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Processo n.º 84/2017. Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência em processo penal.
Recorrente: A.
Recorrido: Ministério Público.
Assunto: Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência em processo penal. Oposição de acórdãos. Consumação do crime de furto ou de roubo.
Data do Acórdão: 24 de Janeiro de 2018.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.

SUMÁRIO:
Existe oposição entre os acórdãos de 28 de Setembro de 2017, no Processo n.º 821/2017, do Tribunal de Segunda Instância e o de 1 de Novembro de 2016, do Tribunal de Última Instância, no Processo n.º 76/2016, sobre a questão de saber quando se consuma o crime de furto ou de roubo, entendendo o primeiro que o agente atingiu o resultado do domínio de facto sobre a coisa móvel alheia logo na altura em que subtraiu e se apropriou da coisa móvel alheia, bem como abandonou o local em causa, pondo-se em fuga e consequentemente, o ofendido perdeu o direito de controlo e de domínio sobre o seu bem; enquanto o segundo acórdão considerou que a subtracção no crime de furto ou roubo traduz-se na conduta que faz com que a coisa saia do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor, entrando no domínio do agente da infracção, sendo que a subtracção no crime de furto só se consuma quando o domínio do agente da infracção sobre a coisa se torna relativamente estável, definindo-se esta estabilidade como aquela que ultrapassa os riscos imediatos de reacção da vítima, das autoridades ou de terceiro que auxilia a vítima.

O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, interpõe recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do Acórdão de 28 de Setembro de 2017, no Processo n.º 821/2017, do Tribunal de Segunda Instância (TSI), no qual foi arguido, com fundamento em o mesmo se encontrar em oposição com o Acórdão do Tribunal de Última Instância (TUI), de 1 de Novembro de 2016, no Processo n.º 76/2016.
De acordo com o recorrente, a oposição entre os dois acórdãos consiste em saber quando se efectiva a subtracção para efeitos da consumação do crime de furto.
Entende o recorrente que no acórdão fundamento se considerou que a subtracção no crime de furto traduz-se na conduta que faz com que a coisa saia do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor, entrando no domínio do agente da infracção. E, assim, a subtracção só se efectiva quando o domínio do agente da infracção sobre a coisa se torna relativamente estável, aquela que ultrapassa os riscos imediatos da reacção da vítima.
Para o mesmo recorrente, no acórdão recorrido entendeu-se diferentemente.
O Ex.mo Procurador-Adjunto, na resposta à motivação, pronuncia-se pela procedência do recurso, dizendo haver oposição de direito entre os acórdãos referidos, devendo fixar-se jurisprudência no sentido do acórdão do TUI.
No seu parecer, o Ex.mo Procurador-Adjunto manteve a posição já assumida na resposta à motivação.


II – Factos
No acórdão recorrido deram-se como provados os seguintes factos:
- Em 10 de Janeiro de 2017, por volta das 02h20, o ofendido B e seu amigo C passavam pela entrada de Massage Center, sito em Macau, na Rua do Porto. Na altura, o ofendido segurava com a axila esquerda uma mala de mão da cor preta (de marca: Bottega Veneta, com o preço aproximado de onze mil dólares de Hong Kong (HKD11.000,00)).
- Antes disso, o Arguido A tinha perdido muito dinheiro no casino e viu que o ofendido e seu amigo C se encontravam em estado de embriaguez, consequentemente, por ganância, o Arguido, aproveitando a desatenção do ofendido, subtraiu por trás do mesmo a mala de mão que era segurada pela axila esquerda deste último, bem como fugiu em direcção à Alameda Dr. Carlos d’Assumpção.
- O ofendido e C foram logo perseguir o Arguido e gritaram em voz alta. Os agentes da Polícia Judiciária que passavam pelo local em causa, presenciaram a aludida situação e, em consequência, participaram também na perseguição do Arguido. No decurso, o Arguido abandonou a mala de mão em apreço na beira do caminho próxima ao poste de iluminação n.º XXXXXX situado na zona de estacionamento de motociclos e continuou a fugir. Enfim, o Arguido foi interceptado pelos agentes da PJ.

III - Direito
1. Requisitos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, em processo penal.
Cabe proferir a decisão a que se refere o n.º 1 do artigo 423.º do Código de Processo Penal, isto é, decidir se o recurso deve prosseguir ou se deve ser rejeitado, por ocorrer motivo de inadmissibilidade ou por não existir oposição de julgados.
Seguimos aqui o que dissemos no acórdão de 23 de Setembro de 2015, no Processo n.º 59/2015.
Dispõe o artigo 419.º do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pelo artigo 73.º da Lei n.º 9/1999, de 20.12:
“Artigo 419 º
Fundamento do recurso

1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado”.

Face a esta norma, trata-se de saber:
- Se foram proferidos dois acórdãos que, relativamente, à mesma questão de direito, assentam em soluções opostas;
- Se as decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação;
- Se o acórdão fundamento é anterior ao acórdão recorrido e se transitou em julgado;
- Se do acórdão recorrido não era admissível recurso ordinário;
- Se o recurso foi interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, ou seja do acórdão recorrido (n.º 1 do artigo 420.º do Código de Processo Penal).

2. Existência de dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas
Relativamente ao pressuposto fundamental em questão – existência de dois acórdãos que, relativamente, à mesma questão de direito, assentam em soluções opostas - tem-se considerado (por exemplo, no acórdão do TUI, de 11 de Março de 2009, no Processo n.º 6/2009) que:
As decisões devem ser diversas, opostas, não necessariamente contraditórias.
A oposição entre as decisões deve ser expressa e não meramente implícita. Não basta que numa das decisões possa ver-se aceitação tácita de doutrina contrária a outra decisão.
A questão decidida pelos dois acórdãos deve ser idêntica e não apenas análoga. A este respeito tem-se entendido que os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões, ou seja, os factos nucleares e necessários à resolução do problema jurídico, devem ser idênticos.
A questão sobre a qual se verifica a oposição deve ser fundamental. Ou seja, a questão de direito deve ter sido determinante para a decisão do caso concreto.
A questão sobre a qual há oposição tem de ser uma questão de direito. Não pode ser uma questão de facto, até porque o TUI não aprecia, normalmente, matéria de facto.
Se uma referência, de um Acórdão, sobre uma questão jurídica, não se consubstancia numa decisão, nunca pode haver oposição de acórdãos conducente a uma decisão uniformizadora de jurisprudência por parte do TUI (acórdão do TUI, de 31 de Março de 2009, no Processo n.º 6/2009).
A parte preceptiva da decisão judicial é apenas a ratio decidendi, ou seja, a razão de decidir, a regra de direito considerada necessária pelo juiz para chegar à sua conclusão. Os obiter dicta (regras de direito que não são fundamentais para decidir, aquilo que é dito sem necessidade absoluta para tomar a decisão) não vinculam (acórdão do TUI, de 31 de Março de 2009, no Processo n.º 6/2009).

3. O caso dos autos
Há efectivamente divergência entre os dois acórdãos sobre a mesma questão de direito, sendo esta a oposição fundamental, no sentido atrás mencionado. Ou seja, a questão de direito sobre a qual incide a divergência foi determinante para as decisões dos casos concretos.
No acórdão deste TUI considerou-se que a subtracção no crime de furto ou roubo traduz-se na conduta que faz com que a coisa saia do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor, entrando no domínio do agente da infracção, sendo que a subtracção no crime de furto só se consuma quando o domínio do agente da infracção sobre a coisa se torna relativamente estável, definindo-se esta estabilidade como aquela que ultrapassa os riscos imediatos de reacção da vítima, das autoridades ou de terceiro que auxilia a vítima.
No acórdão recorrido fizeram-se as seguintes considerações relativamente aos factos provados, acima transcritos:
«Obviamente, o Recorrente atingiu o resultado do domínio de facto sobre a coisa móvel alheia logo na altura em que subtraiu e se apropriou da coisa móvel alheia, bem como abandonou o local em causa, consequentemente, o ofendido perdeu o direito de controlo e de domínio sobre o seu bem.
Concordamos perfeitamente com a opinião dada pelo Digno Delegado do Procurador na análise dos factos: “O crime efectiva-se na altura em que o Recorrente subtraiu a mala de mão, enquanto a retenção do aludido bem pelo Recorrente e a fuga deste correspondem a um estado da continuação da posse da mala de mão e não uma continuação do estado de crime nem continuação de crime”».
É, pois claro, que o acórdão recorrido sufraga tese diversa e oposta sobre a mesma questão de direito relativamente à perfilhada pelo acórdão fundamento.

III - Decisão
Face ao expendido, reconhece-se a existência de oposição entre os acórdãos de 28 de Setembro de 2017, no Processo n.º 821/2017, do TSI e o de 1 de Novembro de 2016, do TUI, no Processo n.º 76/2016 e determina-se a continuação do recurso para fixação de jurisprudência.
Macau, 24 de Janeiro de 2018.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
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Processo n.º 84/2017

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Processo n.º 84/2017