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Processo n.º 15/2018. Habeas Corpus.
Requerentes: A e B.
Requerido: Ministério Público.
Assunto: Forma de arguição de nulidade de sentença penal. Recurso penal. Caso julgado parcial de sentença penal. Trânsito em julgado.
Data do Acórdão: 5 de Março de 2018.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – Em processo penal as nulidades da sentença são arguidas ou conhecidas em recurso se a decisão for recorrível. Não sendo, as nulidades são arguidas no prazo geral de 10 dias, perante o decisor, nos termos do n.º 2 do artigo 360.º do Código de Processo Penal. Se parte de decisão for recorrível e parte não o for, argúi-se a nulidade perante o autor da decisão, no prazo geral de 10 dias na parte irrecorrível e impugna-se perante o tribunal superior, em recurso, no prazo deste, na parte recorrível.
II – Nenhuma parte da sentença penal transita em julgado se houver recurso de um vício processual daquela sentença que, a ser procedente, pode afectar toda a decisão.

O Relator
Viriato Manuel Pinheiro de Lima


ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

   I – Relatório
A e B requereram a providência de habeas corpus perante este Tribunal de Última Instância (TUI), pedindo a sua libertação imediata, alegando, de útil:
- Os ora requerentes não se conformaram com o acórdão do Tribunal de Segunda Instância (TSI), de 30 de Janeiro de 2018 e, atempadamente, interpuseram recurso da mesma para o TUI, porquanto, por um lado, entendem que este "acórdão parcial" está ferido de nulidade; e, por outro lado, perante a matéria assente, os recorrentes não praticaram os crimes de "associação criminosa", "burla de valor consideravelmente elevado" e, parcialmente, "branqueamento de capitais qualificado"; além do que, no tocante a este último crime, bem como ao crime precedente, seja ele qual for, se verifica uma errada aplicação do disposto no art.º 29°, n.º 2 do C.P.P. ("crime continuado").
- Aquele "acórdão parcial" do TSI não transitou em julgado, pois, em qualquer das partes do mesmo - independentemente de, por despacho da Ma. Juiz - Relatora (fls. 17061) não ter sido admitido o recurso pelo crime de "burla de valor consideravelmente elevado" - já que:
- Por um lado, com se disse, foi arguida a nulidade do acórdão; de todo o acórdão, sendo que, nos termos do art.º 360°, n.º 2 do C.P.P., "as nulidades da sentença são arguidas ou conhecidas em recurso";
- Assiste aos ora requerentes o direito de reclamar daquele despacho de fls. 17061, o que farão atempadamente; e
- Os arguidos não podem começar a cumprir uma pena de "prisão parcial", quando tal pena de prisão pode vir a ser alterada e/ou revogada, por força de uma eventual procedência de um qualquer recurso dos co-arguidos no processo; e/ou do recurso interposto pelo Ministério Público que, não obstante subsidiariamente, até peticionou o reenvio do processo para novo julgamento.
- A manutenção da prisão preventiva dos arguidos ora requerentes é ilegal porque, não tendo transitado o acórdão de 30/01/2018 - na sua totalidade e pelos motivos que então se invocaram - os requerente não podem começar a cumprir "parte de uma pena" de um acórdão que pode ainda ser declarado nulo e/ou alterado ou revogado.

II – Factos apurados
A) Por acórdão de 15 de Agosto de 2017, o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, condenou, além de outros:
O ora requerente, o arguido A:
- Pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de 1 crime de participação em associação criminosa, previsto e punível pelo art.º 1.º, n.º 1, e pelo art.º 2.°, n.º 2 da Lei n.º 6/97/M, na pena de 8 anos de prisão;
- Pela prática, em co-autoria e na forma consumada e continuada, de 1 crime de burla de valor consideravelmente elevado, previsto e punível pelo art.º 211.°, n.º 4, al. a) do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão;
- Pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de 49 crimes de branqueamento de capitais agravado, previsto e punível pelo art.º 3.°, n.º 2 e n.º 3, e art.º 4.°, n.º 1 da Lei n.º 2/2006, na pena de 3 anos de 6 meses de prisão, por cada um;
- Pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de 1042 crimes de participação económica em negócio, previsto e punível pelo art.º 342.°, n.º 1 do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão, por cada um; e
- Pela prática, em co-autoria e na forma consumada e continuada, de 54 crimes de participação económica em negócio, previsto e punível pelo art.º 342.°, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão, por cada um.
Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena de 14 anos de prisão.
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O ora requerente, o arguido B:
- Pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de 1 crime de participação em associação criminosa, previsto e punível pelo art.º 1.º, n.º 1, e pelo art.º 2.°, n.º 2 da Lei n.º 6/97/M, na pena de 8 anos de prisão;
- Pela prática, em co-autoria e na forma consumada e continuada, de 1 crime de burla de valor consideravelmente elevado, previsto e punível pelo art.º 211.°, n.º 4, al. a) do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão;
- Pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de 49 crimes de branqueamento de capitais agravado, previsto e punível pelo art.º 3.°, n.º 2 e n.º 3, e art.º 4.°, n.º 1 da Lei n.º 2/2006, na pena de 3 anos de 6 meses de prisão, por cada um;
- Pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de 1042 crimes de participação económica em negócio, previsto e punível pelo art.º 342.°, n.º 1 do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão, por cada um; e
- Pela prática, em co-autoria e na forma consumada e continuada, de 54 crimes de participação económica em negócio, previsto e punível pelo art.º 342.°, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão, por cada um.
Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena de 12 anos de prisão.
B) Por acórdão de 30 de Janeiro de 2018, o TSI, conheceu apenas de parte dos recursos interpostos por A e B (relativamente a todos os crimes, excepto ao de participação económica em negócio) e não conheceu do recurso do Ministério Público e de C, confirmando a sentença do TJB no que respeita à condenação destes arguidos, ora requerentes, pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de 1 crime de participação em associação criminosa, previsto e punível pelo art.º 1.º, n.º 1, e pelo art.º 2.°, n.º 2 da Lei n.º 6/97/M, na pena de 8 anos de prisão, pela prática, em co-autoria e na forma consumada e continuada, de 1 crime de burla de valor consideravelmente elevado, previsto e punível pelo art.º 211.°, n.º 4, al. a) do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão e pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de 49 crimes de branqueamento de capitais agravado, previsto e punível pelo art.º 3.°, n.º 2 e n.º 3, e art.º 4.°, n.º 1 da Lei n.º 2/2006, na pena de 3 anos de 6 meses de prisão, por cada um.
C) Os arguidos A e B não arguiram a nulidade do acórdão do TSI, no prazo de 10 dias, perante o TSI, relativamente ao crime de que não cabe recurso para o TUI, ou seja pela prática, em co-autoria e na forma consumada e continuada, de 1 crime de burla de valor consideravelmente elevado, previsto e punível pelo art.º 211.°, n.º 4, al. a) do Código Penal, a que foram condenados na pena de 4 anos de prisão.
D) Os arguidos A e B interpuseram recurso para o TUI do acórdão do TSI suscitando a questão da nulidade deste por apenas ter conhecido de parte dos recursos e impugnando as condenações pelos crimes de participação em associação criminosa, burla de valor consideravelmente elevado e de branqueamento de capitais agravado.
E) Por despacho da Ex.ma Relatora do TSI, de 22 de Fevereiro de 2018, não foi admitido o recurso no tocante à condenação, pela prática, em co-autoria e na forma consumada e continuada, de 1 crime de burla de valor consideravelmente elevado, previsto e punível pelo art.º 211.°, n.º 4, al. a) do Código Penal.
F) Por despacho da Ex.ma Relatora do TSI, de 28 de Fevereiro de 2018, foi indeferida a libertação dos requerentes, com fundamento em terem sido condenados em pena de 4 anos de prisão relativamente a crime de que não cabe recurso, sendo que a nulidade da sentença quanto a tal crime teria de ser arguida no prazo de 10 dias, o que os requerentes não fizeram.

III – O Direito
No Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base procedeu-se a julgamento de 9 arguidos por vários crimes, sendo que, no caso de A e B e de outros 2 arguidos (D e C), estavam acusados, no essencial, do mesmo tipo de crimes e do mesmo número de crimes e vieram a ser condenados pela sua prática.
Foram interpostos recursos para o TSI pelo Ministério Público e por A, B e C.
D não recorreu, tendo sido julgado à revelia.
O Ministério Público recorreu das absolvições totais ou parciais.
O TSI, por acórdão de 30 de Janeiro de 2018, conheceu apenas de parte dos recursos interpostos por A e B (relativamente a todos os crimes, excepto ao de participação económica em negócio) e não conheceu do recurso do Ministério Público.
Vejamos se a prisão dos requerentes é legal.
O prazo máximo de prisão preventiva é, no caso, de 2 anos desde o seu início até que tenha havido condenação com trânsito em julgado, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 199.º do Código de Processo Penal, por não estar em causa nenhum dos crimes previstos no artigo 193.º, caso em que o prazo máximo seria de 3 anos, por força do n.º 2 do artigo 199.º.
Os requerentes estão presos desde 29 de Fevereiro de 2016, pelo que o prazo de 2 anos terminou no dia 28 de Fevereiro de 2018.
Temos que examinar quando é que se pode dizer que uma decisão judicial transita em julgado.
O Código de Processo Penal não contém normas sobre a questão, pelo que a solução tem de ser encontrada no Código de Processo Civil, que é o diploma subsidiário, nos termos do artigo 4.º do primeiro dos diplomas, dado não haver disposição do Código de Processo Penal que possam aplicar-se por analogia.
A decisão considera-se transitada em julgado, logo que não seja susceptível de recurso ordinário, ou de reclamação nos termos dos artigos 571.º e 572.º (artigo 582.º do Código de Processo Civil).
É pacífico que podem ocorrer casos julgados parciais das decisões, mesmo que outras partes da mesma não transitem em julgado, por serem recorríveis, seja porque existem vários arguidos e nem todos recorrem, seja porque existe apenas um arguido e este conforma-se com parte do julgado e, nas duas situações, não existe recurso do Ministério Público ou este recorre apenas quanto a parte da decisão1.
Não tem assim razão de ser a objecção dos recorrentes de que não podem começar a cumprir uma pena de prisão parcial quando tal pena pode ser alterada ou revogada por força de uma eventual procedência de um qualquer recurso dos co-arguidos. É evidente que o eventual recurso do arguido revel nunca aproveitaria aos ora requerentes, já que este recurso só será conhecido quando for detido, o que pode nunca vir a suceder. Na tese dos requerentes a sua condenação nunca transitaria em julgado, dado que o recurso do co-arguido revel lhes aproveitaria, o que seria absurdo.
Por outro lado, os requerentes alegam que foi arguida a nulidade de todo acórdão, já que as nulidades da sentença são arguidas ou conhecidas em recurso.
Antes de mais, como é óbvio, tal como sucede em processo civil, as nulidades da sentença são arguidas ou conhecidas em recurso se a decisão for recorrível. Não sendo, as nulidades são arguidas no prazo geral de 10 dias, perante o decisor, nos termos do n.º 2 do artigo 360.º do Código de Processo Penal 2.
Paralelamente, se parte de decisão for recorrível e parte não o for, argúi-se a nulidade perante o autor da decisão, no prazo geral de 10 dias na parte irrecorrível e impugna-se perante o tribunal superior, em recurso, no prazo deste, na parte recorrível.
No caso dos autos não pode dizer-se que a condenação em 4 anos de prisão, pela prática, em co-autoria e na forma consumada e continuada, de 1 crime de burla de valor consideravelmente elevado, previsto e punível pelo art.º 211.°, n.º 4, al. a) do Código Penal, tenha já transitado em julgado, apesar desta específica condenação não ser recorrível, face ao disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 390.º do Código de Processo Penal (irrecorribilidade das decisões do TSI confirmatórias de decisões de 1.ª instância por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a 10 anos; o crime em questão é punível com penalidade de 2 a 10 anos de prisão). Isto porque os ora requerentes impugnaram a decisão na parte em que conheceu apenas parcialmente dos seus recursos, sendo certo que esta impugnação abrange os crimes pelos quais é admissível o recurso. Se o recurso, quanto à decisão de conhecer apenas parcialmente do objecto dos recursos, for procedente, um dos efeitos possíveis será a revogação de todo o acórdão do TSI para conhecimento conjunto dos recursos. Incluindo da condenação pelo crime previsto e punível pelo artigo 211.º, n.º 4, alínea a) do Código Penal.
Quer dizer, ainda que se tivesse como boa a tese da Ex.ma Relatora do TSI, de que poderia haver trânsito em julgado da condenação em 4 anos de prisão, pelo mencionado crime e, portanto, cumprimento dessa pena, mesmo sem ter sido conhecida toda a matéria do recursos dos dois arguidos em causa, neste caso tal trânsito não ocorreria de nenhuma forma, dado que os recorrentes impugnaram uma parte da decisão que pode conduzir à revogação de tal parte do acórdão e de todo o acórdão, aliás.
Logo, ainda não ocorreu trânsito em julgado de qualquer parte do acórdão de 30 de Janeiro de 2018.
Não há que tomar posição neste momento sobre a legalidade da decisão de conhecimento parcial dos recursos. Bem como sobre a questão de saber se, mesmo que não tivesse havido a mencionada impugnação dos ora requerentes, o recurso do Ministério Público impediria o trânsito em julgado da condenação em 4 anos de prisão, pelo crime de burla de valor consideravelmente elevado, previsto e punível pelo artigo 211.º, n.º 4, alínea a) do Código Penal, de que não cabe recurso para o TUI.
Assim, não podem manter-se os arguidos em prisão preventiva.

IV - Decisão
Face ao expendido, determinam a libertação imediata dos requerentes, bem como a comunicação à Ex.ma Relatora do TSI para aplicar medidas de coacção aos requentes, se for caso disso.
Ñotifique
Sem custas.
Macau, 5 de Março de 2018.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
     1 DAMIÃO DA CUNHA, O Caso Julgado Parcial, Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção Num Processo de Estrutura Acusatória, Universidade Católica, Porto, 2002, p.707 e segs. e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário ao Código de Processo Penal, Universidade Católica, Lisboa, 4.ª edição, 2011, p. 1063 e 1066, entre muitas.
     2 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário…, p. 985 e VINÍCIO RIBEIRO, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2011, p. 1076, para norma semelhante do Código português.
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