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Proc. nº 273/2017
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 11 de Janeiro de 2018
Descritores:
- Execução
- Dever de cooperação

SUMÁRIO:

I - O art. 722º nº1, do CPC representa, mais do que um simples poder, um verdadeiro dever.

II - Ao cominar ao juiz a incumbência de determinar a realização das diligências adequadas, não está o legislador senão a impor ao juiz uma vinculação de cooperar com o exequente. Dever que apenas depende de uma condição: o de o exequente justificadamente alegar séria dificuldade na identificação ou localização de bens penhoráveis.

III - Desde que se verifique aquela condição, o referido dever de cooperação não deixa ao juiz margem de livre escolha, a não ser na opção pelas diligências que repute adequadas, porque frutíferas.

Proc. nº 273/2017

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I – Relatório
A, casado, com domicílio em Macau, na Rua XX, Edifício XX, XXº andar “XX”, na Taipa, ----
Instaurou em 2/06/2010 no TJB (Proc. nº CV2-10-0040-CEO) ----
execução para pagamento de quantia certa ----
contra ----
“B LDA.”, em chinês, B有限公司, sociedade comercial por quotas com sede em Macau, na Avenida XX, nº XX, XX Centro Comercial, XXº andar “XX”, matriculada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau sob o nº SO 3XXX3, com o capital social de MOP $100.000,00 (cem mil patacas), com base em dois cheques bancários que foram devolvidos por falta de provisão.
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O exequente, atendendo ao facto de a dívida ainda não estar totalmente satisfeita, requereu a fls. 28/29 dos presentes autos (218 dos autos de execução), em 7/09/2016, o prosseguimento dos autos com a nomeação à penhora de todas as contas bancárias, a prazo, de poupança e/ou à ordem, de que a sociedade executada seja titular junto de instituições bancárias locais.
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O juiz titular do processo indeferiu o pedido com os fundamentos constantes do despacho de fls. 219, cujo teor mais à frente se transcreverá.
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O exequente recorreu, então, de tal decisão, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1. Todos nós sabemos que a lei de Macau exige rigorosamente que as entidades bancárias/ou os departamentos públicos protegem a privacidade pessoal e o artº 2º do CPC, estipula claramente que, em princípio, a lei proíbe a autodefesa, portanto sem a cooperação da entidade judicial (por exemplo: segundo a prática habitual isenta-se o dever de segredo das entidades bancárias/ou os departamentos públicos), o exequente durante a acção de execução tem enfrentado muitos obstáculos impossíveis de resolver com sua própria força.
2. Com vista a garantir o efeito útil da acção, o legislador aquando elaborou a nota de abertura nas fls. LXIII, 7º parágrafo, o artº 8º, nº 4 e o artº 722º do CPC, foram para garantir aos exequentes, o direito de pedir a cooperação do Tribunal.
3. Pelo que, entende o recorrente que os fundamentos constantes no despacho recorrido proferido pelo Tribunal a quo foram muito injustos para com o recorrente, designadamente o Tribunal recorrido expôs “não tendo o exequente indicado contas concretas, não tendo demonstrado que a executada tenha qualquer actividade comercial, e não tendo demonstrado que fez diligências com vista a obter por si as informações necessárias para poder nomear bens à penhora, vai indeferido o requerimento em apreço”, foi por isso que o recorrente nas fls. 218 dos autos pediu ao Tribunal recorrido para prestar cooperação, tal pedido foi dentro do âmbito da adequação e proporcionalidade, nunca houve abuso do direito processual.
4. Além disso, o recorrente foi dentro do âmbito do seu controlo, prestou o seu dever de cooperação e respeito pelo Tribunal recorrido, bem como apresentou justa causa para pedido da diligência.
5. Conforme estipula no artº 36º, nº 1 da LB, aos residentes de Macau é assegurado o acesso ao Direito, aos tribunais, à assistência por advogado na defesa dos seus legítimos direitos e interesses, bem como à obtenção de reparações por via judicial.
6. No presente processo, o recorrente intentou acção de execução nos termos legais, usufruiu legalmente o seu direito processual. O Tribunal recorrido rejeitou o pedido legal do recorrente (vide fls. 219 dos autos), esta decisão sem dúvida prejudicou o direito fundamental do recorrente a que tem direito - garantia de acesso aos tribunais.
7. Se adoptarmos a lógica do Tribunal recorrido, de que o exequente não indicou 100% a situação dos bens da executada, que por sua vez não deve oficiosamente verificar a situação dos bens da executada, então é da pretensão do Tribunal ver o direito legal do recorrente seja posto no topo da prateleira, deixando o tempo passar até perder a acção?
8. Face ao exposto, o recorrente entende que o despacho recorrido violou o dever de cooperação previsto no artº 8º, nº 4 e 722º do CPC, ao mesmo tempo, afectou o direito fundamental do recorrente - garantia de acesso aos tribunais, violou o artº 36º da LB, artº 1º, nº 2 do CPC, pelo que deve revogar ou anular o despacho recorrido.
III. PEDIDO:
Com base no exposto, conforme os respectivos fundamentos e disposição legal, requeira aos Mmºs Juízes do TSI que julguem procedente a fundamentação do recurso, anulem ou revoguem o despacho recorrido proferido no dia 13/09/2013 pelo 2º Juízo Civil do TJB (vide fls. 219 dos autos), autorizem o pedido do recorrente constante nas fls. 218 dos autos, de auxiliar o recorrente na penhora das eventuais contas bancárias da executada e extrair informação dos seus bens caso houver, bem como, todas as consequências jurídicas.”
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Não houve resposta ao recurso.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
Nos autos de execução instaurada pelo exequente A contra B LDA., em chinês, B有限公司, veio aquele requerer a fls. 218 o seguinte:
“A, exequente nos autos à margem referenciados, que move contra a sociedade comercial por quotas denominada B LDA., em chinês, B有限公司, vem, atento o facto de a quantia exequenda não se encontrar ainda integralmente paga e tendo em consideração que já decorreu quase um ano desde que o exequente obteve informações sobre a situação patrimonial da executada, requerer a V. Exa. se digne ordenar o prosseguimento dos presentes autos.
Na medida em que desconhece quaisquer bens da executada, vem, ao abrigo do disposto do artigo 721.º e artigo 749.º do Código de Processo Civil, nomear à penhora todas as contas bancárias, a prazo, de poupança e/ou à ordem, em pataca e/ou dólares de Hong Kong e/ou noutra moeda, conjuntas e/ou solidárias e/ou em nome individual de que seja titular a executada junto das instituições bancárias locais.
Assim, vem requerer a V. Exa. se digne oficiar às referidas instituições de crédito, por intermédio da Autoridade Monetária de Macau, dispensando-as do sigilo bancário a que, nos termos da lei, estão vinculadas, para o efeito de informarem o Tribunal sobre a existência de eventuais contas e respectivos saldos, ordenando, desde logo, a penhora das mesmas contas bancárias, e assim se tomar viável, por parte do exequente, o exercício do direito conferido no citado art.749.º.
Por outro lado, o exequente desconhece quaisquer bens imóveis ou móveis sujeitos a registo de que a executada seja proprietária e também não está ao seu alcance obter esse tipo de informação junto das Conservatórias de Registo de Macau.
Assim sendo, vem requerer a V. Exa. se digne oficiar às Conservatórias do Registo e dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau para informarem da existência de bens aí registados em nome da executada.”
- Sobre este requerimento recaiu o seguinte despacho:
“Fls. 218:
Desde o ano de 2012 que o exequente vem nomeando à penhora possíveis saldos de contas bancárias da executada e vem requerendo que se solicitem informações sobre a existência de bens da mesma executada (fls. 89). Desde tal data a penhora não tem sido possível e as informações sobre a existência de bens não têm sido obtidas, o que tem implicado custas processuais que o exequente vem adiantando sempre que os autos são contados.
Repete agora o exequente o requerimento que vem fazendo. Ora, não estando demonstrado que a executada sociedade comercial tenha qualquer actividade, antevê-se que se voltarão a frustrar as diligências requeridas pelo exequente (penhora de saldos bancários e solicitação de informações sobre a existência de bens).
Pelo exposto, não tendo o exequente indicado contas bancárias concretas, não tendo demonstrado que a executada tenha qualquer actividade comercial e não tendo demonstrado que fez diligências com vista a obter por si as informações necessárias para poder nomear bens à penhora, vai indeferido o requerimento em apreço.
Notifique.”
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III – O Direito
1 - O exequente, na sua peça alegatória de recurso, defende que o despacho recorrido viola o dever de cooperação previsto nos arts. 8º, nº4 e 722º do CPC, afecta o direito fundamental de garantia de acesso aos tribunais, bem como violou os arts. 36º da Lei Básica e 1º, nº2, do CPC.
No essencial, entende que o despacho em crise o impede de aceder ao direito de obter coercivamente a satisfação da dívida exequenda.
Vejamos.
O art. 8º, nº4 do CPC dispõe:
“Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo”.
Trata-se de um dever de cooperação por parte do tribunal para com alguma das partes. Dever que a lei elevou a princípio processual e que, por isso, é transversal a todo o processo e a todas as espécies e formas processuais.
De qualquer maneira, este princípio geral acaba por ser desenvolvido, ou concretizado especificamente no quadro da execução, no art. 722º, com a seguinte redacção:
“1. Sempre que o exequente justificadamente alegue séria dificuldade na identificação ou localização de bens penhoráveis do executado, incumbe ao juiz determinar a realização das diligências adequadas.
2. Pode ainda o juiz determinar que o executado preste ao tribunal as informações que se mostrem necessárias à realização da penhora, sob pena de ser considerado litigante de má fé”.
Como se pode constatar a partir da conjugação dos dois dispositivos legais transcritos, o tribunal está obrigado a colaborar com a parte exequente, de modo a permitir que esta logre com êxito obter pela via coerciva a satisfação da sua pretensão.
Perante todas as contingências e vicissitudes por que passa o exequente, de entre as quais a mais significativa é, como se sabe, a enorme dificuldade em saber quais os bens de que o executado seja proprietário a fim de os nomear à penhora, ao tribunal está cometido o relevante papel de garante de que a justiça seja feita também por este meio processual. O tribunal funciona aqui como um esteio, um escudo, um cooperante da parte que não tem possibilidade, senão por esta via, de realizar com êxito o seu direito1.
Daí que se pense que o papel do tribunal, e que o art. 722º nº1, do CPC acentua, representa, mais do que um poder, um verdadeiro dever. Ao cominar ao juiz a incumbência de determinar a realização das diligências adequadas, não está o legislador senão a impor ao juiz uma vinculação de cooperar com o exequente. Dever que apenas depende de uma condição: o de o exequente justificadamente alegar séria dificuldade na identificação ou localização de bens penhoráveis.
Desde que se verifique esta condição, salvo melhor opinião, este dever de cooperação não deixa ao juiz margem de livre escolha, a não ser na opção pelas diligências que repute adequadas, porque frutíferas. Fora dessa opção, não lhe é permitido cooperar ou deixar de cooperar com o exequente. Tem mesmo que cooperar.
Aliás, esta asserção está em linha com a ideia de que o processo judicial de execução, tal como o declarativo cível, é um “processo de partes”. O interesse a defender é privado, pertence às partes. O juiz não pode sobrepor-se a esse interesse, criando obstáculos a que ele se realize.
Quer isto dizer que, no nosso entendimento, aquele dever plasmado no art. 722º, nº1 não pode, de maneira nenhuma, reflectir-se na prática de qualquer despacho de mero expediente, nem consequentemente tampouco caracteriza o exercício de um poder discricionário, tal como estes conceitos são definidos no art. 106º, nº4, do CPC.
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2 - Preciso é, agora, apurar se podemos em concreto dar por verificada a condição estabelecida no preceito.
Ora, o exequente no requerimento de fls. 218 explicou que desde há um ano desconhece quaisquer bens da executada. Daí o ter pedido ao tribunal se dignasse oficiar às instituições bancárias, por intermédio da Autoridade Monetária de Macau, com dispensa do sigilo bancário, no sentido de informarem eventuais contas e respectivos saldos, a fim de se proceder posteriormente à respectiva penhora nos termos do art. 749º do CPC. Como não há outra maneira de terceiros chegarem ao conhecimento dos saldos bancários, face ao sigilo bancário, pensamos que estava suficientemente justificada a pretensão. Aliás, “Quando o exequente requer a colaboração do Banco de Portugal para identificar as contas bancárias do executado, deverá entender-se que o mesmo não tem conhecimento efectivo de factos que permitam dispensar essa colaboração nem tem meios próprios que lhe permitam suprir a necessidade dela” 2.
E isto que se diz das contas bancárias, igualmente se afirma em relação ao pedido relativo às Conservatória dos Registos de Macau, uma vez que declarou desconhecer quais bens imóveis ou móveis sujeitos a registo.
O mesmo é dizer: o exequente cumpriu a exigência da norma do art. 722º, nº1, do CPC restando ao tribunal efectuar a necessária diligência. E não cremos que a diligência fosse necessariamente inútil. É certo que, tal como diz o Ex.mo juiz no despacho impugnado, o exequente não tem tido sorte desde 2012 na nomeação à penhora dos eventuais saldos bancários da executada.
Como é evidente, não poderia o exequente indicar contas bancárias concretas. Como poderia fazê-lo se o titular está protegido pelo sigilo bancário?!
Por outro lado, como podia o tribunal antever que esta diligência se iria frustrar novamente? Será que neste intervalo temporal de um ano não poderia ter havido nova abertura de contas bancárias pela executada ou a reactivação de algumas contas pré-existentes? Como podemos nós afirmar que se voltariam a frustrar as diligências requeridas?
Sendo assim, somos a concluir que o despacho em causa, caso se mantivesse, acabaria interferir no conflito de interesses entre as partes. Ou seja, ao negar a colaboração solicitada pelo exequente estaria o tribunal a contribuir para que o interesse daquele não se realizasse e, em vez disso, acabaria por resultar num benefício do executado. E isto, segundo cremos, contraria o espírito da lei (cfr. arts. 8º, nº4, 106º, nº4, e 722º, nº1 e do CPC)3.
Deveria, pois, ser deferida a pretensão.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, em consequência do que se revoga o despacho sindicado e se determina que o tribunal recorrido satisfaça a pretensão.
Sem custas.
T.S.I., 11 de Janeiro de 2018
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong

1 Conforme se constatou directamente em Outubro de 2017 em reunião havida entre uma delegação dos tribunais da RAEM com os órgãos judiciais da cidade de Shaoshan, na província de Hunan, na República Popular da China, os tribunais acordaram ali com os bancos e entidades registrais, no sentido de automaticamente aqueles cativarem e apreenderem imediatamente as contas bancárias e bens em nome do executado. Um bom exemplo de cooperação que não deixa margem para fuga às responsabilidades por parte dos executados.
2 Ac. da RL, de 21/09/2006, Proc. nº 2560/06
3 Em sentido próximo, ver Ac. do TSI, de 22/03/2012, Proc. nº 632/2011.
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273/2017 12