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 ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
A, melhor identificada nos autos, interpõe recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância em 27 de Julho de 2017 nos autos de recurso penal n.º 874/2015, alegando que esta decisão judicial se encontra em oposição, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito, com o que foi decidido pelo mesmo Tribunal em vários acórdãos anteriores, designadamente de 28 de Julho de 2009, proferido no processo n.º 501/2009 (contando-se ainda os de 29 de Março de 2012, proferido no processo n.º 827/2009, de 19 de Julho de 2012, proferido no processo n.º 639/2012 e de 29 de Março de 2009, proferido no processo n.º 453/2009).
Na tese da recorrente, no tocante à mesma questão de direito que reside em saber se é admissível recurso do despacho que admite a abertura de instrução, existe oposição manifesta entre o acórdão recorrido e os acórdãos fundamentos, dado que, no primeiro, o TSI considera inadmissível o recurso, enquanto no acórdão de 28 de Julho de 2009, proferido no processo n.º 501/2009, não obstante ter fixado um regime diferente para a subida do recurso do despacho que declara a abertura de instrução, a solução dada à mesma questão – a da recorribilidade daquele mesmo despacho – foi a da respectiva admissibilidade.
E pede que o presente recurso seja admitido e seja ordenado o seu prosseguimento nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 424.º do Código de Processo Penal.
Respondeu o Ministério Público, pugnando pela rejeição preliminar do recurso, com apresentação das seguintes conclusões:
1ª- No Acórdão decretado no Processo n.º 17/2012, o Venerando TUI assevera que são requisitos do recurso extraordinário para fixação da jurisprudência: a)- Existência de dois Acórdãos que, relativamente, à mesma questão de direito, assentam em soluções opostas; b)- As decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação; c)- O acórdão fundamento é anterior ao acórdão recorrido e se transitou em julgado; d)- Não é admissível recurso ordinário do acórdão recorrido; e)- O recurso deve ser interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
2ª- Sintetizando as boas doutrinas já sustentadas (cfr. arestos nos Processos n.º 16/2004, n.º 29/2004, n.º 31/2005, n.º 10/2008), proclama ainda no mesmo aresto: No que concerne à existência de dois acórdão que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, são exigidos: - As questões decididas em dois acórdãos são idênticas; - A questão sobre a qual se verifica a oposição deve ser fundamental, que versa sobre a matéria de direito, e não de facto; - A oposição de acórdãos deve ser expressa e não apenas tácita, não bastando que um deles aceite tacitamente a doutrina contrária do outro.
3ª- Importa também ter presente que «Os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões, ou seja, os factos nucleares e necessários à resolução do problema jurídico, devem ser idênticos», de outro lado, «A questão sobre a qual se verifica a oposição deve ser fundamental. Ou seja, a questão de direito deve ter sido determinante para a decisão do caso concreto.» (Acórdão do Alto TUI de 11/03/2009, no Processo n.º 6/2009).
4ª- Ressalvada a nossa estimação pela opinião diferente, parece-nos que não há oposição expressa entre o Acórdão recorrido e o AcórdãoFundamento que foi tirado pelo douto TSI no Processo n.º 50l/2009 (cfr. fls.24 a 25 dos autos), e em bom rigor, a questão fundamental decidida pelo Acórdão recorrido não é idêntica à resolvida no Acórdão-Fundamento.
5ª- No Processo n.º 827/2009 a decisão judicial recorrida reporta-se ao despacho de pronúncia, de outro lado, nos Processos n.º 453/2009 e n.º 639/2012 (aqui o recorrente cometeu lapso ao escrever 629/2012), os recursos incidiram em despachos de indeferir os requerimentos de abertura da instrução. O que demonstra inquestionavelmente que as questões colocadas nestes três processos são radicalmente distintas da decidida pelo Acórdão recorrido.
6ª- Nestes termos e em esteira das sensatas jurisprudências supra aludidas, afigura-se-nos concludente que não se verificam, no vertente caso, os requisitos de que depende o recurso extraordinário para fixação da jurisprudência.
No seu parecer, a Digna. Procuradora-Adjunta manteve a posição já assumida na resposta do Ministério Público.

2. Fundamentos
Cabe agora decidir se o recurso deve ser rejeitado, por ocorrer motivo de inadmissibilidade ou por inexistência de oposição de julgados, ou se deve prosseguir, nos termos do art.º 423.º do CPP.

2.1. Os requisitos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, em processo penal
O art.º 419.º do Código de Processo Penal de Macau, na redacção introduzida pelo art.º 73.º da Lei n.º 9/1999, de 20 de Dezembro, prevê os fundamentos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, dispondo o seguinte:
“1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.”
Daí decorre que são requisitos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência:
- Existência de dois acórdãos que, relativamente, à mesma questão de direito, assentam em soluções opostas;
- As decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação;
- O acórdão fundamento é anterior ao acórdão recorrido e se transitou em julgado;
- Não é admissível recurso ordinário do acórdão recorrido;
- O recurso deve ser interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (n.º 1 do art.º 420.º do CPP).
Analisando o caso ora em apreciação, constata-se, desde logo, que o requisito cuja verificação foi posta em causa se refere à existência de dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o que implica que há de ver se, no nosso caso concreto, o acórdão fundamento e o acórdão recorrido abordam a mesma questão de direito e, no caso positivo, se encontram soluções opostas.

2.2. Existência de dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas
Relativamente ao pressuposto em questão, é de salientar, desde logo, que tanto a doutrina como a jurisprudência apontam para a identidade da questão decidida em acórdãos diferentes.
Como escrevem Manuel Leal-Henriques e Simas Santos, deve existir uma identidade “entre as questões debatidas em ambos os acórdãos”, que “tanto se pode traduzir em mesma questão ou em questões diversas se, neste último caso, se puder afirmar que para a sua decisão os dois acórdãos assacados de contraditórios se pronunciaram de maneira oposta àcerca de qualquer ponto jurídico neles discutido (isto é, verifica-se oposição ainda quando os casos concretos apreciados apresentam particularidades diferentes, se tal não impede que a questão de direito em apreço nos dois acórdãos seja a mesma e haja sido decidida de modo oposto)”.1
Para além disso, a questão sobre a qual se verifica a oposição deve ser fundamental, que versa sobre a matéria de direito, e não de facto, não obstante a identidade da questão decidida em dois acórdãos pressupõe que os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões sejam também idênticos.
A oposição de acórdãos deve ser expressa e não apenas tácita, “não bastando que um deles aceite tacitamente a doutrina contrária do outro. Os mesmos preceitos da lei devem ter sido interpretados e aplicados diversamente a factos idênticos em ambos os acórdãos”.2
E este Tribunal de Última Instância tem decidido que para efeitos de uniformização de jurisprudência a oposição entre as decisões deve ser expressa e não meramente implícita. Não basta que numa das decisões possa ver-se aceitação tácita de doutrina contrária a outra decisão.3

2.3. O caso dos presentes autos
Vistos os requisitos substanciais do recurso, resta decidir se, no nosso caso concreto, se verifica a existência de acórdãos diferentes que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas.
Afigura-se-nos que a resposta não pode deixar de ser negativa.
Repare-se que a lei fala na oposição de dois acórdãos (entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento) sobre a mesma questão de direito, daí é de entender que não se deve admitir a invocação de vários acórdãos como fundamento do recurso.
No caso sub judice, não obstante a indicação de vários acórdãos, certo é que a recorrente invocou o acórdão proferido no processo n.º 501/2009 como principal fundamento, pelo que na apreciação do recurso o tribunal deve atender apenas a tal acórdão.
Constata-se nos autos que:
- O acórdão ora recorrido tem por objecto o recurso interposto de dois despachos proferidos pelo Juiz de Instrução Criminal, um convidou os requerentes da instrução a aperfeiçoar os respectivos requerimentos da abertura de instrução e outro declarou aberta a instrução relativamente às partes não rejeitadas daqueles requerimentos.
Notificados do primeiro despacho, os requerentes da instrução procederam ao aperfeiçoamento dos seus requerimentos para abertura da instrução, subsequentemente, decidiu o Juiz de Instrução Criminal em rejeitar a abertura da instrução na parte em que se pediu a abertura da instrução contra pessoas de identidade não apurada e na parte respeitante aos factos alegadamente ocorridos em determinado período do tempo, e ao mesmo tempo declarou aberta a instrução no respeitante à restante parte não rejeitada.
Passamos a citar as seguintes considerações expostas no acórdão recorrido:
“……
Razões essenciais por que se conclui pela possibilidade do convite do assistente para aperfeiçoamento do requerimento da instrução, sob aval do art.º 4.º do CPP.
E como decorrência lógica desta possibilidade, é de decidir também pela aplicação, outra vez por força do art.º 4.º do CPP, as duas regras seguintes regras processuais: o n.º 3 do art.º 397.º do CPC e o art.º 399.º do CPC.
De mesma maneira que é de considerar como irrecorríveis não só o despacho de aperfeiçoamento dos requerimentos para abertura da instrução, como também a ulterior decisão de declaração da abertura da instrução perante a satisfação do despacho de aperfeiçoamento.”
Fica assim a saber que foi a possibilidade do convite para aperfeiçoamento do requerimento da instrução bem como a aplicação do disposto no n.º 3 do art.º 397.º e no art.º 399.º do CPC que levaram à irrecorribilidade do despacho que declarou aberta a instrução, uma vez que os requerentes satisfizeram o despacho de aperfeiçoamento, tendo procedido ao respectivo aperfeiçoamento dos requerimentos de abertura da instrução.
- No acórdão fundamento, de 28 de Julho de 2009, proferido no processo n.º 501/2009, e perante o recurso interposto pelo Ministério Público do despacho do Mm.º Juiz de Instrução Criminal que admitiu a abertura da instrução, que foi admitido e ao qual foi atribuído o modo de subida imediata e em separado, com efeito meramente devolutivo, o TSI decidiu em não conhecer do recurso por entender que o recurso devia ter o modo de subida deferida, a subir com o primeiro que deve subir nos termos do n.º 3 do art.º 397.º do CPP.
Como se pode ler neste acórdão, cuja cópia se junta aos autos, não está em discussão a questão sobre a admissibilidade, ou não, do recurso do despacho que admite a abertura da instrução, limitando-se o TSI a não conhecer do recurso, com fixação do modo de subida diferida.
Não obstante ter admitido, implicitamente, que é recorrível o despacho de abertura da instrução, o TSI não chegou a abordar nem tomar decisão sobre tal questão.
Ora, lidos os acórdão em causa e vistas as questões neles tratadas, é de crer que não se verifica a alegada oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito.
Na realidade, no acórdão fundamento o TSI não chegou a abordar e muito menos conhecer da questão sobre a qual a ora recorrente pretende ver fixada a jurisprudência, limitando-se a fixar o modo de subida diferida, diferente do já fixado, e acabou por não conhecer do recurso, nada de expresso decidindo quanto à recorribilidade ou não do despacho que declarou aberta a instrução.
Nota-se que, no acórdão recorrido, o TSI não nega a recorribilidade do despacho de abertura da instrução em geral, sendo certo que considera irrecorrível a decisão de declaração da abertura da instrução porque o requerente de instrução cumpriu o despacho de aperfeiçoamento.
É de concluir que não se vislumbra nenhuma oposição expressa entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento sobre a mesma questão de direito indicada pela recorrente.
Pelo exposto, não se verifica um dos requisitos essenciais para que se mande prosseguir o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência (art.º 423.º n.º 1 do CPP), pelo que deve ser rejeitado o recurso.

3. Decisão
Face ao expendido, acordam em rejeitar o recurso.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 6 UC.

Macau, 7 de Fevereiro de 2018

   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

1 Código de Processo Penal de Macau, 1997, pág. 857.
2 Paulo Pinto de Albuquerque, citando a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, no Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição actualizada, pág. 1171.
3 Cfr. Ac. do TUI, de 14 de Maio de 2008 e de 11 de Março de 2009, nos Processos n.ºs 10/2008 e 6/2009.
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Processo n.º 2/2018