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Processo nº 891/2015
Data do Acórdão: 01MAR2018


Assuntos:

Impugnação da matéria de facto
Matéria de facto
Matéria de direito
Acção de reivindicação
Registo predial
Posse
Usucapião


SUMÁRIO


1. Se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.

2. Havendo impugnação da decisão sobre matéria de facto em sede de recurso, a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa.

3. Só pode constituir thema probandum a matéria de facto. A matéria de direito, não obstante levada à base instrutória e julgada provada, deve ser tida por não escrita.

4. É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior.

5. É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei.

6. Entendem-se por factos materiais as ocorrências da vida real, isto é, ou os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens; e por factos jurídicos os factos materiais vistos à luz das normas e critérios do direito.

7. A acção de reivindicação é o meio judicial para a defesa da propriedade, que tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor da coisa. São dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio), por outro.

8. Diz-se usucapião a aquisição pelo possuidor de um direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo mediante a actuação reiterada e paulatina correspondente ao exercício do direito, e mantida por certo lapso de tempo.

9. Face ao artº 1193º do CC, a presunção da titularidade do direito, de que goza o possuidor, prevalece sobre a presunção simplesmente fundada no registo predial, se este for posterior ao início da posse.


O relator


Lai Kin Hong


Processo nº 891/2015


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

No âmbito dos autos da acção ordinária de revindicação, registada com o nº CV1-11-0048-CAO e correu os seus termos no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, instaurada por A, inicialmente contra B e todos os ocupantes desconhecidos e posteriormente contra também o C, chamado a intervir a título principal como seu associado a requerimento da Ré B, todos devidamente identificados nos autos, foi afinal proferida a seguinte sentença julgando improcedente a acção contra a Ré B, procedente a acção contra o chamado C, e improcedente o pedido reconvencional da aquisição por usucapião deduzido pelo chamado C:

  A, casado, de nacionalidade Chinesa, residente em Macau na …,
  vem propor acção declarativa de condenação sob a forma ordinária contra,
  B, solteira, maior, empregada comercial, residente em Macau na …,
  E
  Ocupantes desconhecidos,
  Alegando ser o proprietário das fracções autónomas a que se reportam os autos as quais adquiriu ao seu anterior proprietário tendo nessa data recebido as chaves das mesmas. Porém, veio a verificar que as fechaduras haviam sido mudadas e que a Ré vivia nas fracções autónomas em causa embora não estivesse para tal habilitada com título algum, situação que causa prejuízo ao Autor.
  Concluindo, pede, que seja a presente acção julgada procedente, e :
a) Declarar-se ser o A. o legítimo proprietário das fracções autónomas acima identificadas;
b) Condenar-se a R. a reconhecer tal direito e a abster-se de quaisquer actos turbadores do seu exercício;
c) Ser a R. ou eventuais RR. condenados a restituírem ao A. as mencionadas fracções autónomas, e
d) Ser a R. ou eventuais RR. condenados no pagamento da quantia de MOP$20.000,00, correspondente a honorários de advogado acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data da citação dos RR. até efectivo e integral pagamento.
   
  Citada a Ré para contestar veio esta fazê-lo defendendo-se por excepção invocando a sua ilegitimidade porquanto quem reside nas fracções em causa é C e por impugnação reconhecendo apenas que a propriedade esteja inscrita a favor do Autor e deduzir reconvenção a qual por despacho de folhas 118 não foi admitida pelo que inútil se torna estar aqui a sintetizar os seus fundamentos e pedido.
  O Autor veio replicar defendendo-se quanto à matéria da excepção e do não admitido pedido reconvencional, deduzindo incidente de intervenção principal provocada de C.
  Por despacho de folhas 118 e 119 não foi admitido o pedido reconvencional da Ré e foi deferida a intervenção principal provocada de C.
  Citado C veio este deduzir contestação defendendo-se por impugnação e deduzindo Reconvenção onde alega que o imóvel onde estão as fracções a que se reportam os autos foi construído em imóvel que está na família do contestante há varias gerações, sendo que as fracções a que se reportam os autos são a casa de morada do contestante tendo por uma questão de conveniência transferido a propriedade das mesmas para uma sociedade de que era sócio maioritário e gerente-geral, sendo que, em 2000 quando se ausentou de Macau incumbiu a ora Ré de tomar conta das ditas fracções e constituiu uma funcionária sua como procuradora da dita empresa, tendo sido com grande surpresa que em 2005 tomaram conhecimento que as fracções haviam sido adquiridas por um terceiro pela quantia de MOP$60.000,00 cada uma.
  Apurou o contestante que em 2005 foi registada uma acta da indicada empresa onde alegadamente o contestante se exonerava do cargo de gerente-geral e nomeava D. Contudo essa acta não foi lavrada no livro de actas mas sim em papeis em branco com a sua informação pessoal que o contestante havia deixado assinados para garantir o giro da sociedade e que segundo o informaram terão sido furtadas do seu escritório, sendo certo que o contestante nunca conferiu a ninguém poderes para vender as fracções em causa nem nunca teve essa intenção.
  Mais alega que o contestante sempre viveu nas fracções autónomas sendo aquela a sua residência em Macau e onde tem todos os seus bens pessoais e da sua falecida mulher, usando-as em seu nome, como sendo o seu dono, sem violência e sem interrupção temporal o que faz com o conhecimento de toda a gente há mais de 20 anos.
  A Ré em 1998 passou a residir nas fracções dos autos primeiro como hóspede e depois quando o contestante saiu de Macau pediu-lhe que continuasse a tomar conta das fracções autorizando que ali continuasse a residir e em 27 de Junho de 2008 passaram a ali residir as filhas do Autor com a respectiva mãe, todas por mera tolerância do contestante.
  Concluindo pede que:
a) Deve a presente acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada, absolvendo-se o Chamado, ora Contestante, de todos os pedidos contra si formulados.
b) Se digne considerar o pedido reconvencional procedente, por provado, e em consequência:
- declarar-se o Contestante como único e legítimo proprietário das fracções autónomas em litígio;
- Condenar-se o Autor a reconhecer tal direito e a abster-se de quaisquer actos perturbadores do direito de propriedade do Contestante.

  O Autor replicou, defendendo-se por excepção, invocando que a acta em causa foi assinada pelo interveniente e por impugnação quanto ao pedido reconvencional, concluindo pela improcedência do mesmo.
  O interveniente treplicou alegando que é falso que haja assinado a acta a que se reportam os autos.
  Foi proferido despacho saneador onde foi admitido o pedido reconvencional e seleccionada a matéria de facto assente e a base instrutória.
  Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal.
  
  Relativamente ao Autor sendo esta uma acção de reivindicação as questões a decidir consistem em saber se o Autor é o titular do direito de propriedade das fracções a que se reportam os autos, se a Ré e/ou desconhecidos têm a posse ou detém aquelas e em caso de resposta afirmativa a estas duas questões se o Autor tem direito a que a coisa lhe seja restituída.
  No que concerne ao pedido do Réu em sede de Reconvenção a questão a decidir consiste em saber se este adquiriu o imóvel em causa por usucapião.
  
  Nestes autos foi apurada a seguinte factualidade:
a) Encontram-se inscritas a favor do Autor, pela AP n.º127 de 18.06.2007, inscrição n.º ..., as fracções autónomas «A QUATRO» do terceiro andar (correspondência actual AA TRÊS) e «A CINCO» do quarto andar (correspondência actual AA QUATRO), sitas em Macau, ambas para habitação, com entrada pelo …, inscrito na matriz predial da freguesia da Sé, Concelho de Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial n.º …, a fls…, do livro… e, em conformidade com o teor da certidão junta a fls. 7 a 12 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
b) A inscrição das fracções em nome do Autor foi feita com base na escritura pública de compra e venda, celebrada em 11 de Junho de 2007, lavrada a fls…., do livro… do Notário Privado Dr. Fong Kin Ip, em conformidade com o teor da certidão junta a fls. 13 a 15 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
c) Pela Apresentação n.º 3 de 19 de Agosto de 1970, inscrição n.º …, foi registada a aquisição do imóvel aludido em a) a favor de E, por sucessão hereditária.
d) Em 1979, C constituiu uma sociedade por quotas denominada “Empresa de Construção Civil e Investimento Predial X, Limitada”, da qual era sócio maioritário e gerente-geral, em conformidade com o teor da certidão de matrícula junta a fls. 185 a 204 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
e) Pela Apresentação n.º 58 de 13 de Abril de 1983, inscrição n.º …, foi registada a aquisição do imóvel aludido em a) a favor da “Empresa de Construção Civil e Investimento Predial X, Limitada”, por aquisição;
f) Em Janeiro de 2002, F, sócio da “Empresa de Construção Civil e Investimento Predial X, Limitada”, faleceu;
g) Em Janeiro de 2005 foi registada junto da competente Conservatória um acta da “Empresa de Construção Civil e Investimento Predial X Limitada”, datada de 29 de Julho de 1998, em conformidade com o teor d documento junto a fls. 164 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido;
h) No local onde foi edificado o prédio onde fazem parte as fracções dos autos existia um imóvel que tinha pertencido aos avós paternos do C;
i) C viveu em Moçambique;
j) C, a mãe e os três irmãos regressaram a Macau e foram viver no imóvel referido na resposta dada ao item h);
k) O imóvel referido em h) era velho;
l) C chegou a um acordo com um empreiteiro, nos termos do qual aquele se comprometia a demolir o prédio quase em ruínas e a construir um novo em seu lugar;
m) O referido no item anterior aconteceu em 1974;
n) Como contrapartida, o prédio seria dividido, ficando a família do C com as fracções do 3.° e 4.° andares e o empreiteiro com as demais;
o) C e a sua mulher G, também conhecida por G, escolheram as fracções dos autos como a sua casa de morada de família;
p) É nesse local onde, ainda hoje, se encontram todos os seus bens móveis desde mobiliário a artigos de decoração, roupa sua e da sua falecida mulher G;
q) Era nas fracções que o C e seus familiares se reuniam para celebração das ocasiões festivas;
r) C usa as fracções autónomas com conhecimento de toda a gente, há cerca de 30 anos;
s) A Ré é familiar da falecida mulher de C;
t) Em 2000 quando C se ausentou de Macau para os Estados Unidos da América, incumbiu a ora Ré, de fazer as limpezas;
u) Também incumbiu a Ré de manter as fracções em bom estado de utilização e conservação fazendo as obras necessárias;
v) Para o efeito entregou-lhe as chaves das fracções e autorizou que a Ré aí continuasse a viver;
w) No dia 27 de Junho de 2008, C autorizou que duas das suas filhas passassem a residir no 4.º andar, do aludido imóvel;
x) F, era sócio da sociedade aludida em d);
y) F era a pessoa em quem C depositava confiança para o ajudar a cuidar dos negócios;
z) C usou as fracções como sua casa de morada de família;
aa) A acta aludida em g) foi feita numa folha timbrada com a informação pessoal do C;
bb) A acta aludida em g) foi levada ao Cartório Privado do Dr. Pedro Leal para que este reconhecesse a sua assinatura em 30 de Julho de 1998, o que este fez por confronto com o original do respectivo documento de identificação;

Cumpre apreciar e decidir.

  Nos termos do nº 1 do artº 1235º do C.Civ. «O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence».
  Segundo o artº 1241º do C.Civ. «O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião (…)».
  Em face dos elementos existentes nos autos e da factualidade dada por assente verifica-se que o Autor adquiriu a propriedade do imóvel a que se reportam os autos por compra.
  A aquisição por banda do Autor das fracções a que se reportam estes autos não é de forma alguma posta em causa nestes autos.
  Questiona-se nos autos a validade de uma acta da sociedade primitiva proprietária das fracções no que concerne à destituição e nomeação da gerência, contudo, nada do que se alega no sentido da falsidade da mesma logrou provar-se, pelo que, nada há a apreciar nesta sede.
  Pelo que há que ter por assente ser o Autor o proprietário das fracções em causa.
  Nos termos do nº 2 do artº 1235º do C.Civ. «havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei».
  Vejamos então, se há alguma causa que obste à condenação da Ré e, ou do interveniente principal à restituição da coisa.
  No que concerne à Ré o que se prova é que esta – a Ré – assim como as duas filhas de C, são meras detentoras das fracções autónomas em causa, usando as mesmas mediante autorização do aqui interveniente principal C.
  Relativamente às fracções dos autos vem C pedir que se declare ter adquirido as mesmas por usucapião.
  Porém, o que resulta demonstrado foi que por razões que se desconhece as fracções em causa, as quais integram um imóvel em propriedade horizontal, construído em prédio que pertencia ao pai de C, foram adquiridas pela sociedade de que C era sócio e gerente, situação que nunca se alterou.
  Demonstra-se que C usou as fracções em causa ali estabelecendo a sua habitação onde viveu durante vários anos e onde ainda tem os seus pertences, continuando a ser ele quem autorizou a Ré e as suas próprias filhas a ali viver.
  Contudo não se prova que C o haja feito porque estava convencido de que as mesmas lhe pertenciam e era dono das fracções, situação que seria até difícil de entender pois bem sabia C que as fracções autónomas pertenciam à sociedade. Sociedade de que era sócio maioritário é certo, mas era à sociedade que pertenciam e não assim, nada havendo nos autos que nos permita concluir no sentido de haver alguma confusão.
  Ou seja, não se demonstrou que C possuísse com o animus de ser titular de direito real algum, pelo que, à míngua do elemento subjectivo nunca pode ocorrer a usucapião.
  Igualmente, não se demonstrou que C usasse as fracções em causa a qualquer título, ou que estivesse habilitado para o efeito.
  Destarte, não resultando dos autos qualquer fundamento legítimo para recusar a restituição, impõe-se julgar a acção procedente no que concerne a C – artº 270º nº 1 do CPC – e improcedente quanto à Ré – uma vez que se demonstra que esta apenas detém as fracções em causa em nome de C - e no que concerne ao pedido reconvencional julgar o mesmo improcedente por não provado.
  
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos decide-se:
  - Julgar a acção improcedente porque não provada no que concerne à Ré sendo esta absolvida do pedido;
  - Julgar a acção procedente porque provada quanto a C e em consequência condená-lo a reconhecer o Autor como proprietário das fracções autónomas «A QUATRO» do terceiro andar (correspondência actual AA TRÊS) e «A CINCO» do quarto andar (correspondência actual AA QUATRO), sitas em Macau, ambas para habitação, com entrada pelo …, descrito na Conservatória do Registo Predial n.º …, a fls. …, do livro … e em consequência a restituir as fracções autónomas em causa livres de pessoas e bens ao Autor;
  - Julgar improcedente o pedido reconvencional absolvendo o Autor do mesmo.
  
  Custas a cargo da Ré.
  Registe e Notifique.
   

Notificadas as partes dessa sentença, veio apenas o interveniente principal chamado à demanda e reconvinte C recorrer dela para este Tribunal de Segunda Instância, concluindo e pedindo que

1. Conforme decorre do acórdão que decidiu da matéria de facto, a convicção do tribunal resultou dos depoimentos das testemunhas, não tendo sido posta em causa a veracidade dos depoimentos prestados ou a imparcialidade das testemunhas.
2. Pelo que o Recorrente não consegue perceber as respostas dadas aos quesitos 5.º, 15.º, 16.º, 19.º, 24.º, 25.º e 29.º da Base Instrutória, uma vez que não reflectem o teor dos depoimentos prestados
3. Quanto ao quesito 5.º, a testemunha H, disse claramente que a família regressou a Macau em 1961, o que deveria ter sido considerado como provado.
4. Relativamente aos quesitos 15.º, 16.º e 19.º, também as respostas não reflectem o que resulta do depoimento das testemunhas.
5. Do depoimento da testemunha I resulta que perante si, ou perante terceiros, o Recorrente C sempre se arrogou como proprietário das fracções, como seu verdadeiro dono, ali reunindo a sua família, tendo usado, fruído e disposto da fracções, como se do seu proprietário se tratasse, tratando-as como casa de morada da família nuclear e alargada. Resulta ainda que a partir de 2008 as despesas de água, luz, impostos e eventuais obras foram suportadas pela testemunha, mas que antes disso tais despesas eram suportadas pela contabilista do C.
6. Do depoimento da testemunha J, constata-se o exercício de poderes de disposição das fracções por parte do Recorrente C, que autorizou as suas filhas e a mãe a residir nas fracções dos autos.
7. Do depoimento da testemunha K resulta que as fracções sempre foram usadas como a casa de morada da família, a residência familiar, tendo sido efectuadas algumas obras a pedido do Recorrente C. Referiu ainda que o C sempre se arrogou como proprietário das fracções, perante si e perante terceiros.
8. Disse a testemunha L que as despesas das fracções eram pagas pelo Recorrente C. Acrescentou que a sobrinha, l.ª Ré, levava os talões para a companhia, e que a testemunha pagava com o dinheiro do Recorrente. Apesar de o sr. K ter afirmado que a sobrinha do Recorrente pagava as despesas, na verdade verifica-se que isso não se passou, uma vez que esta entregava os talões à L, que por sua vez pagava por conta do aqui Recorrente. Referiu ainda a testemunha que a sobrinha, l.ª Ré, a pedido e por conta do tio, o aqui Recorrente, ficou encarregue de pagar as despesas das fracções e tratar da sua conservação e manutenção. Acrescentou que as fracções foram sempre vistas como a casa de morada da família do Recorrente, nunca tendo estado afectas à sociedade ou à sua actividade comercial.
9. H, irmã do Recorrente afirmou peremptoriamente que se tratava de uma casa de família tendo denominado como “uma casa hereditária”, que mais tarde passou a pertencer ao Recorrente, reiterando que para ela o Recorrente sempre foi o dono das fracções.
10. Pelo que, no entender do Recorrente, deveriam ter sido declarados por provados os quesitos 15.º, 16.º e 19.º conforme a sua versão original.
11. No que concerne aos quesitos 24.º e 25.º a testemunha K que conhece o Recorrente desde 1983 e prestou serviços para a sociedade X, Limitada até depois de o Recorrente se ausentar de Macau, referiu que não conhecia o F, o que é sinal de que a participação deste na sociedade era realmente precária, apenas na ausência do sócio maioritário.
12. A testemunha L, contabilista do Recorrente e da empresa X, Limitada, corroborou que o sócio F apenas tratava dos assuntos da sociedade na ausência do Recorrente.
13. A sétima testemunha M, mulher do F, foi peremptória ao afirmar que o marido apenas era sócio por ser uma pessoa em quem o Recorrente confiava. Reiterou que nem a testemunha, nem o marido, na qualidade de sócio, nunca tiveram qualquer expectativa quanto às fracções porque as mesmas pertenciam ao Recorrente.
14. Razão pela qual deveriam ter sido considerados como provados os quesitos 24.º e 25.º com a sua redacção inicial.
15. Finalmente, quanto ao quesito 29.º, nenhuma das testemunhas, nem as ligadas à X, Limitada, alguma vez ouviu falar ou conheceu o D, designadamente I, K e L. Pelo que a resposta ao indicado quesito deveria ter sido positiva, considerando o teor dos depoimentos prestados.
16. Nos termos e para o efeitos do disposto no art.º 599.º do Código de Processo Civil, entende-se que os quesitos 5.º, 15.º, 16.º, 19.º, 24.º, 25.º e 29.º da Base Instrutória, se mostram incorretamente julgados, face ao teor do depoimento das testemunhas, encontrando-se o douto Tribunal ad quem na posse de todos os elementos necessários para alterar a decisão de facto, por se mostrarem reunidos os requisitos previstos no art.º 629.º do mesmo diploma, o que se requer.
17. Discorda o Recorrente da conclusão de que não se demonstrou que o Recorrente possuísse com o animus de ser titular de direito real, prova que na óptica do Tribunal a quo competia ao Recorrente.
18. Contrariamente ao entendido pelo douto Tribunal a quo, foram provados vários factos da vida real que integram e constituem esse animus, designadamente:
- O imóvel anterior tinha pertencido aos avós paternos do C .
- C, a mãe e os três irmãos regressaram a Macau e foram viver no imóvel.
- C chegou a um acordo com um empreiteiro, nos termos do qual aquele se comprometia a demolir o prédio quase em ruínas e a construir um novo em seu lugar, em 1974.
- A família do C ficou com as fracções do 3.º e 4.º andares.
- C e a sua mulher G escolheram as fracções dos autos como a sua casa de morada de família.
- É aí onde ainda hoje se encontram todos os seus bens móveis.
- Era nas fracções que o C e seus familiares se reuniam para celebração das ocasiões festivas.
- C usa as fracções autónomas com conhecimento de toda a gente, há cerca de 30 anos.
- Em 2000, C incumbiu a Ré de fazer as limpezas e de manter as fracções em bom estado de utilização e conservação, fazendo as obras necessárias.
- Entregou-lhe as chaves das fracções e autorizou que a Ré aí continuasse a viver.
- Em 2008, C autorizou que as suas filhas passassem a residir no 4.º andar.
19. Destes factos verifica-se que os poderes de uso, fruição e disposição, inerentes ao direito de propriedade foram exercidos directa e pessoalmente pelo Recorrente C .
20. Após a aquisição pela sociedade, os poderes de facto sobre as fracções continuaram a ser exercidos pelo Recorrente, que sem qualquer alteração, continuou a usar, fruir e dispor das fracções, da mesma forma que o vem fazendo desde que ele e os irmãos foram residir para as mesmas.
21. As fracções têm sido a casa de morada da família, durante várias gerações: foi lá onde viveram os avós do Recorrente, os seu pais, ele próprio e os irmãos, a sua sobrinha e actualmente as suas filhas.
22. Nos termos do n.º 2 do art.º 1176.º do Código Civil presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, tendo o Recorrente C , demonstrado que vem praticando os actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, há mais de 30 anos.
23. Daqui se retira o animus da sua posse, correspondente ao direito de propriedade.
24. Trata-se de uma presunção juris tantum, que só pode ser afastada por prova em contrário.
25. Nos termos do n.º 1 do art.º 1193.º do mesmo diploma, o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.
26. Excepção que não se verifica no caso.
27. Como acima se referiu a lei presume a posse naquele que exerce o poder de facto (art.º 1176.º, n.º 2), sendo que o possuidor goza da presunção da titularidade do direito (1193.º, n.º 1), pelo que beneficiando o possuidor da presunção legal de posse, inverte-se o ónus de prova, nos termos do n.º 1 do art.º 337.º do Código Civil.
28. Assim, competia ao Autor, reivindicante, a prova de que o ora Recorrente não exerceu a posse com animus de verdadeiro proprietário das fracções autónomas, mas sim como mero detentor das mesmas.
29. Ou seja, competia ao Autor afastar a presunção de que o Recorrente beneficia por força do n.º 2 do art.º 1176.º do Código Civil, alegando e provando factos de que o uso por parte do aqui Recorrente não decorre de qualquer direito real. Não tendo sido afastada tal presunção, terá de se entender que os poderes de facto exercidos e provados integram, por força da presunção legal, não só o corpus, mas também o animus da posse.
30. O Autor não se dignou a produzir qualquer prova, excepto a de que as fracções se encontram registadas a seu favor junto da Conservatória do Registo Predial.
31. Conforme prevê o art.º 5.º do Código de Processo Civil, sob a epigrafe “Princípio dispositivo” o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes.
32. O Autor, não alegou, nem sequer demonstrou que o Recorrente usava as fracções como mero detentor apenas, como lhe incumbia.
33. Pelo que não se pode considerar o C , como mero detentor dos imóveis em causa, mas sim um verdadeiro possuidor.
34. O elemento psíquico da posse não se situa somente na intenção de ser dono, mas na vontade de agir como habitualmente faz o proprietário.
35. O mesmo entendimento é sufragado não só pela jurisprudência portuguesa (Acórdão de uniformização de jurisprudência de 14.05.96, publicado no DR II série, de 24.06.96, Ac. TRC, de 25/02/2014, Proc. n.º 1350/l1.6TBGRD.Cl, in http://www.dgsi.pt/) como pela de Macau (Ac. TSI, de 9/2/2012, Proc. 985/2010 e Ac. TSI, de 17/3/2005, Proc. 292/2004, in http://www.court.gov.mo)
36. Nos presentes autos, verificam-se todos os pressupostos de que depende a usucapião, designadamente, a posse com os respectivos elementos, corpus e animus, bem como o decurso do prazo para o efeito - prazo superior a 20 anos - contrariamente ao entendido pelo douto Tribunal a quo.
37. Verificam-se os requisitos previstos nos artigos 1212.º, 1213, 1214, n.º 1 e 1221.º todos do Código Civil, pelo que o Recorrente reúne os pressupostos para seja considerada a aquisição das fracções a seu favor por usucapião.
38. O douto tribunal a quo errou ao considerar que o Recorrente apenas tem usado as fracções como mero detentor, porquanto considerando as regras da inversão do ónus da prova competia ao Autor alegar e provar tal facto, o que não ocorreu.
39. O douto Tribunal a quo violou o princípio do dispositivo previsto no art.º 5.º do Código de Processo Civil, os art.º 337.º, 1176.º e 1993.º todos do Código Civil.
  Termos em que deve o presente recurso ser considerado procedente por provado, revogando-se o Acórdão proferido pelo douto Tribunal a quo, substituindo-se por outro, nos termos acima propugnados, que declare improcedente, por não provada a acção e procedente por provado o pedido reconvencional, com as legais consequências, por ser de inteira JUSTIÇA.

Notificado veio contra-alegar o Autor mediante o requerimento ora constante das fls. 507 a 512 dos presentes autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

De acordo com o vertido nas conclusões tecidas na petição do recurso, o recorrente começa por questionar a bondade das respostas dadas aos quesitos 5º, 15º, 16º, 19º, 24º, 25º e 29º da base instrutória, e depois pretende, no caso do êxito da alteração da matéria de facto nos termos requeridos, rogar a revogação da sentença recorrida e em substituição a improcedência da acção e a procedência do pedido reconvencional no sentido de declaração do recorrente como único e legítimo proprietário das fracções autónomas em causa, assim como a consequente condenação do Autor a reconhecê-lo como tal e abster-se de quaisquer actos perturbadores do seu direito de propriedade.

De acordo com a sentença recorrida, o pedido reconvencional da aquisição por usucapião da propriedade das duas fracções autónomas foi julgado improcedente por não ter sido demonstrado que o recorrente C possuía com animus de ser titular do direito de propriedade das fracções autónomas em litígio.

E a matéria dos quesitos 5º, 15º, 16º, 19º, 24º, 25º e 29º, a ser provada nos termos requeridos, tem a virtualidade de comprovar factos demonstrativos da posse por parte do recorrente sobre as fracções autónomas em causa, conducente à aquisição por usucapião das fracções autónomas em litígio.

Então comecemos pela impugnação da decisão de facto.

1. Impugnação da matéria de facto

Se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.

Diz o artº 629º/1-a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 599º, a decisão com base neles proferida.

Reza, por sua vez, o artº 599º, para o qual remete o artº 629º/1-a), todos do CPC, que:
(Ónus do recorrente que impugne a decisão de facto)
1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
4. O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º
In casu, o recorrente questionou a bondade das respostas dadas aos quesitos 5º, 15º, 16º, 19º, 24º, 25º e 29º da base instrutória.

A matéria em causa tem o seguinte teor:
......

No dia 16 de Novembro de 1961, C, a mãe e os três irmãos regressaram a Macau e foram viver no imóvel?
......
15º
É C quem continua a pagar todas as despesas inerentes às fracções, tais como água, electricidade, impostos e despesas de manutenção?
......
16º
C usa as fracções autónomas como verdadeiro dono e com conhecimento de toda a gente há cerca de 30 anos?
......
19º
Em Maio de 2000, quando C se ausentou de Macau para os Estados Unidos da América, incumbia a sobrinha, ora Ré, de fazer a limpeza, pagar todas as despesas de água, electricidades?
……
24º
F nunca contribuiu economicamente para a sociedade e nunca fez qualquer investimento?
……
25º
Tendo sido convidado por ser parente em quem o C depositava confiança para o ajudar a cuidar dos negócios, na sua eventual ausência?
……
29º
C não conhece nem nunca ouviu falar de D?

Os quesitos 15º, 24º e 29º foram simplesmente julgados não provados, ao passo os outros foram julgados apenas parcialmente provados.

De acordo com o Acórdão da decisão de facto, a convicção do Tribunal Colectivo, relativa à matéria de facto ora impugnada, foi formada com base nos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência.

Para os recorrentes, os meios de prova que impunham, sobre a matéria quesitada sob nºs 5º, 15º, 16º, 19º, 24º, 25º e 29º da base instrutória, uma resposta positiva são depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência, na parte devidamente identificada e exaustivamente transcrita na motivação do recurso.

Satisfeitas assim as exigências processuais para a viabilização da reapreciação da matéria de facto com vista à eventual modificação por este Tribunal de Segunda Instância da decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto, passemos então a apreciar se existem as alegadas incorrecções na apreciação da prova pelo tribunal a quo.

Ora, decorre do preceituado no artº 629º que o Tribunal de recurso é permitido funcionar como tribunal de substituição na matéria da questão de facto, relativamente ao Tribunal de primeira instância, desde que, em qualquer das situações aí previstas, se mostrem preenchidos os pressupostos nele exigidos, isto é, se se coloquem ao dispor do tribunal ad quem os mesmos meios probatório de que dispunha o tribunal de 1ª instância.

Comecemos pelo quesito 5º, onde se pergunta que “No dia 16 de Novembro de 1961, C, a mãe e os três irmãos regressaram a Macau e foram viver no imóvel?”

Ficou provado apenas que “C, a mãe e os três irmãos regressaram a Macau e foram viver no imóvel referido na resposta dada ao item 3º.”

Ou seja, não ficou provada a data do regresso.

Auscultada e analisada a gravação do depoimento prestado pela testemunha H no seu todo, verificamos que a mensagem que podemos extrair do seu depoimento poderá levar-nos pelo menos a julgar provado que em 1961 C, a mãe e os três irmãos regressaram a Macau.

Na verdade, notamos, mesmo apenas através dos nossos ouvidos, que a testemunha, sem hesitações, e com toda a firmeza, coerência e espontaneidade, respondeu às perguntas sobre os factos por natureza pessoais, nomeadamente onde que ela nasceu e em que ano regressou de Moçambique para Macau e passou a viver naquele antigo imóvel em ruínas, posteriormente demolido e com a ajuda de um padre foi construído no sítio onde estava o imóvel demolido um novo edifício por um empreiteiro e passou a viver nos dois pisos mais altos do mesmo edifício.

Por outro lado, nada encontramos na fundamentação do Acórdão da matéria de facto sobre as razões que levaram o Colectivo a não acreditar a declaração expressa de que a testemunha H, irmã do recorrente, ela própria regressou com a sua família de Moçambique para Macau em 1961.

Portanto, é de alterar a resposta ao quesito 5º para o seguinte:

“Em 1961, C, a mãe e os três irmãos regressaram a Macau e foram viver no imóvel referido na resposta dada ao item 3º.”

A seguir vamos apreciar a impugnação da matéria dos quesitos 15º, 16º e 19º.

Os quesitos têm o seguinte teor e aos quais foram dadas as seguintes respostas:

15º
É C quem continua a pagar todas as despesas inerentes às fracções, tais como água, electricidade, impostos e despesas de manutenção?
Não provado.
16º
C usa as fracções autónomas como verdadeiro dono e com conhecimento de toda a gente há cerca de 30 anos?
Provado apenas que C usa as fracções autónomas com conhecimento de toda a gente há cerca de 30 anos
19º
Em Maio de 2000, quando C se ausentou de Macau para os Estados Unidos da América, incumbia a sobrinha, ora Ré, de fazer a limpeza, pagar todas as despesas de água, electricidades?
Provado apenas que Em Maio de 2000, quando C se ausentou de Macau para os Estados Unidos da América, incumbia a ora Ré, de fazer a limpeza.

Na óptica do recorrente, os meios de prova que impunham respostas afirmativas a esses quesitos todos são os depoimentos prestados na audiência pelas testemunhas I, J, K, L e H.

Para o Colectivo da primeira instância, o quesito 15º não mereceu a resposta afirmativa é porque não se sabe quem efectivamente pagava as despesas inerentes às fracções, tais como água, electricidade, impostos e despesas de manutenção, uma vez que os depoimentos das testemunhas não são convergentes, havendo contudo a informação de que as mesmas (despesas) eram pagas ora pela Ré, dita sobrinha, ora pela contabilista, ora pela mãe das filhas, mas sempre sem que se tenha dito ou esclarecido se o C mandava dinheiro para o efeito – vide a fundamentação do Acórdão.

Auscultada e analisada a gravação do depoimento prestados pelas testemunhas, ao contrário do que entendeu o Colectivo de 1ª Instância, são para nós coerentes e convergentes os depoimentos referentes a quem pagou as despesas, pois se interpretados no seu todo, temos a ideia de que em diferentes períodos de tempo, as despesas foram pagas por pessoas diferentes, ou seja, antes da ausência do recorrente C de Macau em 2000, foi sempre a contabilista da empresa X quem pagou as despesas, com o dinheiro proveniente da conta de C, e depois era a Ré B quem, enquanto residente nas fracções, passou a pagar tais despesas até 2008, data a partir da qual passou ser I, mãe das filhas do recorrente C, N e O, quem passou a pagar as despesas.

Todavia, reconhecemos que a forma como a matéria foi descrita no quesito dificultou, senão impediu o merecimento de uma resposta positiva, dado que não foi o C que pagou pessoalmente tais despesas.

Portanto, é de manter a resposta negativa dada ao quesito 15º.

Quanto à matéria do quesito 16º, já podemos dar razão ao recorrente.

Para o Colectivo a quo, não se pode dar por assente que o C usava as fracções como se fosse o dono das mesmas é porque ele tinha perfeito conhecimento que as mesmas estavam registadas como tendo sido adquiridas pela sociedade da qual era sócio maioritário, mas não único.

Bom para nós, o simples facto de as fracções se encontrarem inscritas no registo predial como propriedade pertencentes à empresa de que o recorrente é sócio maioritário não é de todo çem todo impeditivo da actuação por parte do recorrente como se fosse dono das mesmas.

Ora, por força do princípio de livre apreciação das provas, consagrado no artº 558º do CPC, o tribunal forma a sua íntima convicção, a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo segundo as regras da experiência de vida e o conhecimento geral das pessoas.

Hoje em dia, não nós é de estranhar que as pessoas, empresárias ou não, por razões de variadíssima ordem, preferem possuir os seus bens, móveis ou imóveis, através de sociedades comerciais criadas exclusivamente ou não para o efeito, de que é sócio maioritário e portanto detém o controlo absoluto.

Se é certo que, juridicamente falando, o sócio, por mais maioritário que seja, é sempre uma pessoa singular distinta e não confundível com a pessoa colectiva de que é sócio, não é menos verdade que neste tipo de situações, esta pessoa sócia maioritária está, de facto, a agir como se fosse dono de um bem juridicamente pertencente à sociedade que domina absolutamente.

Basta pensar no fenómeno vulgaríssimo, do nosso conhecimento, de que, hoje em dia, tantas pessoas, residentes em Macau ou fora, possuem bens por intermédio de sociedades comerciais constituídas e registadas nas Ilhas Virgens Britânicas (BVI).

Nem por isso essas pessoas, bem cientes de que os bens pertencem juridicamente a tais sociedades, não estão ou não podem agir como se fossem donos desses bens!

É o que a experiência de vida que nos ensina e cremos ser do conhecimento das pessoas.

Estamos convencidos de que algo semelhante foi o que sucedeu com o recorrente C.

E através da auscultação dos depoimentos prestados pelas testemunhas identificadas, nomeadamente K e H, temos presentes factos instrumentais, bem demonstrativos de que o recorrente vivia, até à sua ausência de Macau em 2000, sempre nas fracções autónomas, organizava festas e convícios com o pessoal da sua empresa e seus familiares, e mesmo depois do ano de 2000, autorizou a Ré B a residir numa das fracções e no ano de 2008 através de I disse às duas filhas suas para residirem numa das fracções.

Portanto, não nos repugna atribuir uma resposta afirmativa ao quesito 16º, passando a ficar provado que C usa as fracções autónomas como verdadeiro dono e com conhecimento de toda a gente há cerca de 30 anos.

Quanto ao quesito 19º, cremos que o mesmo também merece uma resposta afirmativa.

Para o Colectivo a quo, o recorrente C só incumbiu a Ré de fazer limpeza das fracções e não também pagar as despesas de água e electricidade.

Pelo menos foi dito pela testemunha L, contabilista de X, que a partir da ausência do recorrente C em 2000 e durante o período de tempo em que a Ré B residia numa das fracções, foi a Ré quem levou os talões das despesas para a companhia X entregando a ela a fim de a testemunha ajudar a pagá-las.

Assim, independentemente de haver ou não acerto das contas entre o recorrente C e Liang Jingyu, podemos crer que foi por incumbência do recorrente, a Ré tratou dos pagamentos.

Portanto, para nós, o quesito 19º merece a sua resposta:

Em 2000, quando C se ausentou de Macau para os Estados Unidos da América, incumbia a ora Ré, de fazer a limpeza, tratar dos pagamentos das despesas de água, electricidades.

Outro grupo da matéria fáctica impugnada pelo recorrente é a dos quesitos 24º e 25º.

Os quesitos versam sobre a seguinte matéria objecto probandum e mereceu as seguintes respostas:

24º
F nunca contribuiu economicamente para a sociedade e nunca fez qualquer investimento?
Não provado.
25º
Tendo sido convidado por ser parente em quem o C depositava confiança para o ajudar a cuidar dos negócios, na sua eventual ausência?
Provado apenas que F era pessoa em quem C depositava confiança para o ajudar a cuidar dos negócios.

Comecemos pelo quesito 24º.

Foi levado à base instrutória o quesito 24º em que se pergunta “F nunca contribuiu economicamente para a sociedade e nunca fez qualquer investimento?”

A matéria simplesmente foi julgada não provada.

Para nós, a redacção do quesito 24º é pouco feliz, tanto porque versa sobre factos negativos, cuja comprovação é por natureza difícil, como também versam sobre a matéria de direito.

Como se sabe, só pode constituir thema probandum a matéria de facto e a matéria de direito, não obstante levada à base instrutória e julgada provada, deve ser dada por não escrita.

Na formulação de Alberto dos Reis, é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior, e é questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei – in Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 206-207.

Para o Mestre os quesitos não devem pôr factos jurídicos, devem pôr unicamente factos materiais. Entendem-se por factos materiais as ocorrências da vida real, isto é, ou os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens; e por factos jurídicos os factos materiais vistos à luz das normas e critérios do direito – ibidem pág. 209.

Ora, pergunta se alguém nunca contribuiu economicamente para a sociedade e nunca fez qualquer investimento, é pôr uma questão de direito, pois para chegar à conclusão de que alguém “nunca contribuiu” e “nunca fez investimento” é preciso que se demonstre o non-facere, consistente na omissão total da prática de quaisquer factos materiais qualificáveis como actos de contribuição económica e investimento, que em si não podem ser directamente demonstráveis por meios de prova, pois as expressões nunca contribuir e nunca fazer investimento são juízos de valor vistos à luz dos critérios do direito, ou das regras da contabilidade e economia.

Portanto, o teor do quesito 24º deve ser tido por não escrito e não deve ser atendido, o que nos dispensa de auscultar as respectivas gravações.

Passemos então ao quesito 25º.

Auscultadas as respectivas gravações, entendemos que à resposta do Colectivo se pode aditar a expressão “na sua eventual ausência”, pois parte das testemunhas identificadas pelo recorrente para impugnar a resposta ao quesito 25º chegou a dizer ao Tribunal que F era pessoa em que o recorrente C depositava confiança e que o ajudava na gestão do negócio na ausência do recorrente C, não tendo sido dito apenas ao Tribunal qual foi o motivo que fez F entrar na sociedade como sócio.

Portanto, a resposta ao quesito 25º passa a ter seguinte redacção:

“F era pessoa em quem C depositava confiança para o ajudar a cuidar dos negócios, na sua eventual ausência.”

Finalmente, vamo-nos debruçar sobre a impugnação da resposta negativa ao quesito 29º, onde se pergunta C não conhece nem nunca ouviu falar de D?

Trata-se dum facto pessoal e negativo do próprio recorrente, não é de estranhar que não ficou provado.

Na verdade, auscultadas as gravações dos depoimentos das testemunhas identificadas pelo recorrente para o efeito, a mensagem que podemos captar é que elas não conheceram nem ouviram falar de D, e não o recorrente não conheceu nem ouviu falar de D.

Portanto, este quesito não pode deixar de ser não provado.

Por razões expostas supra, o recorrente logrou impugnar com êxito parte das respostas dadas aos quesitos em causa, o que torna necessária a apreciação da questão de direito suscitada pelo recorrente.

2. Aquisição por usucapião da propriedade das fracções autónomas

Sedimentada a questão de facto, é de relembrar quê disputa está em causa.

In casu, o Autor intentou a presente acção de reivindicação das duas fracções autónomas com fundamento de que ele ser titular inscrito no registo predial.

Chamado à demanda como interveniente principal provocado, o ora recorrente veio contestar e deduzir reconvenção onde, com fundamento na invocada aquisição por usucapião da propriedade, fundada na posse das fracções autónomas, peticionou a declaração dele como único e legítimo proprietário das fracções autónomas em litígio e a condenação do Autor a reconhecê-lo como tal e a abster-se de quaisquer actos perturbadores do seu direito de propriedade.

O pedido reconvencional foi julgado improcedente, pois na óptica do Tribunal a quo não ficaram comprovados factos demonstrativos da posse por parte do recorrente C sobre a propriedade das fracções.

Em síntese, o Tribunal a quo entende que, bem ciente de que as fracções pertenciam à sociedade X, o recorrente C não possuía com o animus de ser titular de direito real algum, pelo que à míngua do elemento subjectivo nunca pode ocorrer a usucapião, e igualmente, não se demonstrando que C usasse as fracções em causa a qualquer título, ou que estivesse habilitado para o efeito.

Estando in casu uma acção de reivindicação, através da qual o Autor A pretende que a Ré B e os ocupantes desconhecidos lhe restituam as duas fracções autónomas em litígio.

Impugnou a Ré B e pediu o chamamento à demanda do C, ora recorrente, para intervir a título principal.

Citado, o C interveio na Acção contestando a acção por impugnação e deduziu contra o Autor a reconvenção invocando em seu favor que, desde 1961 que está na posse do direito de propriedade das fracções autónomas, a qual manteve ininterruptamente pelo menos até ao momento de contestação, pelo que já adquiriu a propriedade das fracções autónomas por usucapião.

Como se sabe, a acção de reivindicação é o meio judicial para a defesa da propriedade, que tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor da coisa.

São dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio), por outro – Pires de Lima e Antunes Varela, in CPC Anotado, Vol. III, pág. 113.

Assim, na parte de pronuntiatio, ao Autor cabe demonstrar que tem o direito de propriedade sobre a coisa revindicanda, que entretanto se encontra na posse ou na detenção de outrem.

De acordo com a materialidade fáctica provada, existe a favor do Autor um registo de aquisição da propriedade das fracções autónomas em causa.

Decorre do disposto no artº 1º do Código do Registo Predial, o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio imobiliário.

De acordo com o artº 7º do Código do Registo Predial, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.

Trata-se de uma presunção juris tantum, ilidível mediante prova em contrário – artº 343º/2 do CPC.

Decorre do disposto nesses artºs1º e 7º do Código do Registo Predial que em regra, o registo predial tem no nosso ordenamento jurídico natureza declarativa e não constitutiva.

Reza embora o artº 5º/1 do Código do Registo Predial que os factos sujeitos a registo produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo, o próprio artº 5º exceptua dessa regra geral prevista no seu nº 1 a aquisição, fundada em usucapião, dos direitos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, que são os direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão.

Ou seja, o simples facto de o Autor ter registado as fracções autónomas não constitui obstáculo ao reconhecimento da aquisição por parte do chamado à demanda reconvinte, C, ora recorrente, por usucapião, da propriedade das duas fracções autónomas.

Interessa portanto agora saber se o reconvinte logrou provar factos aquisitivos que integram o corpus e o animus sobre as fracções autónomas por parte do C, reconvinte, ora recorrente.

Para facilitar o nosso trabalho, é de relembrar aqui a factualidade material assente, alterada por nós nesta instância, e de assinalar os factos tidos por nós pertinentes à questão da invocada posse pelo recorrente conducente à aquisição por ele por usucapião das fracções autónomas em litígio.

a) Encontram-se inscritas a favor do Autor, pela AP n.º127 de 18.06.2007, inscrição n.º ..., as fracções autónomas «A QUATRO» do terceiro andar (correspondência actual AA TRÊS) e «A CINCO» do quarto andar (correspondência actual AA QUATRO), sitas em Macau, ambas para habitação, com entrada pelo…, do prédio com o n.º …, inscrito na matriz predial da freguesia da Sé, Concelho de Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial n.º …, a fls. …, do livro… e, em conformidade com o teor da certidão junta a fls. 7 a 12 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

b) A inscrição das fracções em nome do Autor foi feita com base na escritura pública de compra e venda, celebrada em 11 de Junho de 2007, lavrada a fls…., do livro … do Notário Privado Dr. Fong Kin Ip, em conformidade com o teor da certidão junta a fls. 13 a 15 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

c) Pela Apresentação n.º 3 de 19 de Agosto de 1970, inscrição n.º …, foi registada a aquisição do imóvel aludido em a) a favor de E, por sucessão hereditária.

d) Em 1979, C constituiu uma sociedade por quotas denominada “Empresa de Construção Civil e Investimento Predial X, Limitada”, da qual era sócio maioritário e gerente-geral, em conformidade com o teor da certidão de matrícula junta a fls. 185 a 204 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

e) Pela Apresentação n.º 58 de 13 de Abril de 1983, inscrição n.º …, foi registada a aquisição do imóvel aludido em a) a favor da “Empresa de Construção Civil e Investimento Predial X, Limitada”, por aquisição;

f) Em Janeiro de 2002, F, sócio da “Empresa de Construção Civil e Investimento Predial X, Limitada”, faleceu;

g) Em Janeiro de 2005 foi registada junto da competente Conservatória um acta da “Empresa de Construção Civil e Investimento Predial X Limitada”, datada de 29 de Julho de 1998, em conformidade com o teor do documento junto a fls. 164 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido;

h) No local onde foi edificado o prédio donde fazem parte as fracções dos autos existia um imóvel que tinha pertencido aos avós paternos do C;

i) C viveu em Moçambique;

j) Em 1961, C, a mãe e os três irmãos regressaram a Macau e foram viver no imóvel referido na resposta dada ao item h);

k) O imóvel referido em h) era velho;

l) C chegou a um acordo com um empreiteiro, nos termos do qual aquele se comprometia a demolir o prédio quase em ruínas e a construir um novo em seu lugar;

m) O referido no item anterior aconteceu em 1974;

n) Como contrapartida, o prédio seria dividido, ficando a família do C com as fracções do 3.° e 4.° andares e o empreiteiro com as demais;

o) C e a sua mulher G, também conhecida por G, escolheram as fracções dos autos como a sua casa de morada de família;

p) É nesse local onde, ainda hoje, se encontram todos os seus bens móveis desde mobiliário a artigos de decoração, roupa sua e da sua falecida mulher G;

q) Era nas fracções que o C e seus familiares se reuniam para celebração das ocasiões festivas;

r) C usa as fracções autónomas como verdadeiro dono e com conhecimento de toda a gente há cerca de 30 anos;

s) A Ré é familiar da falecida mulher de C;

t) Em 2000 quando C se ausentou de Macau para os Estados Unidos da América, incumbiu a ora Ré, de fazer a limpeza e tratar dos pagamentos das despesas de água e electricidade;

u) Também incumbiu a Ré de manter as fracções em bom estado de utilização e conservação fazendo as obras necessárias;

v) Para o efeito entregou-lhe as chaves das fracções e autorizou que a Ré aí continuasse a viver;

w) No dia 27 de Junho de 2008, C autorizou que duas das suas filhas passassem a residir no 4.º andar, do aludido imóvel;

x) F, era sócio da sociedade aludida em d);

y) F era a pessoa em quem C depositava confiança para o ajudar a cuidar dos negócios, na sua eventual ausência;

z) C usou as fracções como sua casa de morada de família;

aa) A acta aludida em g) foi feita numa folha timbrada com a informação pessoal do C;

bb) A acta aludida em g) foi levada ao Cartório Privado do Dr. Pedro Leal para que este reconhecesse a sua assinatura em 30 de Julho de 1998, o que este fez por confronto com o original do respectivo documento de identificação;

Ora, da parte da factualidade material assente, ora por nós sublinhada, nomeadamente os elencados nas al. o), p), q), r), resulta claramente que C tem actuado por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.

Portanto, tem posse por ter corpus e animus.

Com efeito, a comprovada ausência física do recorrente de Macau no ano de 2000 e a não comprovação do facto de o recorrente pagar com o dinheiro da sua algibeira as despesas da água e da electricidade consumidas nas fracções depois da sua ausência de Macau em nada perturbam a posse que o recorrente C vem exercendo, ou desde 1974, data em que o prédio de que fazem parte as duas fracções autónomas foi reconstruído com a constituição da propriedade horizontal, passou a viver com a sua esposa nas mesmas como a sua morada de família, ou pelo menos desde o ano de 1983 em que foi efectuado o registo da aquisição dos imóveis a favor da Empresa de Construção Civil e Investimento Predial X, Limitada e em que C passou ou continuou a usar as fracções como se fossem as suas.

Pois, por um lado, a posse pode ser exercida por interposta pessoa, por detentor por exemplo, portanto a posse não obriga o possuidor a permanecer continuada ou ininterruptamente nas fracções autónomas, e por outro lado, foi demonstrada nos autos uma abundância dos factos de que não obstante a sua ausência de Macau em 2000, o C continuava a agir como verdadeiro proprietário, tais factos são nomeadamente o facto de incumbir a ora Ré B de fazer a limpeza e tratar dos pagamentos das despesas de água e electricidade; o facto de incumbir a ora Ré B de manter as fracções em bom estado de utilização e conservação fazendo as obras necessárias, o facto de lhe entregar as chaves das fracções e autorizar que a Ré ali continuasse a viver; e o facto de autorizar, em 27JUN2008, duas das suas filhas a residir numa das fracções autónomas.

Por outro lado, não é nada de estranhar a não comprovação do pagamento pelo próprio reconvinte C das despesas relacionadas com água e electricidade, dado que se tratando de despesas quotiNs resultantes da utilização das fracções autónomas, é normal e natural que suporta quem efectivamente se encontra a residir nas fracções.

Nos termos do disposto no artº 1241º do CC, uma das formas de aquisição do direito de propriedade é usucapião.

Diz-se usucapião a aquisição pelo possuidor de um direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo mediante a actuação reiterada e paulatina correspondente ao exercício do direito, e mantida por certo lapso de tempo – artº 1212º do CC.

Por sua vez, o artº 1242º/-c) diz que o momento da aquisição do direito de propriedade por usucapião é o do início da posse.

De acordo com o disposto no artº 1221º do CC, tirando as situações em que seja violente e oculta, a posse, por mais fraca que seja, ou seja, não titulada, não registada, de má-fé, opera-se a usucapião no termo de 20 anos.

Decorre da conjugação do disposto nessas normas e face à factualidade material in casu assente, quando globalmente interpretada, podemos concluir que, pela prática reiterada dos factos correspondentes ao exercício do direito de propriedade sobre as fracções autónomas, pelo menos a partir do ano de 1983 em que foi efectuado o registo da aquisição dos imóveis a favor da Empresa de Construção Civil e Investimento Predial X, Limitada, mas continuou a usar as fracções como se fossem as suas, o C, reconvinte e ora recorrente, adquiriu desde há muito tempo o direito de propriedade das fracções autónomas por via de usucapião, independente de se tratar da natureza da posse que vem exercendo.

Finalmente, contra essa conclusão nem sequer o Autor pode invocar a presunção da titularidade do direito de propriedade a seu favor derivada do registo predial por força do disposto no artº 7º do Código de Registo Predial, uma vez que face ao artº 1193º do CC, a presunção da titularidade do direito, de que goza o possuidor, prevalece sobre a presunção simplesmente fundada no registo predial efectuado em 2008, bem posterior ao início da posse que se deu pelo menos em1983.


Em conclusão:

10. Se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.

11. Havendo impugnação da decisão sobre matéria de facto em sede de recurso, a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa.

12. Só pode constituir thema probandum a matéria de facto. A matéria de direito, não obstante levada à base instrutória e julgada provada, deve ser tida por não escrita.

13. É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior.

14. É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei.

15. Entendem-se por factos materiais as ocorrências da vida real, isto é, ou os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens; e por factos jurídicos os factos materiais vistos à luz das normas e critérios do direito.

16. A acção de reivindicação é o meio judicial para a defesa da propriedade, que tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor da coisa. São dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio), por outro.

17. Diz-se usucapião a aquisição pelo possuidor de um direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo mediante a actuação reiterada e paulatina correspondente ao exercício do direito, e mantida por certo lapso de tempo.

18. Face ao artº 1193º do CC, a presunção da titularidade do direito, de que goza o possuidor, prevalece sobre a presunção simplesmente fundada no registo predial, se este for posterior ao início da posse.


Tudo visto, resta decidir.
III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam;

1. Julgar parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto e proceder à alteração da matéria de facto assente nos termos consignados;

2. Revogar a sentença recorrida;

3. Passar a julgar improcedente a acção de reivindicação instaurada pelo Autor A e a julgar procedente a reconvenção deduzida pelo interveniente C;

4. Declarar o interveniente C como único e legítimo proprietário das duas fracções autónomas identificadas na al. a) da matéria de facto assente da sentença recorrida; e

5. Condenar o Autor a abster-se de quaisquer actos perturbadores do direito de propriedade do interveniente C.

Custas pelo Autor em ambas as instâncias.

Registe e notifique.

RAEM, 01MAR2018
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng