打印全文
 ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
Inconformado com o douto Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância que decidiu julgar improcedente o recurso contencioso por si interposto, recorreu A para o Tribunal de Última Instância.
Subidos os autos para o TUI, constata-se que não foi atribuído valor à causa, pelo que foi convidado o recorrente para declarar o valor da causa e a entidade recorrida notificada para o impugnar,após o que a Juíza relatora do processo fixou ao recurso contencioso o valor de MOP$834.828,00, por despacho proferido em 20 de Julho de 2017.
E devidamente ouvidas as partes sobre a questão prévia de saber se é admissível recurso jurisdicional do acórdão proferido pelo TSI, face ao valor da causa fixado e às disposições legais vigentes, foi proferido despacho no sentido de não conhecer do recurso interposto.
Notificado dos dois despachos, reclamou o recorrente para a conferência.
O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer no sentido da improcedência das reclamações.
Corridos os vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, cumpre agora decidir.

2. Fundamentação
2.1. Sobre a reclamação do despacho que fixou o valor de causa
Alega o reclamante que o supra despacho enferma do vício de violação de lei por erro de interpretação e aplicação das normas dos art.ºs 18.º n.ºs 2 e 4 da LBOJ e 248.º n.º 1 do Código de Processo Civil, por não estar em causa um interesse material, já que o recurso contencioso é, em regra, de mera legalidade, limitando-se o tribunal a anular a decisão administrativa, ou a mantê-la; e se houvesse que atribuir um valor ao recurso contencioso, a norma do processo civil que mais guarda proximidade com as especificidades do meio jurisdicional a que se lançou mão é a norma do art.º 254.º do CPC, pelo que o valor da causa não pode deixar de ser de MOP$1.000.001,00.
E na tese da entidade recorrida, o que o ora reclamante pretendeu com a impugnação do acto administrativo é a devolução do pagamento do imposto de selo especial, como consequência da suposta ilegalidade do acto a ser decretada, terá por isso o valor da causa de corresponder, na falta de outro critério, ao montante do valor pago a título de imposto de selo especial, que é a utilidade económica do pedido, pelo que se deve manter o despacho reclamado.
Antes de mais, é de salientar que não se compreende a imputação pelo reclamante da violação do disposto nos n.ºs 2 e 4 do art.º 18.º da LBOJ, que nem sequer são aplicáveis ao presente caso.
O que se vê no despacho ora reclamado é a invocação do n.º 3 do mesmo art.º 18.º para fundamentar a decisão, segundo o qual “Em matéria de contenciosos fiscal e aduaneiro, quando o valor da causa seja susceptível de determinação, a alçada dos Tribunais de Primeira Instância é de 15 000 patacas e a do Tribunal de Segunda Instância é de 1 000 000 patacas”.
O presente caso é exactamente o de recurso contencioso fiscal.
Constata-se nos autos que, com a interposição do recurso contencioso, impugna o recorrente ora reclamante o despacho do Senhor Secretário para a Economia e Finanças que indeferiu o recurso hierárquico necessário por si interposto do despacho da Directora dos Serviços de Finanças que, por sua vez, indeferiu as reclamações apresentadas contra os actos tributários que sujeitaram a imposto do selo especial as promessas de venda de dois imóveis do recorrente, pretendendo a devolução do valor pago a título de tal imposto.
E as respectivas quantias de imposto totalizam-se no montante de MOP$834.828,00.
Está nitidamente em causa um interesse material e é determinável o valor da causa.
Nos termos do art.º 44.º n.º 2, al. 4) da Lei de Bases da Organização Judiciária, o Tribunal de Última Instância, como o órgão supremo da hierarquia dos tribunais, tem competência para julgar os recursos dos acórdãos do Tribunal de Segunda Instância, proferidos em primeira instância, “que sejam susceptíveis de impugnação”.
De acordo com o n.º 1 do art.º 583.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente por força do art.º 1.º do CPAC, o recurso ordinário só é admissível nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, salvo disposição em contrário.
Daí que, em matéria de contencioso fiscal e aduaneiro e quando o valor da causa seja susceptível de determinação, que é precisamente o nosso caso, a fixação do valor da causa é indispensável para aferir da admissibilidade do recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância.
E não se encontrando no Código de Processo Administrativo Contencioso qualquer norma referente à indicação do valor da causa, é de lançar mão às normas de processo civil, art.ºs 247.º n.º 1 e 248.º n.º 1 do CPC, que se aplicam subsidiariamente aos processos de contencioso administrativo.
Resumindo, é de considerar a referida quantia de MOP$834.828,00 como o valor da causa do presente caso, que representa a utilidade económica imediata do pedido.
Por outro lado, não tem aplicação no caso ora em apreciação o art.º 254.º do CPC, que estabelece o critério para fixar o valor “das causas sobre o estado das pessoas ou sobre interesses imateriais”.
No caso vertente, não está em causa, evidentemente, nenhuma acção sobre o estado das pessoas nem sobre interesses imateriais.
No acórdão deste Tribunal de Última Instância de 22 de Janeiro de 2014, proferido no processo n.º 76/2013, pronunciamo-nos o seguinte:
《As acções sobre interesses imateriais são “aquelas em que se visa realizar um interesse não patrimonial, como aquela em que se pede o reconhecimento da dominialidade pública de um caminho, as de inibição ou de limitação do exercício do poder paternal, escusa, exoneração ou remoção de tutor”.1
No caso em apreciação e com a interposição do recurso contencioso, pretende a reclamante a anulação do acto administrativo que decidiu proceder à liquidação do imposto sobre os veículos motorizados devido, tendo a reclamante beneficiado da isenção do mesmo imposto, cujo valor se totaliza no montante de MOP$771.292,00. Pretende no fundo a não reposição desta quantia.
Daí que está em causa, sem dúvida, um interesse patrimonial.
Por outro lado, resulta claramente do disposto no art.º 20.º do CPAC que, em regra, “o recurso contencioso é de mera legalidade e tem por finalidade a anulação dos actos recorridos ou a declaração da sua nulidade ou inexistência jurídica”.
Se acolhesse o entendimento da reclamante, seria admitir que em todos recursos contenciosos, incluindo em matéria de contenciosos fiscal e aduaneiro, estão em jogo interesses imateriais, pelo que o valor da causa é de MOP$1.000.001,00. E seria sempre admissível o recurso ordinário para o Tribunal de Última Instância.
Então, qual será o sentido útil da disposição no n.º 3 do art.º 18.º da Lei de Bases da Organização Judiciária? Onde estará a lógica que subjaz nas normas acima referidas que regulamentam a competência do Tribunal de Última Instância e a admissibilidade do recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre?
O entendimento da reclamante, incorrecto, faz esvaziar, no presente caso, o sentido e a utilidade dessas normas jurídicas.
Daí que não se pode seguir o critério estabelecido no art.º 254.º do CPC.》
É de manter tal posição, considerando-se inválido para o presente caso o critério estabelecido no art.º 254.º do CPC.
Concluindo, é de julgar improcedente a reclamação.

3.2. Sobre a relação do despacho que decidiu não tomar conhecimento do recurso jurisdicional
Imputa o reclamante o vício de ilegalidade por erro de interpretação das normas do art.º 18.º n.º 2 da LBOJ e do art.º 583.º n.º 1 do CPC.
Volta aqui o reclamante a invocar n.º 2 do art.º 18.º da LBOJ que prevê que “Em matéria de acções e pedidos do contencioso administrativo, quando o valor da causa ou do pedido seja susceptível de determinação, a alçada dos Tribunais de Primeira Instância é de 50 000 patacas e a do Tribunal de Segunda Instância é de 1 000 000 patacas”.
E sustenta que o valor da causa fixada não é inferior à alçada do Tribunal de Segunda Instância, alegando que se deverá considerar que “a alçada do TSI é de 50 000 patacas (e não de 1 000 000 patacas), nos casos em que julgue em primeiro grau jurisdicional”.
Afigura-se-nos que não assiste razão ao reclamante.
Repetindo, é de dizer que o preceito indicado não tem aplicação no presente caso.
Devidamente interpretando o disposto no n.º 3 do art.º 18.º da LBOJ, aplicável, cremos que o entendimento do reclamante não tem, desde logo, mínima correspondência na letra da lei.
É verdade que, nos casos expressamente previstos na lei, o TSI julga em primeiro grau jurisdicional.
Mesmo assim, não se deve considerar o TSI como um dos “Tribunais de Primeira Instância”, aos quais a lei atribui a alçada de 50 000 patacas.
Como é sabido, quanto às categorias de tribunais da RAEM, existem Tribunais de Primeira Instância, o Tribunal de Segunda Instância e o Tribunal de Última Instância, sendo que os “Tribunais de Primeira Instância” compreendem o Tribunal Judicial de Base e o Tribunal Administrativo (art.º 10.º e 27.º da LBOJ).
A lei é muito clara ao prever expressamente que a alçada do TSI é de 1 000 000 patacas, independentemente de ele julgar em primeiro ou segundo grau de jurisdição.
Alega ainda o reclamante que era essa a solução (alçada de 50 000 patacas quando o TSI julgue em primeiro grau jurisdicional) para que apontava o art.º 18.º n.º 2 do Projecto de Orgânica do Sistema Judiciário, que estabelecia que《em matéria de acções e pedidos do contencioso administrativo, quando o valor da causa ou do pedido seja susceptível de determinação, a alçada dos tribunais é de 50 000 patacas》, não distinguindo entre Tribunal Administrativo e TSI.
No entanto, não é esta solução adoptada afinal pelo legislador, sendo que a lei prevê expressamente que a alçada do TSI é de 1 000 000 patacas.
Nos termos do art.º 8.º do Código Civil, não obstante a relevância do pensamento legislativo na interpretação da lei, “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.
Ora, face ao valor da causa já fixado e atenta a disposição no n.º 1 do art.º 583.º do CPC, já citado, é de concluir que, estando em causa o contencioso fiscal, matéria em que a alçada do TSI é de MOP$1,000,000.00, não há recurso para o TUI nas causas com valor inferior a este montante, como é o nosso caso.
É esta posição que tem assumido o Tribunal de Última Instância (cfr. Ac.s proferidos em 25-10-2006 e 4-12-2013, nos Proc.s n.ºs 9/2006 e 42/2013, entre outros).
Improcede, pois, a reclamação, com manutenção do despacho que decidiu não conhecer do recurso jurisdicional interposto.

3. Decisão
Face ao expendido, acordam em indeferir as reclamações.
Custas pelo reclamante, com a taxa de justiça que se fixa em 6 UC para cada reclamação.

                 Macau, 22 de Março de 2018
                 
   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa
                 
1 Cândida da Silva Antunes Pires e Viriato Manuel Pinheiro de Lima, Código de Processo Civil de Macau, Anotado e Comentado, Volume II, 2008, p.165.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------

Processo n.º 32/2017 9