registo provisório da transmissão, desde que feita a prova dela e do depósito da 10 parte do preço e das despesas prováveis (artigo 48 do Cód. Reg. Pred.) - e, portanto, na data da praça. O facto de a entrega dos bens se não poder efectuar sem o pagamento ou o depósito da totalidade do preço e de o registo definitivo da transmissão só se poder requerer com base no título de arrematação, o qual, como ninguém ignora, só pode ser passado depois de depositado o preço e de paga a sisa, quando devida (artigo 905 do CPC), não tem importância de maior. Significa que a transmissão verificada com a arrematação susceptível de levar ao registo provisório a que se fez referencia, se acha sujeita a uma cláusula resolutiva, cessando, consequentemente, se a sisa, sendo devida, não for paga ou o arrematante não completar o pagamento do preço da compra no prazo legal (J. A. dos Reis in ob. e doc. cit., página 374 e 375 e Lopes Cardoso in Manual da Ac. Exec., 3. ed., página 612 e 613) ... Uma vez que a lei, ao fixar, no caso da venda de bens por arrematação, o momento até ao qual os titulares do direito de remição o podem exercer - até ser assinado o auto de arrematação - , não faz qualquer distinção entre o estar ou não estar já pago todo o preço aquando do exercício do mesmo - nem faria sentido que o fizesse, visto conceder aos licitantes um prazo de 15 dias para se completar o pagamento do devido quando não pago integralmente logo de início (artigo 904 n. º 3), também o intérprete a não deve fazer. Apesar de a velha máxima, segundo a qual "ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus" já haver merecido o qualificativo de obsoleta (A. Varela in Rev. Leg. Jur., 123/30), não se vêem razões para dar ao comando da alínea b) do artigo 913º do Código de Processo Civil uma interpretação que se afaste do respeito por este axioma no caso concreto.” - Ac. do STJ, Proc. n.º JSTJ00022101, de 02/17/1994.
    - “(…) O arrematante, ao arrematar bens numa praça pagando, no acto desta, apenas parte do preço, se não pagar o restante, perderá o que pagou, ficando, em princípio, sem efeito a compra que fizera. (…) O arrematante remisso ainda que tenha pago no acto da praça mais do que a décima parte do preço perderá tudo o que pagou desde que, no prazo legal, não venha a pagar o restante, ainda que seja uma quantia mínima… Toda a estrutura da venda judicial demonstra que a parte paga pelo adquirente no acto da venda não tem a natureza de sinal, tal como é considerado no direito civil nem se trata de uma compra e venda a prestações.” - Ac. da RL, Proc. n.º 0036372, de 17/1/1991.
    
    - “I - A expressão "arrematação de bens imóveis" - utilizada no artigo 15º da Tabela Geral do Imposto de Selo, deve ser interpretada em sentido jurídico, como acto translativo de propriedade sobre esses bens imóveis, que dispensa para esse efeito qualquer escritura notarial posterior;
II - Se um município aprovar um regulamento para venda de imóveis do seu domínio privado, e nele incluir um acto de arrematação e uma escritura notarial, deve o acto de arrematação entender-se como um mero concurso para apurar o candidato que oferece lanço mais alto, a fim de com este candidato outorgar a escritura; (…)” - Ac. do STA, Proc. Procº nº 61 869, de 21/3/95 e Ac. STA, Proc. n.º 0779/03, de 22/2/2003

- “A arrematação a que alude o art. 15 da Tabela do Imposto de Selo, na versão vigente em Maio de 1996, era a arrematação que tinha por efeito imediato a transmissão da propriedade dos imóveis arrematados ou a fazia dependente, quando muito, apenas, da prolação de um acto administrativo integrativo posterior que com aquela formava um bloco constitutivo de tal efeito jurídico.
Havendo a arrematação servido como simples procedimento administrativo da formação da vontade de vender, nomeadamente para determinação, sujeita à condição de posterior aceitação do órgão autárquico competente, do contraente e do preço por que a venda devia ser feita, ela não cabe na categoria de facto tributário de facto tributário definido no art. 15 da Tabela do Imposto de Selo.” - Ac. do STA, proc. n.º 024281, de 27/10/1999
    
- “O termo arrematação não tem na legislação administrativa o significado restrito, jurídico- processual, de adjudicação ou compra em hasta pública, leilão ou almoeda. Antes, usa-se geralmente para designar o processo por que se faz a adjudicação de obras públicas e de fornecimentos, com emprego indiferente e simultâneo das palavras arrematação e adjudicação. Um contrato de adjudicação de fornecimentos esta, por isso, sujeito ao pagamento do imposto do selo, previsto no artigo 23 da tabela geral do imposto do selo, na redacção que lhe deu o Decreto-Lei n. 36608.” - Ac. do STA, Proc. n.º 000655, de 8/5/1952
    - “Sendo a arrematação de imóveis essencialmente uma forma de venda por meio de licitação destinada a corrigir erros que se cometam na fixação do valor real dos bens, será de reconhecer que o acto não chega a preencher a tipicidade legal do art. 15 da TGIS, apostado em sujeitar ao tributo a formalização de uma verdadeira venda, quando no acto falte a adjudicação dos bens arrematados e a consequente transferência efectiva do direito de propriedade dos imobiliários”.- STA 024198, de 10/11/1999 e Ac. do STA, Proc. n.º 024369, de 2/2/2000.
    
    - “A arrematação de imóveis tributável em imposto de selo, nos termos do art. 15 do RGIS, há-de necessariamente envolver, enquanto verdadeira venda judicial de bens, a respectiva adjudicação e consequente transmissão efectiva do direito de propriedade dos imóveis arrematados.” - Ac. do STA, Proc. n.º 024369, de 2/2/2000
    
    4.15. Importa ainda abordar a questão, não descurando o sentido da natureza jurídica da arrematação, entrando ainda em linha de conta com o conceito de arrematante relapso ou remisso.
    A análise desta jurisprudência comparada parece, à primeira vista, contraditória, mas logo se consegue compatibilizar com a harmonização dos princípios gerais se tivermos em conta que na maior parte dos casos, quando se afirma que o imposto de selo não é devido, estão em causa bens imóveis, em que se afigura essencial a documentação translativa corporizada no auto de arrematação.
    No caso “sub judice” estão em causa bens móveis que foram indubitavelmente arrematados. O efeito adjudicativo, ou seja, constitutivo da propriedade, operou por efeito do próprio contrato, se bem que falte a entrega da coisa e da propriedade. A transferência da propriedade da coisa é efeito do contrato de alienação e não da entrega da coisa.6
    Nesta conformidade não é difícil autonomizar um acto produtor ou apto a produzir efeitos próprios, gerador de responsabilidades para os adquirentes e comitentes dos alienantes que, enquanto leiloeiros, têm de se organizar e precaver de aventureiros e licitantes relapsos.
    4.16. Na verdade, como bem alega a recorrente, os leiloeiros são tão só organizadores de vendas em leilão que, no âmbito da sua actividade económica, propõem a venda de um bem, em seu nome, mas por conta do comitente, nos termos de um contrato de comissão de venda, com vista à sua adjudicação em leilão; a classificação das Ocupações Profissionais de Macau (COPM), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 45/97/M de 10 de Novembro, integra os Avaliadores e os Leiloeiros no GRUPO BASE 341, definindo-os assim: "Os Avaliadores e Leiloeiros vendem em leilões diversos géneros de bens ou avaliam-nos, tais como bens imobiliários, objectos de arte, produtos agrícolas e gado e as tarefas consistem em: a) Avaliar bens imobiliários, mercadorias e outros; b) Promover a venda em hasta pública de diferentes tipos de bens; c) Apregoar publicamente diferentes tipos de bens, tendo em vista a respectiva venda; d) Executar outras tarefas similares; e) Coordenar outros trabalhadores".
    Das receitas que vierem a apurar a título de comissão, terão que pagar os respectivos impostos à Autoridade Tributária; nesta sua especial actividade têm a responsabilidade de arrecadar o imposto do selo devido pelas transmissões de bens que forem realizadas e que constituem um encargo do arrematante, ou seja, do adquirente do bem.
    Desta forma se responde ao argumento usado pelo recorrente, enquanto diz que “ se o facto tributário subjacente ao acto de liquidação do imposto do selo, nas arrematações feitas no âmbito de um leilão, fosse a realização da actividade económica em si, processo especial com vista à comercialização de produtos, pela melhor oferta de valores efectuada de forma aberta e aceite por um leiloeiro, não sendo decisivo o momento no qual se transmite o direito de propriedade de bens arrematados não existiria essa profissão ou, melhor dizendo, nenhuma pessoa singular ou colectiva poderia desenvolver tal actividade” pois que não se trata tão-somente uma mera oferta, mas sim o que se tributa é a arrematação ou adjudicação ao melhor ofertante. Se a venda vem a ficar sem efeito e existe uma venda, tal como se enquadrou essa actividade – aliás, o próprio requerente o admite ao reclamar contra uma venda que diz ter ficado sem efeito -, então, as responsabilidades não podem deixar de ser assacadas ao comprador relapso, como acontece também nas vendas judiciais.
    Nem se diga que estaria encontrada a galinha de ovos de ouro para a Fazenda por, tal como diz o Exmo Magistrado do MP, na sua expressão feliz, ser caricata a tributação de um lance desmesuradamente excessivo “a partir da alegre martelada”, não se vendo razão para distinguir das situações reguladas nos termos das vendas judiciais e eximir esse licitante das suas responsabilidades.
    
    4.17. Se o ordenamento jurídico da RAEM não imputa responsabilidade criminal aos arrematantes relapsos - como acontecia em Portugal, antes da publicação do Decreto-Lei n.º 368/77, de 3 de Setembro, certo sendo que o Código de Processo Civil, determinava que o arrematante remisso fosse preso, por prazo não superior a um ano, até que se encontrasse cobrada a quantia por que era responsável, já o Código de Processo Civil de Macau, como acima se disse e ora se repete, no seu art. 793.°, prevê sanções que podem ir desde o arresto de bens para garantir o pagamento do preço por si indicado (art. 740.°, n.ºs 2 e 3, com as devidas adaptações), à impossibilidade de voltar a ser admitido como arrematante, ficando ainda responsável pela diferença do preço que vier a ser licitado numa outra venda.
    Ainda é o próprio recorrente que nos dá razão, ao dizer ser óbvio que estas sanções são aplicadas quando se trata de vendas no âmbito de um processo judicial de execução, situação que é muito mais grave do que aquela em que está em causa uma venda particular; porém, não se pode perder de vista que a lei processual civil prevê que as vendas de bens móveis - em certas circunstâncias - se faça em empresa de leilão (art. 800.° do CPCM), o que quer dizer que é reconhecido que as arrematações de bens móveis no âmbito de um leilão organizado por empresa particular têm carácter translativo.
    Não deixaremos de reforçar este apontamento, invocando o n.º 3 desse art. 800º que prevê que a venda se faça pelo pessoal da empresa de leilões segundo as regras em uso.
    Sendo certo que a previsão da base tributária - art. 5º da TIS - e a natureza do imposto em causa não implicam a realização da venda que na argumentação por nós desenvolvida não se deixa de tomar como o parâmetro mais exigente e que de acordo com as regras civilistas não se deixa de ter por verificada.
    
    4.18. Sufraga-se o entendimento da Administração Fiscal de que no caso do imposto em causa não se torna necessária a transferência da coisa, - o que é diferente da investidura da propriedade, pois tal como acontece nas vendas judiciais, "os bens apenas são adjudicados e entregues ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço e cumpridas as obrigações fiscais" (art. 795.° do CPCM).
    Embora constitua uma responsabilidade da leiloeira liquidar o imposto do selo para o entregar à Autoridade Tributária, tal imposto calculado sobre o valor do bem transmitido constitui um encargo do adquirente do bem que o arrematou, após ter licitado o bem, na nossa interpretação, independentemente do pagamento do preço a que estará adstrito.
    
    4.19. Refere ainda a recorrente que no despacho proferido pela Senhora Directora dos Serviços de Finanças que indeferiu o seu pedido de revogação do acto de liquidação, defendeu-se que "a particularidade quanto às arrematações é a de que o pagamento do imposto apenas pode ser efectuado através de estampilhas fiscais, que são apostas nos documentos e inutilizadas pela pessoa que receber o valor da transacção, no caso, por quem presidir à praça, no momento em que se pratica o acto sujeito a imposto."
    Essa é uma interpretação que não significa necessariamente que seja interpretação autêntica. Não deixará ela, no entanto, de reflectir uma prática e uma normalidade, pois não será todos os dias que os arrematantes deixem de cumprir as suas obrigações, impondo-se a adaptação da conduta da Autoridade Fiscal a cada uma das situações em presença.
    Prescreve o art. 5.°, in fine, da Tabela Geral do Regulamento do Imposto do Selo que "Nos documentos que titulem a arrematação, remição ou distrate é sempre mencionada a importância do imposto do selo pago". Daqui se pretende retirar o argumento de que, não tendo havido transmissão dos bens acima referidos, não houve quaisquer documentos que tivessem titulado a transmissão de bens por arrematação. Ora, não é o hábito que faz o monge, isto é, não pode ser um procedimento a condicionar a substância da cobrança fiscal. Por outras palavras, não pode ser a falta de um impresso que conduz ao não pagamento do imposto devido.
    Em lado algum se diz que a empresa leiloeira, devidamente licenciada, apenas, pode cobrar o imposto do selo relativamente aos negócios realizados pelos quais recebeu o valor da transacção.
    
    4.20. A afirmação da recorrente (artigo 30º da sua petição de recurso) de que “os bens acima referidos - que foram licitados e tudo indicava que seriam arrematados, ou seja, comprados em leilão - continuam a pertencer aos respectivos proprietários, isto é, não foram transmitidos, sendo certo que poderão ir novamente à praça - se os proprietários assim o desejarem - e, caso venham a ser transmitidos, então, serão tributados com o imposto do selo” não deixa de entrar em contradição quando noutro passo defende que a venda fique sem efeito, tal como por nós também já referido.
    
    4.21. Não é o Tribunal que tem de ensinar os agentes económicos a actuarem e a precaverem-se num mercado muito específico, especializado, reservado e que exige uma adequação e alta preparação técnica, seja em função do tipo do mercado, das peças que são transaccionadas, dos valores envolvidos, da discrição requerida e dos clientes frequentadores desses mercados, tudo apontando para um profissionalismo que tem de prever e responsabilizar quem ali actua.
    
    4.22. A facilitar-se no sentido da pretensão que vem aos autos, poderia - não é que seja o caso - abrir-se a porta a vendas que, por essa via, fugissem aos impostos devidos, bastando pensar em conluios entre alienante e adquirente, com pagamentos no exterior, mesmo à revelia da própria leiloeira.
    Tudo na mesma linha que leva o legislador a consagrar que, mesmo no caso de acto inválido, ineficaz ou ilícito. Assim o art. 52º, n.º 1 do RIS: “O imposto do selo é devido ainda que o documento, papel ou acto seja inválido, ineficaz ou ilícito, sem que o pagamento sane a invalidade, a ineficácia ou a ilicitude.” E que nos termos do n.º 2 só “ a apresentação pelo sujeito passivo de sentença transitada em julgado, que reconheça a invalidade ou ineficácia do documento, papel ou acto que titulou a transmissão, impede a cobrança do imposto do selo e, se já tiver sido pago, confere direito à sua restituição.
    5. Por todas estas razões o recurso não deixará de improceder.

Tendo o presente recurso por objecto uma questão de direito idêntica à questão tratada nesse Acórdão, damos aqui por integralmente reproduzido o segmento desse Acórdão para, mutatis mutandis, se servir de fundamentos para julgar improcedente o presente recurso.

Resta decidir.

III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, com taxa de justiça fixada em 6 UC.

Registe e notifique.

RAEM, 14DEZ2017

_________________________ _________________________
Lai Kin Hong Mai Man Ieng
_________________________
Fong Man Chong
(com declaração de voto que se segue)
_________________________
Ho Wai Neng






Processo nº 813/2016 (recurso contencioso)
Recorrente: A, Limitada
Recorrida: Senhor Secretário para a Economia e Finanças da RAEM


DECLARAÇÃO DE VOTO
  
  Subscrevo a decisão final do douto Acórdão, mas, salvo melhor respeito que é muito, não acompanho as fundamentações, por razões que passo a expor:
  
  Compulsados os elementos disponíveis, verifica-se que o TSI já decidiu vários casos semelhantes ao do processo em epígrafe, em que se discute se há lugar ou não à tributação do imposto do selo nos leilões privados organizados por empresas privadas.

  I – Argumentação da Recorrente (sociedade leiloeira):
A empresa de leilão, Recorrente nos autos, refere-se insistentemente ao que designa por “arrematação frustrada”, defendendo essencialmente os seguintes pontos:
  - Necessidade de distinguir entre “arrematação” e “contrato de compra e venda”, sustentando que, nos termos do “artigo 19.º do Regulamento do Leilão”, ou seja da cláusula 19.ª das Condições Gerais, o contrato de compra e venda se celebra logo após a arrematação, de acordo com o preço fixado no lanço mais alto.
  - O contrato assim celebrado integra uma cláusula de reserva de propriedade estipulada pela cláusula 20.ª das Condições Gerais e que, por outro lado, também ao arrematante é facultado pela cláusula 23.ª das mesmas Condições Gerais “não celebrar a compra do bem”, em caso de certos defeitos da coisa, para além de sempre poder “não celebrar a compra do bem” por se arrepender da arrematação.
  - O ponto imediatamente acima referido é importante para determinar a chamada “arrematação frustrada”.
  - A norma de incidência do artigo 5.º da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), no entendimento da Recorrente, faz depender a verificação do facto tributário da circunstância de a arrematação encerrar em si um efeito translativo e, na ausência deste efeito, não existirá o facto tributário previsto na mesma norma.
- O imposto assume a natureza de uma tributação que incide sobre a transmissão da propriedade e não sobre os instrumentos contratuais. Chega mesmo a qualificar como “referência geral subsidiária” a previsão da alínea q) do n.º 3 do artigo 51º do Regulamento do Imposto do Selo (RIS).
- Desenvolver uma longa argumentação que recolhe do regime das vendas judiciais plasmado no Código de Processo Civil a tese de que é indispensável a verificação do efeito translativo da propriedade para preencher o conceito de arrematação.
- Invocar o princípio tributário da capacidade tributária do sujeito passivo, afirmando que a “batida do martelo” não é manifestação da capacidade contributiva da Recorrente, o que torna ilegal a cobrança de imposto que tenha por base essa “batida do martelo”. Neste sentido, sustenta que é o licitante que manifesta capacidade contributiva e será a este – e só a este – que a norma de incidência se dirige.
*
  II – Argumentação da Entidade Recorrente (DSF)
  Por seu turno, a Direcção dos Serviços de Finanças (DSF), entidade tributária, desenvolve os seguintes pontos relevantes para defender a sua posição:
  - Há lugar à dita tributação, sustentando que, com o facto “arrematação”, fica concretizado o facto tributário;
  - É irrelevante haver ou não efeito translativo imediato da propriedade coisa arrematada.
  - A arrematação, consubstanciada na “batida do martelo”, produz o efeito translativo da propriedade do bem arrematado.
  - A natureza jurídica do documento denominado “conditions of business” e designado por regulamento do leilão não é discutida pela entidade recorrida (além de designar as respectivas cláusulas por “artigos”, chega mesmo ao ponto de se referir ao documento como “diploma”).
  - Fazer interpretação de normas dos artigos 51.º e 52.º do Regulamento do Imposto do Selo (RIP), dela extraindo diversas conclusões quanto à verificação do facto tributário relevante.
*
Quid Juris?
Comecemos por analisar as normas de incidência objectiva e subjectiva do imposto do selo.
  III – A norma de incidência objectiva
  Ora, importa estabelecer quais as normas tributárias, concretamente as normas de incidência do RIS, aplicáveis aos factos em apreço.
  A Recorrente defende que há que proceder a uma “interpretação sistemática, unitária e coerente” de toda a Lei n.º 17/88/M, que aprovou o Regulamento do Imposto do Selo. Assim, desenvolve em diversos locais argumentos que têm por base a letra e a interpretação dos artigos 51.º e 52.º do RIS.
A Entidade Recorrida, sem sufragar a tese da interpretação “sistemática, unitária e coerente”, ainda assim tece uma argumentação na qual apresenta interpretação dos mesmos artigos que entende ser favorável à validade do acto recorrido.
  Neste âmbito, importa realçar o seguinte:
  - Não há qualquer norma geral de incidência do Imposto do Selo, visto que este imposto, nos termos do artigo 1.º do respectivo Regulamento, “recai sobre os documentos, papéis e actos designados” na Tabela Geral do Imposto do Selo.
- O Imposto do Selo é um imposto de prestação única, que tributa documentos, actos e factos enumerados na Tabela Geral, cuja matéria colectável é uma manifestação meramente indirecta da capacidade contributiva do sujeito passivo.
  - A norma de incidência invocada pela Entidade Recorrida é a do artigo 5.º da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), anexa ao Regulamento do Imposto do Selo (RIS) aprovado pela Lei n.º Lei n.º 17/88/M, de 27 de Junho e que dela faz parte integrante nos termos dos artigos 1.º e 2.º da mesma Lei:
«Arrematações de produtos, de géneros e de bens ou direitos sobre móveis ou imóveis, sobre o preço da arrematação ou da adjudicação»
  A que corresponde a taxa de 5‰, a liquidar por estampilha ou selo de verba.
  No caso dos autos trata-se da arrematação de bens móveis não sujeitos a registo, feita em leilão organizado por empresa comercial da especialidade, para a venda não ligada a qualquer processo judicial de certos bens, isto é, sob a égide do Direito Privado.
A circunstância de se tratar de uma venda privada exclui a hipotética aplicação do artigo 45.º do RIS:
«Não poderão ser entregues à parte arrematante ou a qualquer requerente, títulos ou documentos que envolvam cumprimento de julgado ou com que este possa executar-se ou registar-se, sem estar contado e pago o selo devido.»
Porquanto se enquadra no Capítulo XIV, dedicado aos processos forenses.
A circunstância de se tratar de bens móveis não sujeitos a registo exclui, por seu turno, a aplicação de todo o Capítulo XVII, dedicado às transmissões de bens, uma vez que, nos termos do n.º 1 do artigo 51.º do RIS:
«1. É devido imposto do selo por quaisquer documentos, papéis e actos que sejam fonte, para efeitos fiscais, de transmissão entre vivos, temporária ou definitiva:
  a) A título oneroso ou gratuito de imóveis;
  b) A título gratuito, de quaisquer outros bens, direitos ou factos sujeitos a registo, de acordo com a legislação aplicável, de valor superior a 50 000 patacas.»
Excluídos pela letra da Lei da norma de incidência do artigo 51.º, é bem de ver que as normas especiais de todo o Capítulo XVII não são aplicáveis à transmissão da propriedade destes bens, convicção que sai reforçada pela letra do artigo 54.º:
“1. É condição da tributação prevista no presente capítulo que os bens em causa estejam localizados na Região Administrativa Especial de Macau.
  2. No caso de bens móveis, consideram-se localizados na Região Administrativa Especial de Macau:
  a) Os bens que nela estejam sujeitos a registo, inscrição ou matrícula;
  b) As acções, quotas e participações em sociedades comerciais que nela tenham a sua sede.”
  Já que, ainda que localizados na RAEM, os bens dos autos não estão nela sujeitos a registo, inscrição ou matrícula, além de que não se trata de acções, quotas e participações em sociedades comerciais.
Por outro lado, o artigo 51.º do RIS não procede a qualquer definição do conceito de arrematação, limita-se a fazer incidir o Imposto do Selo sobre as arrematações, sem curar de definir, na lei tributária, aquilo que cabe (se couber) à lei civil ou comercial.
Nos artigos 51.º a 66º do RIS não encontramos, pois, normas susceptíveis de aplicação aos factos dos autos.
Os factos tributários de que se ocupa todo o Capítulo XVII são os previstos nos artigos 42.º e 43.º da TGIS e não o previsto no artigo 5.º
Não se oferece dúvidas que os artigos da TGIS constituem as normas de incidência do Imposto do Selo.
A competência para definir tais normas, por serem elementos essenciais do regime tributário, está reservada à Assembleia Legislativa, com base em proposta do Governo, nos termos da alínea 3) do artigo 71.º da Lei Básica.
As normas de incidência tributária “não são aplicáveis analogicamente, em razão do princípio da legalidade do imposto. Porquanto a aplicação analógica se traduziria na formulação de um nova norma, e não por via legal, que é a constitucionalmente adequada para estatuir sobre as matérias referidas. A mesma conclusão se impõe quanto à integração de lacunas “dentro do espírito do sistema”, ou seja, na base dos princípios do sistema jurídico-tributário ou do Direito em geral. (...) Também essa integração corresponderia à formulação de uma norma nova, criada pelo intérprete, e não pelo órgão legislativo competente, para definir a incidência tributária, ou as garantias dos contribuintes.”7
“Quanto às outras normas fiscais, parece admissível a sua aplicação analógica. Também ao contrário do que acontece relativamente às matérias já referidas, dominadas por um princípio da legalidade, quanto às outras matérias se pode admitir que as lacunas do Direito Fiscal sejam integradas “dentro do espírito do sistema”, pelo recurso aos princípios gerais deste ramo de Direito e, na falta deles, aos princípios gerais de Direito”.8
Há que purgar a análise da questão de tudo o que se refere às normas do Capítulo XVII do RIS, por se referirem a normas de incidência que nada têm a ver com a questão em apreço.9
Refira-se marginalmente que, também à luz do teor das próprias disposições invocadas, é algo incompreensível a pretensão de integrar “sistematicamente” o artigo 5.º da TGIS com normas do Capítulo XVII do RIS.
A inadequação da eventual aplicação por analogia de normas do Capítulo XVII torna-se nítida quando se atenta no n.º 2 do artigo 52.º, norma que prevê, em certas circunstâncias, a restituição do imposto pago:
  “2. A apresentação pelo sujeito passivo de sentença transitada em julgado, que reconheça a invalidade ou ineficácia do documento, papel ou acto que titulou a transmissão, impede a cobrança do imposto do selo e, se já tiver sido pago, confere direito à sua restituição.”
Quando conjugada com o n.º 1 do artigo 100.º:
1. Pode ser restituído o imposto do selo que a mais se mostre pago, salvo se o pagamento tiver sido efectuado por meio de estampilha.»
Na realidade, o artigo 5.º da TGIS impõe o pagamento do imposto por meio de estampilha, somente facultando o pagamento por selo de verba quando a arrematação tiver sido feita “perante quaisquer autoridades ou em serviços da RAEM ainda que personalizados, órgãos municipais, empresas públicas e pessoas colectivas de utilidade pública e de utilidade pública administrativa”.
Daqui se retira que, mesmo que por sentença judicial viesse a ser declarada a invalidade da arrematação, tal não obstaria à cobrança do imposto de selo nem permitiria a sua restituição.
Nem se diga que tal importa em excessiva prioridade da forma sobre a substância, já que a forma “estampilha” é uma opção deliberada do legislador e está expressamente estatuída pela Lei para todas as arrematações feitas perante pessoas de direito privado não dotadas de utilidade pública ou de utilidade pública administrativa.
O artigo 5.º da TGIS determina que as estampilhas sejam coladas no “auto”, ou seja, no documento que dá notícia da arrematação, documento este distinto de quaisquer outros de titulem a arrematação, nos quais se deverá tão-somente mencionar a importância do imposto do selo pago.
Ou seja, o documento sujeito ao selo é o “auto”.
Diversamente, sobre o (eventual) contrato escrito que titule a arrematação não incide o selo do artigo 5.º da TGIS. Em tal contrato haverá que fazer menção ao pagamento do imposto e ao seu montante.
Em consequência do que, não é sobre o contrato de compra e venda (que tanto pode ser reduzido a escrito como não, atenta a não exigência de forma especial para o contrato de compra e venda dos bens em causa) que incide o Imposto do Selo do artigo 5.º da TGIS, mas sim sobre um outro documento a saber, o auto da arrematação lavrado por quem presidir à praça, ou seja e in casu, pela empresa de leilão.
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  III - A norma de incidência subjectiva
O sujeito passivo da obrigação tributária em causa é o que está designado no artigo 5.º da TGIS:
“Esta permilagem é paga por meio de estampilhas coladas no respectivo auto e inutilizadas por quem presidir à praça ou conceder a remição ou distrate.”
É bem de ver que a Lei responsabiliza quem tiver presidido à praça pelo pagamento do imposto, cujo montante é calculado à razão de 5 por mil do preço implicado na arrematação, por meio de inutilização de estampilhas fiscais coladas no “auto”.
Tal pode dever-se a várias considerações de eficácia da cobrança do imposto, mas não parece necessário discutir aqui a sua razão de ser: não restam dúvidas de que quem responde, perante a Administração Fiscal, pelo pagamento do imposto devido, é o leiloeiro que organiza e preside ao leilão, e crucialmente pratica o acto denominado “arrematação”.
A Recorrente argumenta – e bem – que a “batida do martelo” não demonstra a capacidade contributiva da empresa de leilão.
Na realidade, essa capacidade contributiva é demonstrada pelos lanços dos licitantes, já que cada um destes lanços segundo a boa fé exigida no comércio jurídico, é uma afirmação da capacidade do património do licitante para responder pela obrigação de pagamento do preço oferecido (garantia geral das obrigações).
Aquando do pagamento do preço, é o vendedor que adquire a capacidade contributiva que está aqui em vista.
Face a esta realidade, qual o sentido da imposição feita pelo artigo 5.º da TGIS?
Habitualmente, o fenómeno de substituição do sujeito tributário passivo opera-se com base na técnica da retenção na fonte, como no caso do imposto profissional ou no das contribuições dos trabalhadores para o regime obrigatório do Fundo de Segurança Social. Tal explica-se facilmente pela circunstância de o empregador ter um domínio prévio sobre o rendimento que vai colocar à disposição do empregado. É exequível – e económico – responsabilizar o empregador enquanto substituto do sujeito passivo, pela retenção na fonte dos montantes a colectar e pela sua entrega à Administração.
Uma das consequências disto é que qualquer liquidação adicional responsabiliza o sujeito passivo (trabalhador) e não o substituto.
Diferente é o caso do Imposto Sobre Veículos Motorizados (ou, de modo semelhante, do Imposto de consumo), cujo sujeito passivo, na situação mais comum, é o comerciante que introduz o veículo novo no mercado, transmitindo-o para o consumidor.
Como se alcança sem mais, o comerciante repercute o imposto sobre o consumidor, mas não se trata aqui de uma retenção na fonte: o comerciante responde a título próprio pela liquidação e cobrança do imposto devido, não podendo invocar a falta de pagamento do veículo, no todo ou em parte, para se eximir à obrigação fiscal.
É ao comerciante que cabe precaver-se, segundo os usos, garantindo-se contra eventuais incumprimentos contratuais do comprador.
A técnica decorrente da letra do artigo 5.º da TGIS apresenta semelhanças com esta última: é também ela um exemplo de repercussão fiscal.
Nos casos exemplificativos do Imposto Sobre Veículos Motorizados e do Imposto de Consumo, é cristalino que a repercussão se produz sobre o consumidor.
No caso do artigo 5.º da TGIS tal já não é claro. Tanto poderá fazer-se sobre o comprador como sobre o vendedor.
Do ponto de vista tributário nada o impede.
Nos termos da cláusula 9.ª das Condições Gerais, no leilão dos autos terá sido convencionado que a repercussão do Imposto do Selo se faria sobre o vendedor, salvo quanto aos bens não vendidos10.
Mas tal cláusula, como é bem de ver, não vincula a Administração Fiscal: não é sequer oponível a terceiros.
Recorde-se, ainda, que o artigo 5.º da TGIS determina que as estampilhas sejam coladas no “auto”, ou seja, no documento que dá notícia da arrematação, documento este distinto de quaisquer outros de titulem a arrematação, nos quais se deverá tão-somente mencionar a importância do imposto do selo pago.
O artigo 5.º da TGIS refere-se – e não por acidente – ao “auto” como sendo o documento a selar.
E determina que tal selagem é responsabilidade de quem presidir à praça.
O sujeito passivo do imposto em apreço é, portanto, a Recorrente.
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IV - Recurso à disciplina do Código do Processo Civil para integrar o regime jurídico da venda em leilão
Outra questão debatida nos autos é a da possibilidade aplicação à venda em leilão (dos autos) das normas da Subsecção VI (Venda) da Secção IV (Pagamento) do Capítulo I (Processo ordinário) do Título II (Da execução para pagamento de quantia certa) do Livro IV (Do processo comum de execução) do Código de Processo Civil.
Trata-se dos artigos 779.º a 805.º, distribuídos por 4 Divisões:
I – Disposições gerais
  II – Venda judicial
  III – Venda extrajudicial
  IV – Invalidade da venda
Bastaria considerar a inserção sistemática destas normas para alcançar, sem dificuldades, o que está expressamente disposto na disposição geral do artigo 781.º (Instrumentalidade da venda), subordinando a realização da venda à subsistência da necessidade de obter os montantes suficientes para pagamento das despesas da execução, do crédito do exequente e dos credores com garantia real sobre os bens já vendidos.
De facto, a venda de que ali trata o Código de Processo Civil tem natureza meramente instrumental e está ordenada à realização coactiva do cumprimento de uma obrigação pecuniária, dispensando a colaboração do devedor-executado e impondo, pelo poder do tribunal, a venda de bens para conseguir essa realização coactiva.
Todas as normas que impõem deveres, estabelecem garantias e prevêem sanções neste âmbito encontram a sua justificação, não na circunstância de se tratar de uma “venda”, e muito menos ainda na especificidade de tal venda se fazer facultativamente com recurso a uma empresa de leilão.
A razão de ser destas normas está na natureza meramente instrumental da venda ali regulada.
Tal razão de ser está de todo ausente no caso dos autos.
Mais: o Código dedica diferentes Divisões à regulação da venda judicial em processo executivo (artigos 784.º a 796.º) e à venda extrajudicial em processo executivo (artigos 797.º a 801.º).
Ora a venda por empresa de leilão em sede de execução não é uma venda judicial, mas sim extrajudicial.
As normas abundantemente citadas pela Recorrente (e pela Entidade Recorrida) referem-se todas elas à venda judicial.
Mas o eventual recurso à analogia estaria limitado apenas às normas dedicadas à venda extrajudicial e às disposições gerais da venda em processo executivo (artigos 779.º a 783.º do CPC), bem como às relativas à invalidade da venda (artigos 802.º a 805.º).
O mesmo é dizer, a regulação separada e em paralelo das duas modalidades de venda (judicial e extrajudicial) em processo executivo exclui o recurso à analogia com a primeira daquelas e, consequentemente, com o disposto nos artigos 784.º a 796.º do CPC.
Ainda que assim não fosse, as normas em apreço seriam de escasso alcance, já que é o próprio n.º 3 do artigo 800.º do CPC que remete a venda por empresa de leilão para “as regras em uso”:
“3. A venda é feita pelo pessoal da empresa, segundo as regras em uso.”
O mesmo é dizer que, quanto à organização e processo da própria venda em leilão, o CPC declara expressamente aceitar as regras habituais do comércio, não estabelecendo quaisquer preceitos especiais nem definindo conceitos nesta matéria.
O interesse prevalecente nas normas do CPC é a realização coactiva da justiça, obtendo o pagamento em falta de quantia certa e tendo na sua origem um título executivo.
O único interesse determinante da realização de um leilão privado é o interesse – legítimo – das partes na conclusão de um contrato de compra e venda de certos bens.
Trata-se, assim, o leilão de uma modalidade específica de organização do processo de formação de um contrato de compra e venda, cumprindo – pelo menos – duas funções características:
– a selecção concorrencial do comprador, pela via da competição directa entre os interessados;
  – a indeterminação prévia do preço, que só se estabelece com a conclusão bem sucedida do processo concorrencial referido (este sucesso está frequentemente dependente de ser atingido um preço mínimo fixado pelo vendedor).
Espera-se normalmente do leilão que permita ao vendedor obter as melhores condições possíveis que o mercado pode proporcionar num dado momento, ou mesmo superiores ainda às que o mercado ofereceria, já que o acicate da competição pelo domínio exclusivo de um certo bem, associado a uma imagem de prestígio ou a um valor imaterial muito apreciado, pode levar potenciais compradores a oferecer preços superiores ao valor de mercado.
Ao invés, “o recurso à venda judicial leva a que, em geral, a coisa seja vendida à pressa, sem se escolher a devida oportunidade, sem negociações prévias, e sabendo de antemão o adquirente do “estado de necessidade” do vendedor. Tudo nos antípodas de uma operação económica minimamente adequada.” (Leite de Campos).
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V - A cláusula de reserva de propriedade
  A Recorrente afirma que a arrematação integra uma cláusula de reserva de propriedade que se mantém na esfera do vendedor até integral pagamento do preço da coisa (Cláusula 20.ª das Condições Gerais).
Independentemente das consequências jurídicas que pretende extrair desta cláusula, é de dedicar à mesma alguma atenção, pois é nela que se estipulam alguns dos efeitos empíricos atribuídos pelas Condições Gerais à arrematação:
– O comprador paga o preço da arrematação, 15% a título de comissão e demais despesas relevantes à empresa de leilão;
  – Se o comprador pretender fraccionar o pagamento dos bens arrematados, deposita imediatamente pelo menos 30% do preço da arrematação junto da empresa de leilão, sendo o remanescente devido no prazo máximo de 21 dias após a venda. Se o comprador não efectuar o pagamento neste prazo o depósito é considerado perdido. Neste caso, após dedução da comissão referida e das despesas relevantes, o depósito é dividido em duas partes iguais, que revertem a favor da empresa de leilão e do vendedor.
Além de fixar o conteúdo da prestação do comprador, o que esta cláusula estabelece é a faculdade de o comprador optar pelo pagamento diferido de uma parte do preço, bem como a cláusula penal para o caso de incumprimento deste pagamento diferido.
Na cláusula 20.ª nada se refere que seja susceptível de constituir um pacto de reserva de propriedade.
Há que debruçarmo-nos sobre a cláusula 19.ª, em cujos termos:
– O licitante assume a responsabilidade por todos os seus lanços;
  – A batida do martelo do leiloeiro assinala a aceitação do lanço mais elevado oferecido até ao momento da batida pelo licitante, o qual assina imediatamente o contrato de compra e venda;
  – Se não o fizer, o licitante é privado do direito a licitar e afastado da sala do leilão, sem direito à restituição do depósito;
  – A leiloeira reserva-se o direito de accionar judicialmente este licitante.
Uma vez mais nada se refere que possa indicar uma cláusula de reserva de propriedade.
A reserva de propriedade vem regulada num único artigo do Código Civil:
ARTIGO 403.º
Reserva da propriedade
1. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
2. Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros.
Vem ainda referida no n.º 4 do artigo 297.º do Código Civil, a propósito da prescrição:
“4. No caso de venda com reserva de propriedade até ao pagamento do preço, se prescrever o crédito do preço, pode o vendedor, não obstante a prescrição, exigir a restituição da coisa quando o preço não seja pago.”
  Quanto ao artigo 927.º do mesmo Código, estabelece que:
  “Vendida a coisa a prestações, com reserva de propriedade, e feita a sua entrega ao comprador, a falta de pagamento de uma só prestação que não exceda a oitava parte do preço não dá lugar à resolução do contrato, nem sequer, haja ou não reserva de propriedade, importa a perda do benefício do prazo relativamente às prestações seguintes, não obstante convenção em contrário.”11
O que o n.º 1 do artigo 403.º do CC estatui é que “é lícito” ao vendedor reservar a propriedade do bem alienado até à verificação de certo evento.
Uma consequência há que retirar deste preceito:
O vendedor que pretender reservar a propriedade ao abrigo do artigo 403.º do CC, terá que incluir tal reserva nos termos do contrato de alienação; enquanto derrogação da regra geral, esta reserva deve ser expressa.
Por outro lado, a letra do n.º 4 do artigo 297.º do CC sugere que a lei tem em vista, embora não com carácter necessário, que a entrega da coisa acompanhe a celebração do contrato de alienação com reserva de propriedade.
A doutrina não é absolutamente inequívoca quanto a este ponto, muito embora se afirme que “Pode haver estipulação da reserva de propriedade sem que haja entrega da coisa, embora a situação típica seja a da tradição imediata. Se assim não fosse, a celebração da compra e venda com reserva de propriedade teria uma utilidade muito reduzida ou quase nula.”, e “A entrega imediata da coisa ao comprador mostra-se essencial para que a compra e venda com reserva de propriedade prossiga as suas finalidades. Se a coisa não fosse entregue no momento da conclusão do negócio, não se afigura que as partes tivessem qualquer interesse ou vantagem em celebrar um negócio deste tipo. A disponibilidade imediata da coisa, sem que o preço esteja pago, é para o comprador o motivo determinante da celebração do contrato.”12
De facto, e sem considerar a questão na sua forma mais geral, não se descortina, no caso em apreço, qual a utilidade empírica trazida por uma tal reserva, já que:
– por um lado a coisa não é entregue a comprador antes do integral pagamento do preço;
  – por outro lado, ocorrendo incumprimento do pagamento diferido do preço, a resolução do contrato acompanhada da efectivação da cláusula penal que declara perdido o depósito de 30% já alcança o mesmo efeito;
  – ainda, não sendo assinado o contrato de compra e venda, não há lugar à consideração de qualquer reserva de propriedade por não ter havido contrato de alienação;
  – finalmente, assinado o contrato mas não sendo imediatamente pago o preço ou o depósito referido, além da resolução do contrato restará à empresa de leilão accionar judicialmente o comprador pelos prejuízos que tal tiver causado.
O único efeito que se consegue descortinar nesta invocada cláusula de reserva de propriedade seria o de afastar a tributação em Imposto do Selo, se a norma de incidência acaso se referisse à transmissão da propriedade da coisa enquanto facto tributário.
Mas afastada, como se viu, esta tese da incidência sobre a transmissão da propriedade, também para este efeito a cláusula se revelaria inútil.
A que acresce a circunstância de as Condições Gerais não expressarem tal cláusula que, portanto, não foi sequer formulada.
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  Conclusões:
Pelo exposto, concluimos que:
  1. Não há qualquer norma geral de incidência do Imposto do Selo, visto que este imposto, nos termos do artigo 1.º do respectivo Regulamento, o Imposto “recai sobre os documentos, papéis e actos designados” na Tabela Geral do Imposto do Selo.
2. A norma de incidência a aplicar é a do artigo 5.º da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), anexa ao Regulamento do Imposto do Selo (RIS) aprovado pela Lei n.º Lei n.º 17/88/M, de 27 de Junho e que dela faz parte integrante nos termos dos artigos 1.º e 2.º da mesma Lei:
  “Arrematações de produtos, de géneros e de bens ou direitos sobre móveis ou imóveis, sobre o preço da arrematação ou da adjudicação”.
  A que corresponde a taxa de 5‰, a liquidar por estampilha ou selo de verba.
  3. Os factos tributários de que se ocupa todo o Capítulo XVII do RIS são os previstos nos artigos 42.º e 43.º da TGIS e não o previsto no artigo 5.º
4. O Capítulo XVII do RIS não é, assim, aplicável ao caso em apreço.
5. O artigo 5.º da TGIS determina que as estampilhas sejam coladas no “auto”, ou seja, no documento que dá notícia da arrematação, documento este distinto de quaisquer outros de titulem a arrematação, nos quais se deverá tão-somente mencionar a importância do imposto do selo pago.
6. O artigo 5.º da TGIS não faz incidir imposto de selo sobre o (eventual) contrato escrito que titule a arrematação. Em tal contrato haverá que fazer menção ao pagamento do imposto e ao seu montante.
7. Não é sobre o contrato de compra e venda (que tanto pode ser reduzido a escrito como não, atenta a não exigência de forma especial para o contrato de compra e venda dos bens em causa) que incide o Imposto do Selo do artigo 5.º da TGIS, mas sim sobre um outro documento a saber, o auto da arrematação lavrado por quem presidir à praça, ou seja e in casu, pela empresa de leilão.
8. O sujeito passivo da obrigação tributária em causa é o que está designado no artigo 5.º da TGIS:
  “Esta permilagem é paga por meio de estampilhas coladas no respectivo auto e inutilizadas por quem presidir à praça ou conceder a remição ou distrate.”
  Ou seja, quem tiver presidido à praça.
  9. Tal não importa num recurso à técnica da substituição tributária. Nem vendedor nem comprador são mencionados na norma de incidência.
10. Importa sim no recurso à técnica da repercussão fiscal. Tal técnica é empregue, por exemplo no Imposto sobre Veículos Motorizados e no Imposto de Consumo.
11. O obrigado (quem presidir à praça) pode fazer repercutir o Imposto sobre o comprador ou sobre o vendedor. De acordo com as Condições Gerais estabelecidas pela Recorrente, é sobre o vendedor que tal repercussão se fará em regra, estando assim respeitado o princípio da capacidade contributiva.
12. A disciplina da Divisão II (Venda judicial) da Subsecção VI (Venda) da Secção IV (Pagamento) do Capítulo I (Processo ordinário) do Título II (Da execução para pagamento de quantia certa) do Livro IV (Do processo comum de execução) do Código de Processo Civil não é aplicável à venda por empresa de leilão, que – em sede de processo executivo – está regulada pela Divisão III (venda extrajudicial).
13. O Código de Processo Civil, ao tratar da venda por empresa de leilão, não manda aplicar as regras da venda judicial, mas sim «as regras em uso».
14. A ratio das normas dedicadas à venda em processo executivo baseia-se na natureza instrumental dessa venda, que não se confunde com o simples desenvolvimento de um negócio meramente económico.
15. É no âmbito do Direito Privado que se situa a formação, celebração e execução do contrato meramente privado de compra e venda com recurso a empresa de leilão, bem como o regime das suas garantias e o do incumprimento.
16. Nas cláusulas invocadas pela Recorrente não se formula qualquer pacto de reserva de propriedade.
17. Ainda que tal cláusula existisse, ela seria tributariamente irrelevante, já que a norma de incidência não considera a transmissão da propriedade como facto tributário.
18. Não oferece dúvidas que o leilão se realizou e que nele se verificou a arrematação por algum dos licitantes de certo bem por preço determinado.
19. O obrigado é quem presidiu à praça. O correspondente Imposto é devido por aplicação da taxa do artigo 5.º da TGIS.
20. O obrigado não está impedido de repercutir o Imposto sobre o vendedor, nos termos da cláusula 9.ª das Condições Gerais.
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  RAEM, aos 14 de Dezembro de 2017.
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Segundo Juiz-Adjunto

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Fong Man Chong


1 - Saldanha Sanches, Man. Dto Fiscal, Coimbra Editora, 3ª ed., 432
2 - Ma. Dto Fiscal, LisboaManuais da FDL, 1974, 85 e 87
3 - José Rato Rainha, Impostos de Macau, UM, FDM, FM, 1997, 220
4 - Ana Prata, Dicionário Jurídico, 4ª ed., Almedina, 123
5 - Autora e ob. acima citada, 49
6 - Galvão Telles, Obrigações, 3ª ed., 60
7 Cfr. Soares Martínez, Direito Fiscal, Coimbra, 10ª edição, pág. 148.
8 Idem.
9 A referência aos trabalhos preparatórios da Lei n.º 8/2001 não parece de todo adequada. Esta Lei teve por objecto principal a revogação do Código do Imposto da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações e o aditamento dos Capítulos dedicados à tributação em Imposto do Selo das Transmissões de bens e às Disposições penais nas transmissões de bens, bem como a introdução dos artigos correspondentes na TGIS, a modificação do artigo 6.º da TGIS (arrendamentos) e diversas outras disposições instrumentais do regime ali inserido no RIS. O artigo 5.º não foi objecto desta intervenção legislativa.
10 Não resulta claro da argumentação da Recorrente como compagina a afirmação de que “são os adquirentes em leilão (...) que manifestam capacidade contributiva por via de tais aquisições de bens” com o teor da referida cláusula 9.ª das Condições Gerais que obriga o vendedor s suportar 0,5% de “Imposto do Governo”. Trata-se, porém, de matéria que não cabe apreciar, pelo que não se discute.
11 Uma última referência, no artigo 1585.º nada tem a ver com a questão em apreço.
12 Maria Isabel Helbling Menéres Campos, Contributo para o estudo da reserva de propriedade. Em especial a reserva de propriedade a favor do financiador, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico-Civilísticas, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Setembro de 2009.
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813/2016-51