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Processo nº 1147/2017
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 22 de Março de 2018

ASSUNTO:
- Impugnação da decisão da matéria de facto
- Contrato promessa de compra e venda
- Cláusula resolutiva
- Abuso de direito

SUMÁRIO:
- Segundo o princípio da livre apreciação das provas previsto n° 1 do artigo 558.° do CPC, “O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
- A justificar tal princípio e aquilo que permite a existência do mesmo, temos que o Tribunal a quo beneficia não só do seu prudente juízo e experiência, como da mais-valia de um contacto directo com a prova, nomeadamente, a prova testemunhal, o qual se traduz no princípio da imediação e da oralidade.
- Assim, a reapreciação da prova matéria de facto tem um campo restrito, limitando aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada, nomeadamente quando não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
- O contrato-promessa é, em regra, vinculado para o promitente-vendedor, pelo que o exercício do chamado direito ao arrependimento ou o afastamento da execução específica só é permitido no caso de haver convenção expressa, a qual tem que ser clara, com a manifestação inequívoca da vontade de conferir ao promitente vendedor o direito de resolver o contrato.
- Não integra no conceito de abuso de direito a conduta do Autor, na qualidade de promitente-comprador, quando lança mão ao mecanismo legal de execução específica, que lhe é conferido pela lei, em face do incumprimento da promessa por parte da Ré.
O Relator
Ho Wai Neng



Processo nº 1147/2017
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 22 de Março de 2018
Recorrentes: A (Autora)
Sociedade de Investimento Imobiliário B, SARL (Ré)
Recorridos: As mesmas

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
Por despacho saneador de 14/06/2016, julgou-se improcedente a excepção de abuso de direito alegada pela Ré Sociedade de Investimento Imobiliário B, SARL e admitiu o seu pedido reconvencional.
Dessas decisões vêm recorrer a Ré Sociedade de Investimento Imobiliário B, SARL e a Autora A, alegando, em sede de conclusões, os seguintes:
Da Autora, na parte que admitiu o pedido reconvencional da Ré:
A. O direito à resolução dos contratos especificados na alínea B) dos Factos Assentes já foi exercido pela Ré e tal resolução, a ser válida, produziu efeitos na data em que a respectiva declaração chegou ao poder dos AA. ou foi, pelos mesmos conhecida (cf. art 216.° do Código Civil), pelo que não cabe ao Tribunal declarar tais contratos resolvidos, mas limitar-se a apreciar a validade dessa resolução quando conhecer o mérito desta acção, em face das excepções alegadas pela Ré.
B. Isto porque o efeito pretendido com a reconvenção (resolução dos contratos e consequente cancelamento do seu registo) coincide com aquele que resulta da improcedência da presente acção.
C. Com efeito, caso a acção improceda em nada é beliscado o direito da Ré à resolução dos contratos, nem, por conseguinte, a validade dessa resolução, pelo que não dispõe a Ré de interesse processual para formular o pedido reconvencional (principal), de que não poderá, por isso, conhecer-se, por força do disposto no artigo 412.°, n.º 2 ex vi do 413.°, alínea h), ambos do CPC.
D. Ao admitir o pedido reconvencional formulado, a título principal, nas alínea d) e e) do petitório de fls. 137-138 da Contestação/reconvenção, a decisão recorrida não deu pela falta do interesse processual da Ré para o efeito, cuja inexistência integra uma excepção dilatória, insuprível, de conhecimento oficioso, conduzindo, nesta parte, à absolvição dos AA/reconvindos da instância.
E. Deveria assim o pedido reconvencional de prolação de sentença que declarasse que os contratos promessa foram validamente resolvidos, mediante notificação judicial avulsa, com o consequente cancelamento dos registos realizados com base nesses títulos, ter sido rejeitado, por falta de interesse processual, absolvendo-se, nesta parte, os AA. da instância.
F. A decisão, na parte recorrida, inobservou, portanto, o disposto nos artigos 72.°, 73.°, 429.°, n.º 1, a), 413.°, h), 412.°, n.º 1 e 2, 414.° e 415.°, todos do CPC, pelo que deverá ser revogada com as legais consequências.
*
A Ré respondeu à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 338 a 343 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso.
*
Da Ré, na parte que julgou improcededente a excepção de abuso de direito:
A. A Ré, ora Recorrente, alegou matéria de facto em sede de contestação que justifica a alegada excepção de abuso do direito quanto à recusa do ajuste do preço de compra das Fracções.
B. E, salvo o respeito devido, o douto Tribunal a quo, antes de realizado o julgamento da matéria de facto (e, ad maioris, antes de a seleccionar), não deveria ter proferido decisão sobre a alegada excepção.
C. A Recorrente entende que, provando-se os factos que alega, maxime:
(i) que a Autora sabia, quando assinou os Contratos-Promessa, que lhe iria ser solicitado o pagamento de uma participação nos custos de construção do edifício (cuja construção esteve parada durante décadas, só tendo sido concluída devido à intervenção da Recorrente);
(ii) que esse pagamento é ajustado à evolução dos preços de construção em Macau ao longo dos tempos; e
(iii) que se recusou a fazer esse pagamento (ao arrepio do princípio da boa fé), então a Autora não pode, sob pena de abuso do (putativo) direito, requerer a execução específica dos Contratos-Promessa.
D. Ao decidir pelo respectivo indeferimento em sede de Despacho Saneador, o douto Tribunal a quo violou, salvo o respeito devido, o citado artigo 326.° do CC.
E. O douto Tribunal a quo escreve, e bem, a fls. 254, que "Aliás, uma coisa é apresentar o pedido e outra coisa é a procedência do pedido que só depois do julgamento da matéria controvertida é que possa saber do resultado.".
F. Não sendo compreensível como, antes mesmo de haver decisão sobre se à Autora assiste o direito que alega, se possa decidir antecipadamente que esta não o está a exercer de forma abusiva.
G. A Recorrente alegou ainda a excepção do abuso do direito quanto ao pedido da Autora referente à indemnização pelo dano excedente, cujo direito lhe não reconhece.
H. Alegando a Recorrente que, ainda que a Autora tivesse direito à indemnização pelo dano excedente (que não concede), a forma de cálculo apresentada pela Autora não tem reflexo na lei, devendo considerar-se que esta pretende exercer tal (putativo) direito de forma abusiva.
I. Ao indeferir a excepção de abuso do direito em sede de Despacho Saneador antes mesmo de determinar se a Autora tem direito a indemnização pelo dano excedente, o douto Tribunal a quo violou, salvo o respeito devido, o citado artigo 326.º do CC.
*
A Autora respondeu à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 346v a 350v dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso.
*
Por sentença de 14/07/2017, julgou-se:
- improcedente a excepção peremptória invocada de que os contratos de promessa de compra e venda foram resolvidos;
- a acção procedente por que provada e em consequência em substituição da Ré declara-se transmitido para a Autora, o direito resultante da concessão por arrendamento incluindo a propriedade de construção sobre as fracções autónomas “G16” e “F17” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 22295 a fls. 81 do Livro B8K e inscrito na matriz sob o nº 073784, condenando-se a Ré a pagar à Autora o montante do débito garantido pela hipoteca acrescido dos juros respectivos vencidos e vincendos no valor que se vier a apurar em execução de sentença para expurgação da hipoteca incidente sobre o prédio na parte correspondente às fracções autónomas objectos destes autos.
- improcedente todos os pedidos reconvencionais da Ré absolvendo a Autora dos mesmos.
Dessa decisão vem recorrer a Ré, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
A. Em resposta ao artigo 2.º da base instrutória, o douto Tribunal a quo julgou provado que a fracção G16 em 19.04.2011 tinha o valor de MOP2.145.000,00 e a fracção F17 em 19.04.2011 tinha o valor de MOP2.263.000,00;
B. No entanto, a Recorrente entende, salvo o respeito devido, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento quanto à matéria de facto em causa, cuja reapreciação ora se requer;
C. Considerando o depoimento da testemunha C, nos excertos transcritos nesta alegação, ficou demonstrado que a fracção G16 em 19.04.2011 tinha o valor de MOP4.359.379,66 e a fracção F17 em 19.04.2011 em 19.04.2011 tinha o valor de MOP4.597.648,64, devendo, consequentemente, a decisão do douto Tribunal a quo sobre a matéria de facto deve ser alterada, quanto ao artigo 2.º da base instrutória, nessa precisa medida.
D. O douto Tribunal a quo julgou não provados os artigos 4.º e 10.º da base instrutória;
E. No entanto, a Recorrente entende, salvo o respeito devido, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente a prova documental nos autos, designadamente os documentos que a Recorrente juntou aos autos no dia e imediatamente após o início da audiência de discussão e julgamento, cuja reapreciação ora se requer;
F. Considerando os aludidos documentos, ficou demonstrado que que o valor solicitado, de HKD649 por pé quadrado, para além de razoável (e manter o preço final da fracção abaixo do respectivo valor de mercado), está justificado documentalmente. Consequentemente, a decisão do douto Tribunal a quo sobre a matéria de facto deve ser alterada e, nessa sequência, serem julgados provados os artigos 4.º e 10.º da base instrutória.
G. O douto Tribunal a quo julgou não provado o artigo 5.º da base instrutória;
H. No entanto, a Recorrente entende, salvo o respeito devido, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente a prova documental e testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento quanto à matéria de facto em causa, cuja reapreciação ora se requer;
I. Considerando o depoimento das testemunhas D, E e F, maxime, nos excertos transcritos nesta alegação, bem como os Docs. juntos aos autos pela Recorrente, ficou demonstrado que a cláusula 2.2 dos Contratos-Promessa permitia à Recorrente resolver os mesmos unilateralmente. Consequentemente, a decisão do douto Tribunal a quo sobre a matéria de facto deve ser alterada e, nessa sequência, se julgado provado o artigo 5.º da base instrutória.
J. O douto Tribunal a quo julgou não provados os artigos 8.º e 9.º da base instrutória;
K. No entanto, a Recorrente entende, salvo o respeito devido, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente a prova documental e testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento quanto à matéria de facto em causa, cuja reapreciação ora se requer;
L. Considerando o depoimento das testemunhas D , E e, sobretudo, de F, maxime, nos excertos transcritos nesta alegação, bem como os Docs. juntos aos autos pela Recorrente, ficou demonstrado que a só no segundo semestre de 2010 a Ré colocou em prática o seu plano para recomeçar a reconstrução do edifício, tendo retomado as obras no princípio de 2011 e que muitos dos materiais aplicados no início da construção tiveram que ser substituídos e os custos dessa substituição foram sendo apurados durante o ano de 2011, devendo, consequentemente, a decisão do douto Tribunal a quo sobre a matéria de facto deve ser alterada, quanto aos artigo 8.º e 9.º da base instrutória, sendo os mesmos julgados provados nessa precisa medida.
M. O pedido principal da Recorrida é a execução específica dos Contratos-Promessa, tendo a Recorrente alegado em sede excepção, na sua contestação, que tal não poderia proceder, desde logo, porque os Contratos-Promessa se encontram resolvidos. Como resulta da simples leitura dos Contratos-Promessa dos autos, designadamente a respectiva cláusula 2.2, as partes acordaram expressamente em atribuir à Recorrente o direito de não celebrar o contrato definitivo, fixando-se uma indemnização à Recorrida, com referência ao dobro do sinal pago;
N. E foi precisamente esse direito, potestativo, que a Recorrente exerceu em 22 de Maio de 2014, quando requereu a notificação judicial avulsa da Recorrida para, nos termos da aludida cláusula 2.2 e do n.º 1 do artigo 426.º do Código Civil, fazer operar a resolução dos Contratos-Promessa, tendo na mesma notificação disponibilizado à Recorrida as indemnizações que lhe são devidas pelas aludidas;
O. Face ao teor da cláusula 2.2. dos Contratos Promessa, a Recorrida não tem o direito de se opor àquela resolução, que é válida, nem o direito de requerer a execução específica dos Contratos-Promessa, na medida em que por um lado, os mesmos foram resolvidos, e, por outro, o direito à execução específica dos Contratos-Promessa foi expressamente afastado pelas partes. A aludida Cláusula 2.2 constitui uma convenção que, por conferir direito de arrependimento à promitente-vendedora, a ora Recorrente, afasta o funcionamento da execução específica. Trata-se da "convenção em contrário" a que alude o artigo 820.º do Código Civil.
P. Ao decidir em sentido contrário, indeferindo a excepção de resolução, a douto Tribunal a quo violou na sentença em crise os artigos 399.º, 426.°, n.º 1, e 430, n.º 1, todos do Código Civil, pelo que deve esta ser revogada e substituída por outra que, julgando procedente a presente excepção, julgue improcedente a presente acção.
Q. Prevendo a improcedência do pedido de execução específica dos Contratos-Promessa, a Recorrida peticiona, a título subsidiário, uma indemnização pelo dano excedente, alegadamente a coberto da norma do n.º 4 do artigo 436.º do Código Civil;
R. Porém, esta norma apenas se aplica perante o "não cumprimento do contrato" e, como ficou demonstrado supra, os Contratos-Promessa foram validamente resolvidos pela ora Recorrente sem que se verificasse qualquer incumprimento da sua parte;
S. Em todo o caso, a Recorrida nunca teria direito a ser indemnizada pelo dano excedente, por não estarem preenchidos os requisitos de que depende a aplicação do n.º 4 do artigo 436.° do Código Civil, não podendo, caso o presente recurso seja julgado procedente e indeferido o direito da Recorrida à execução específica dos Contratos-Promessa, ser-lhe reconhecido o direito à alegada indemnização pelo dano excedente.
T. Em 22 de Maio de 2014, a Recorrente requereu a notificação judicial avulsa da Autora parar nos termos da aludida cláusula 2.2 e do n.º 1 do artigo 426.º do Código Civil, fazer operar a resolução dos Contratos-Promessa, pelo quer julgando-se procedente o presente recurso, deve a douta sentença recorrida ser revocada, por violar o artigo 399.° do Código Civil (princípio da autonomia privada e liberdade contratual das partes - pois a Recorrente fez operar uma causa de resolução fundada em convenção, nos termos do n.º 1 do artigo 426.º do Código Civil, mediante declaração à contraparte, nos termos do n.º 1 do artigo 430.º do mesmo diploma) e substituída por outra, que declare que os Contratos-Promessa foram resolvidos através da sobredita notificação judicial avulsa.
U. Ainda que o fosse procedente o pedido de execução específica dos Contratos-Promessa, o que não se conceder não pode deixar de se reconhecer o direito da Recorrente de receber os valores resultantes do aumento dos custos de construção das Fracções;
V. A douta sentença recorrida, na medida em que indefere o pedido reconvencional subsidiário da Recorrente, de condenação da Recorrida no pagamento do aumento dos custos de construção, viola o n.º 2 do artigo 752.º do Código Civil, pelo quer ainda que o douto Tribunal ad quem confirme a douta sentença recorrida na medida em que defere o pedido de execução específica dos Contratos-Promessa r não pode deixar de revogar a sentença em crise e substituí-la por outra, que condene a Recorrida a pagar à Recorrente os valores resultantes do aumento dos custos de construção das Fracções.
W. Ao abrigo do pedido de execução específica dos Contratos-Promessa, a Recorrida peticionou ainda que a Recorrente fosse "condenada na entrega à Autora do montante do débito garantido correspondente às fracções objecto dos contratos, e dos juros respectivos, vencidos e vincendos, até íntegral pagamento para o efeito de expurgação da hipoteca.";
X. Tal expurgação pode ser decretada quando, nos termos do n.º 5 do artigo 820.° do CC, a constituição de hipoteca seja posterior à promessa de venda;
Y. In casu, a hipoteca é anterior aos Contratos-Promessa, não existindo nestes sequer o compromisso de vender as Fracções livres de ónus ou encargos;
Z. Pelo que, ao deferir tal pretensão da Recorrida, a douta Sentença em crise viola os n.ºs 4 e 5 do artigo 820.º do CC, pelo que, ainda que o douto Tribunal ad quem confirme a douta sentença recorrida na medida em que defere o pedido de execução específica dos Contratos-Promessa, não pode deixar de revogar a sentença em crise e substituí-la por outra que indefira o pedido de condenação da Recorrida a pagar à Recorrente o montante do débito garantido pela hipoteca acrescido dos juros respectivos vencidos e vincendos no valor que se vier a apurar em execução de sentença para expurgação de hipoteca incidente sobre o prédio na parte correspondente às Fracções.
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A Autora respondeu à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 491v a 512v dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
a) A Ré é titular das fracções autónomas “G DEZESSEIS”, do décimo sexto andar “G”, “F DEZESSETE", do décimo sétimo andar “'F”, para escritórios, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXX a fls. 81 do Livro B8K e inscrito na matriz sob o nº XXX, registadas a seu favor na CRP, sob a inscrição n° XXX, a fls. 88 do Livro F20K, e com o título constitutivo da propriedade horizontal inscrito provisoriamente sob o n° XXX, conforme certidão do registo predial de fls. 25 a 51 a qual aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais;
b) Por dois contratos-promessa de compra e venda formalizados no dia 19 de Abril de 2011, a Ré prometeu vender, e a Autora prometeu comprar, as seguintes fracções autónomas aludidas em a):
* fracção “G DEZESSEIS”, do décimo sexto andar “G”, pelo preço de HKD2.082.000,00, equivalente a MOP2.144.460,00; e
* fracção “F DEZESSETE”, do décimo sétimo andar “'F”, pelo preço de HKD2.196.000,00, equivalente a MOP2.261.880,00;
c) O preço acordado para cada uma das referidas Fracções foi pago integralmente na data da celebração de cada um dos referidos Contratos-Promessa, nos termos das suas Cláusulas 2.1;
d) Em 16 de Junho de 2013, a Autora requereu e obteve, junto da Conservatória do Registo Predial, o registo da inscrição provisória por natureza, a seu favor, das fracções sob as inscrições n° 255763G e 255762G, conforme certidão do registo predial de fls. 25 a 51 já dada por reproduzida em a);
e) A Ré requereu a rectificação judicial das inscrições referidas em d);
f) Em 22 de Maio de 2014 a Ré através da notificação judicial avulsa pretendia resolver os dois Contratos-Promessa aludidos em a);
g) A Autora não concordava nem aceitava a pretensão aludida em f) e recusava a aceitar a indemnização ali proposta;
h) Damos aqui por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais os contratos de promessa de compra e venda a fls. 52 a 59;
i) A fracção G16 em 19 de Abril de 2011 tinha o valor de MOP2.145.000,00 e em 16 de Novembro de 2014 o valor de MOP13.545.000,00 e a fracção F17 em 19 de Abril de 2011 tinha o valor de MOP2.263.000,00 e em 16 de Novembro de 2014 o valor de MOP14.285.000,00;
j) Em 25 de Abril de 2011 e 15 de Outubro de 2014 a Autora pagou o imposto do selo e selo do conhecimento relativo às transmissões intercalares das fracções no valor MOP31.082,00, conforme doc. a fls. 61 a 64;
k) O processo de construção do edifício onde se incluem as Fracções iniciou-se na primeira metade dos anos 90, mas parou passado algum tempo.
l) Sobre o prédio do qual fazem parte as fracções autónomas referidas em a) em 30 de Dezembro de 2010 foi constituída hipoteca e consignação de rendimentos pela Ré a favor do Banco Industrial e Comercial da China (Macau) S.A. para garantia do valor de HKD250.000.000,00.
*
III – Fundamentação
1. Do recurso final da Ré:
1.1 Da impugnação da decisão da matéria de facto:
Vem a Ré impugnar a decisão da matéria de facto quanto aos quesitos 2º, 4º, 5º, 8º, 9º e 10º.
Na sua óptica da Ré, os quesitos 4º, 5º, 9º e 10º deveriam ser julgados provados.
Quanto ao quesito 2º, deveria ser provado que “A fracção G16 em 19/04/2011 tinha o valor de MOP$4.359.379,66 e a fracção F17 em 19/04/2011 tinha o valor de MOP$4.597.648,64”.
Em relação ao quesito 8º, deveria ser provado que “Só no segundo semestre de 2010 a Ré colocou em prática o seu plano para recomeçar a reconstrução do edifício, tendo retomado as obras no princípio de 2011”.
Para sustentar a sua posição, indicou o depoimento das testemunhas C, D, E e F, bem como a prova documental (dois contratos de empreitada, para provar os quesitos 4º e 10º).
Quid iuris?
Como é sabido, segundo o princípio da livre apreciação das provas previsto n° 1 do artigo 558.° do CPC, “O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
A justificar tal princípio e aquilo que permite a existência do mesmo, temos que o Tribunal a quo beneficia não só do seu prudente juízo e experiência, como da mais-valia de um contacto directo com a prova, nomeadamente, a prova testemunhal, o qual se traduz no princípio da imediação e da oralidade.
Sobre o princípio da imediação ensina o Ilustre Professor Anselmo de Castro (in Direito Processual Civil, I, 175), que “é consequencial dos princípios da verdade material e da livre apreciação da prova, na medida em que uma e outra necessariamente requerem a imediação, ou seja, o contacto directo do tribunal com os intervenientes no processo, a fim de assegurar ao julgador de modo mais perfeito o juízo sobre a veracidade ou falsidade de uma alegação”.
Já Eurico Lopes Cardoso escreve que “os depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode ser medido apenas pelo tom em que foram proferidas. Todos sabemos que a palavra é só um meio de exprimir o pensamento e que, por vezes, é um meio de ocultar. A mímica e todo o aspecto exterior do depoente influem, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhe.” (in BMJ n.º 80, a fIs. 220 e 221)
Por sua vez Alberto dos Reis dizia, que “Prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador seguindo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei. Daí até à afirmação de que o juiz pode decidir como lhe apetecer, passando arbitrariamente por cima das provas produzidas, vai uma distância infinita. (...) A interpretação correcta do texto é, portanto, esta: para resolver a questão posta em cada questão, para proferir decisão sobre cada facto, o tribunal aprecia livremente as provas produzidas, forma sua convicção como resultado de tal apreciação e exprime-a na resposta. Em face deste entendimento, é evidente que, se nenhuma prova se produziu sobre determinado facto, cumpre ao tribunal responder que não está provado, pouco importando que esse facto seja essencial para a procedência da acção” (in Código de Processo Civil anotado, Coimbra Editora IV, pago 570-571.)
É assim que “(...) nem mesmo as amarras processuais concernentes à prova são constritoras de um campo de acção que é característico de todo o acto de julgar o comportamento alheio: a livre convicção. A convicção do julgador é o farol de uma luz que vem de dentro, do íntimo do homem que aprecia as acções e omissões do outro. Nesse sentido, princípios como os da imediação, da aquisição processual (art. 436º do CPC), do ónus da prova (art. 335º do CC), da dúvida sobre a realidade de um facto (art. 437º do CPC), da plenitude da assistência dos juízes (art. 557º do CPC), da livre apreciação das provas (art. 558º do CPC), conferem lógica e legitimação à convicção. Isto é, se a prova só é "livre" até certo ponto, a partir do momento em que o julgador respeita esse espaço de liberdade sem ultrapassar os limites processuais imanentes, a sindicância ao seu trabalho no tocante à matéria de facto só nos casos restritos no âmbito do arts. 599º e 629º do CPC pode ser levada a cabo. Só assim se compreende a tarefa do julgador, que, se não pode soltar os demónios da prova livre na acepção estudada, também não pode hipotecar o santuário da sua consciência perante os dados que desfilam à sua frente. Trata-se de fazer um tratamento de dados segundo a sua experiência, o seu sentido de justiça, a sua sensatez, a sua ideia de lógica, etc. É por isso que dois cidadãos que vestem a beca, necessariamente diferentes no seu percurso de vida, perante o mesmo quadro de facto, podem alcançar diferentes convicções acerca do modo como se passaram as coisas. Não há muito afazer quanto a isso.” (Ac. do TSI de 20/09/2012, proferido no Processo n° 551/2012)
Deste modo, “A reapreciação da matéria de facto por parte desta Relação tem um campo muito restrito, limitado, tão só, aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada, nomeadamente quando não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação” (Ac. do STJ de 21/01/2003, in www.dgsi.pt)
Com efeito, “não se trata de um segundo julgamento até porque as circunstâncias não são as mesmas, nas respectivas instâncias, não bastando que não se concorde com a decisão dada, antes se exige da parte que pretende usar desta faculdade a demonstração da existência de erro na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efectivamente, no caso, foram produzidos.(...).” (Ac. do RL de 10/08/2009, in www.dgsi.pt.)
Ou seja,
Uma coisa é não agradar à Ré o resultado da avaliação que se faz da prova, e outra bem diferente é detectarem-se no processo de formação da convicção do julgador erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório, o que, salvo devido respeito não sucede no caso sub judice, carecendo em absoluto a Ré de razão ao invocar a violação de tal princípio.
A Ré insurge-se quanto à resposta dada aos quesitos com base no depoimento das testemunhas e retirando dos mesmos o sentido que mais lhe convém.
Ora, em face da prova efectivamente produzida e atentas as regras e entendimento acima enunciados, não assiste razão à Ré ao colocar em causa a apreciação e julgamento da matéria de facto realizada pelo douto Tribunal a quo que não poderia ter decidido em sentido diverso daquele que decidiu, pois, o preço acordado pelas partes é elemento essencial do contrato, a possibilidade de alteração do preço não pode deixar de ser considerado como convenções adicionais ao próprio conteúdo dos documentos. Nos termos do nº 1 do artº 388º, quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo dos documentos autênticos ou particulares mencionados nos artºs 367º a 373º não é admissível a prova por testemunhas, assim, só as palavras das testemunhas, sem qualquer documento que registam as convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento não têm força probatória para comprovar o conteúdo contrário ou para além do documento.
Quanto aos dois contratos de empreitada juntos aos autos, os mesmos são documentos particulares que também estão sujeitos à livre apreciação do julgador.
De qualquer maneira, ainda que haveria o aumento do custo de construção no momento posterior, a Ré não pode exigir o aumento do preço da venda sem a concordância da Autora.
Pergunta-se, caso se se verificar a diminuição do custo de construção, a Autora pode exigir a redução do preço da compra sem a concordância da Ré?
É de negar provimento ao recurso nesta parte.
1.2 Do mérito da causa:
A sentença recorrida tem o seguinte teor:
   “…
   «O contrato de promessa é a convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato» - cit. João de Matos Antunes varela, Das Obrigações em Geral, 4ª Ed., pág. 264 -.
   Da factualidade apurada dúvidas não há que entre Autora e Ré foram celebrados dois contratos de promessa de compra e venda relativamente às fracções autónomas a que se reportam os autos.
   - Da excepção peremptória da resolução dos contratos e em caso de procedência do cancelamento das inscrições do registo predial;
   Vem a Autora pedir a execução específica dos contratos de promessa de compra e venda e a condenação da Ré a pagar o montante devido para expurgação da hipoteca existente sobre as mesmas;
   Pela Ré foi deduzida a excepção peremptória de os contratos de promessa de compra e venda se terem por resolvidos, pelo que, precede a apreciação desta questão, o conhecimento do pedido de execução específica dos contratos.
   Sustenta a Ré a sua posição no argumento de que podia unilateralmente recusar-se a cumprir os contratos de promessa de compra e venda, baseando-se na cláusula 2 dos contratos de promessa de compra e venda dados por reproduzidos em h) cujo teor é «Após a celebração do contrato, se a parte A não pretender vender, deve restituir à Parte B o sinal em dobro», pretendendo que a mesma consiste no acordo quanto à possibilidade de resolução unilateral e injustificada nos termos do nº 1 do artº 426º do C.Civ. Pelo que, tendo feito notificar a Autora da resolução dos contratos de promessa se têm os mesmos por resolvidos cabendo-lhe apenas pagar o dobro do que recebeu.
   Ora, da factualidade apurada não é esse o entendimento que resulta.
   A cláusula 2ª dos contratos de promessa de compra e venda a que se reportam estes autos mais não é do que uma forma tabular do disposto na parte final do nº 2 do artº 436º do C.Civ.
   Por outro lado, e se outra fosse a intenção das partes haveria que nos termos do nº 1 do artº 820º do C.Civ. se ter excluído a possibilidade de execução específica consagrada no nº 3 do artº 436º do C.Civ. aplicável, também, por força do disposto na cláusula 15ª dos contratos sub judice sem que haja qualquer referencia ao seu afastamento.
   A possibilidade que a lei consagra no nº 2 do artº 436º do C.Civ. não é um direito do promitente vendedor se desonerar do cumprimento do contrato pagando o dobro do que recebeu, mas sim, uma penalização para o inadimplente de em caso de incumprimento ter de pagar o dobro do que recebeu, sem prejuízo de, a parte que não deu causa ao incumprimento poder sempre optar pela execução específica nos termos do nº 3 do mesmo preceito.
   Por outro lado e sem prejuízo do disposto no nº 2 do artº 436º do C.Civ., no caso da parte que cumpriu não optar pela execução específica ou não ser esta possível, poderá haver lugar à indemnização pelo dano excedente nos termos do nº 4 deste mesmo preceito, possibilidade que também não foi excluída.
   Ou seja, no caso dos autos, se a intenção das partes fosse a de conceder ao promitente vendedor o direito de escolha entre cumprir ou não cumprir, mediante o pagamento em dobro do que havia sido prestado, haveria que ter expressamente excluído a possibilidade de execução específica e de pagamento de indemnização pelo dano excedente, tal como autorizam o nº 4 do artº 436º C.Civ. quando refere “na ausência de estipulação em contrário” e o nº 1 do artº 820º C.Civ. quando diz “…na falta de convenção em contrário…”.
   Destarte, não se tendo convencionado que estavam excluídas aquelas duas hipóteses para o caso de incumprimento – execução específica e indemnização pelo dano excedente – e face ao disposto na primeira parte do nº 2 do artº 820º do C.Civ. não se pode aceitar o entendimento da Ré de que a cláusula 2ª dos contratos por si só as excluía remetendo para o pagamento do sinal em dobro.
   Não sendo possível a resolução unilateral e injustificada dos contratos de promessa de compra e venda, há que julgar improcedente a excepção peremptória de que os contratos de promessa de compra e venda a que se reportam os autos foram resolvidos.
   - Da execução específica dos contratos de promessa de compra e venda e a condenação da Ré a pagar o montante devido para expurgação da hipoteca existente sobre as mesmas;
   Improcedendo a excepção peremptória de haverem sido validamente resolvidos os contratos de promessa de compra e venda cabe agora apreciar o pedido de execução específica dos contratos.
   Nos termos do artº 820º do C.Civ. se alguém se obrigou a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa pode a outra parte, na falta de convenção em contrário obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso.
   No caso sub judice a vontade de não cumprir os contratos por banda do promitente vendedor está demonstrada nos autos uma vez que este pretende resolver os mesmos, mas pagando apenas o sinal em dobro.
   Por banda do promitente comprador já foi pago integralmente o preço.
   Destarte, sem necessidade de outras considerações face ao já antes exposto, nos termos do nº 3 do artº 436º e nº 1 do artº 820º ambos do C.civ. impõe-se concluir pelo direito da Autora à execução específica.
   Mais pede a Autora a condenação da Ré a pagar o montante do débito garantido pela hipoteca correspondente às fracções objecto destes autos.
   De acordo com o disposto nos nºs 4 e 5 do artº 820º do C.Civ. havendo a hipoteca sido constituída antes da promessa, para garantia de débito do promitente faltoso a terceiro e não se mostrando esta extinta deve este pedido ser julgado procedente.
   Contudo, a hipoteca em causa foi constituída sobre todo o prédio incluindo todas as fracções autónomas, desconhecendo-se o valor correspondente às fracções autónomas a que correspondem estes autos, pelo que, no que respeita ao quanto deve a Ré ser condenada no que se vier a apurar em execução de sentença.
   Destarte, devem proceder os pedidos principais formulados pela Autora ficando prejudicada a apreciação dos pedidos subsidiários por si formulados.
   - Caso seja julgada procedente a execução específica, da condenação da Autora no pagamento de MOP1.982.615,17;
   Para o caso de vir a ser julgada procedente a execução específica vem a Ré pedir a condenação da Autora a pagar um valor pelo aumento dos custos do preço de construção.
   Porém, no que a esta matéria concerne não se provaram os factos dos quais emerge o pedido, nomeadamente de que houvesse sido acordado entre as partes que o preço de compra e venda ficava sujeito a ajustes caso os custos de construção viessem a ser superiores ao estimado pela Ré.
   Pelo que, não se tendo provado os pressupostos de que emergia e na falta de fundamento legal, só pode este pedido improceder.
   Finalmente apenas uma nota para esclarecimento no que concerne ao direito que consta do pedido e àquele relativamente ao qual virá a ser proferida a decisão de execução específica, uma vez que, fazendo as fracções autónomas a que se reportam os autos parte de prédio construído em terreno concedido por arrendamento, não se pode proferir decisão no sentido em que é pedido de ser transmitida a “propriedade”, sob pena de se violar o artº 7º da Lei Básica.
   É nosso entendimento neste tipo de situações notificar a Autora para esclarecer que direito pede, sob pena da acção poder vir a ser julgada improcedente uma vez que o direito pedido não cabe no caso sub judice.
   Contudo, no caso dos autos tendo já sido registada a favor da Autora a aquisição provisória do direito à concessão por arrendamento e propriedade de construção, entendemos ser tal esclarecimento desnecessário uma vez que resulta evidente ser este o direito relativamente ao qual a Autora pretende a execução específica, sendo a referência a propriedade no pedido um mero lapso.
   Nestes termos e pelos fundamentos expostos:
   - Julga-se improcedente a excepção peremptória invocada de que os contratos de promessa de compra e venda foram resolvidos;
   - Julga-se a acção procedente por que provada e em consequência em substituição da Ré Sociedade de Investimento Imobiliário B SARL declara-se transmitido para a Autora A, o direito resultante da concessão por arrendamento incluindo a propriedade de construção sobre as fracções autónomas “G16” e “F17” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 22295 a fls. 81 do Livro B8K e inscrito na matriz sob o nº 073784, condenando-se a Ré a pagar à Autora o montante do débito garantido pela hipoteca acrescido dos juros respectivos vencidos e vincendos no valor que se vier a apurar em execução de sentença para expurgação da hipoteca incidente sobre o prédio na parte correspondente às fracções autónomas objectos destes autos.
   - Julgar improcedente todos os pedidos reconvencionais da Ré absolvendo a Autora dos mesmos.
   Custas a cargo da Ré.
   Registe e notifique…”.
Trata-se duma decisão que aponta para a boa solução do caso com a qual concordamos na sua íntegra.
Assim, ao abrigo do nº 5 do artº 631º do CPCM, negamos provimento ao recurso quanto ao mérito, remetendo para os fundamentos invocados na sentença recorrida.
2. Do recurso interlocutório da Ré:
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
   “…
   Do abuso de direito alegado pela R.
   A R. na contestação entende que quando a A. recusa a aceitação do pagamento do ajuste do preço de compra das fracções e vem pedir a indemnização pelo dano excedente está a exercê-lo em abuso de direito.
   Conforme a jurisprudência de Macau, quando o exercício de um direito subjectivo pelo seu titular exorbita dos fins próprios desse mesmo direito ou das razões justificativas da atribuição desse direito, ou está for a do normal contexto em que deve ser exercido, estamos perante abuso de direito, desde que seja reprovável a exorbitação, face aos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico desse direito (Vide TSI Proc. n.° 825/2009).
   Na versão tecida pela R. entende que quando a R comunicou à A. o valor exacto do aumento do preço de compra das fracções e recusando a A. a proceder a esse pagamento está no campo do abuso de direito.
   Por outro lado, também entende que quando a A. pede a indemnização pelo dano excedente está também a exercer o direito com base no abuso de direito.
   Face ao nosso caso, da forma como a A. vem tecendo a sua versão dos factos, não se vislumbra que ela está a exercê-lo de abuso de direito.
   Pedir a indemnização pelo dano excedente está a exercer o direito de ressarcimento que a lei lhe compete, e recusar o pagamento que a outra parte lhe exige, está também na alçada de exercer o seu direito mas na forma de excepção. Nesta óptica, não se vê como é que a A. exerceu de uma forma exorbitada dos fins próprios do seu direito.
   Aliás, uma coisa é apresentar o pedido e outra coisa é a procedência do pedido que só depois do julgamento da matéria controvertida é que possa saber do resultado.
   Assim, da forma como a A. vem alegando os factos e apresentando o seu pedido, não se vê que o seu exercício de direito seja exorbitante face aos limites impostos pela boa fé, pelos costumes e pelo fim social ou económico desse direito.
   Nestes termos também é de improceder o alegado abuso de direito.
   Custas pela R., fixando-se em 2UC …” .
Não achamos a decisão supra transcrita merece alguma censura ou reparação.
Assim, ao abrigo do nº 5 do artº 631º do CPCM, negamos provimento ao recurso quanto ao mérito, remetendo para os fundamentos invocados na sentença recorrida.
Aliás, a recusa de pagamento do preço adicional da venda por parte da Autora, no caso em apreço, nunca pode traduzir-se num acto de abuso de direito, já que nos termos do nº 1 do art° 400° do C.C., “o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.”
Assim, na inexistência de convenção adicional, contemporânea ou posterior quanto ao preço da venda, não pode a promitente-vendedora, ora Ré, alterar, sem o consentimento da contraparte, o preço já acordado, exigindo à promitente-compradora (Autora) o pagamento de montante adicional.
Portanto, a recusa de pagamento adicional do preço por parte da Autora é legítima.
Por outro lado, perante a recusa expressa do cumprimento do contrato promessa de compra e venda por parte da Ré, a Autora não resta outra alternativa senão recorrer ao tribunal para tutelar os seus direitos e interesses.
Ora, o direito de acesso aos tribunais é um direito fundamental dos cidadãos da RAEM legalmente previsto no artº 36º da Lei Básica, cujo exercício não pode ser visto com um acto de abuso de direito, a não ser que se trata dum exercício exorbitante face aos limites impostos pela boa fé, pelos costumes e pelo fim social ou económico, que não é o caso.
3. Do recurso interlocutório da Autora:
Face à confirmação da sentença recorrida e tendo em conta o disposto do nº 2 do artº 628º do CPCM, nos termos do qual “os recursos que não incidam sobre o mérito da causa e que tenham sido interposto pelo recorrido em recurso de decisão sobre o mérito só são apreciados se a sentença não for confirmada”, deixa de ter necessidade e utilidade apreciar o recurso interlocutório em causa.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em:
- negar provimento ao recurso final, confirmando a sentença recorrida;
- negar provimento ao recurso interlocutório da Ré, confirmando o despacho recorrido;
- não conhecer o recurso interlocutório da Autora por desnecessidade.
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Custas do recurso final e recurso interlocutório pela Ré.
Sem custas para o recurso interlocutório da Autora.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 22 de Março de 2018.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong



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1147/2017