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Processo nº 931/2016
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 01 de Março de 2018
Descritores:
- Execução
- Embargos
- Declaração de dívida
- Dívida de jogo
- Coacção

SUMÁRIO:

I - Se o título executivo é um documento que representa uma declaração de dívida contraída através de um mútuo para a actividade industrial do mutuário, mas os factos trazidos na petição de embargos visam revelar que o dinheiro emprestado foi para a prática de jogo em casino, haverá que apurar essa matéria controvertida, levando-a à base instrutória.

II - Se a dívida tiver sido contraída para jogo, pode vir a acontecer, em face das circunstâncias que se vierem a apurar, que o empréstimo é ilícito (por usura, por exemplo), ou lícito. Mas, se for lícito, é admissível que o tribunal venha a considerar que ele não possa gerar uma obrigação civil, mas somente uma obrigação natural, inexigível judicialmente, nomeadamente através da execução judicial instaurada.

III - Se o embargante alegar ter sido vítima de sequestro e extorsão na assinatura do referido documento de dívida no interior de um quarto de hotel, haverá que levar à base instrutória esta factualidade, pois, se provada, revelará uma declaração extorquida através de coacção, tornando-a anulável (art. 239º. nº1, al. a) e c), 248º e 249º, do Código Civil.

Proc. nº 931/2016

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I – Relatório
A, portador do HKID n.º ..., residente em Hong Kong, na …, nos autos de execução instaurados no TJB por B, portadora do BIRM n.º ..., residente em Macau, na …, -----
Deduziu contra este embargos à execução (CV3-14-0125-CEO-A).
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Na oportunidade, foi deduzida sentença, que julgou improcedentes os embargos.
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Contra essa sentença, veio o embargante recorrer jurisdicionalmente, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“I. Através do presente recurso pretende o Recorrente i) impugnar o despacho de fls. 67 e seguintes que indeferiu a reclamação da selecção da matéria de facto levada à Base Instrutória; ii) impugnar a decisão de facto proferida pelo Douto Tribunal a quo; iii) impugnar a interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto; iv) invocar a nulidade da sentença recorrida;
II. A decisão do Douto Tribunal o quo é fruto de um errado julgamento da matéria fáctica em discussão e da errada interpretação e aplicação das normas jurídicas subsumíveis ao caso concreto;
III. O Recorrente veio alegar nos artigos 8.1 a 8.7 da Oposição por Embargos à Execução, conjugada com o requerimento de aperfeiçoamento a fls. 39 e 40, factos que, no seu entender, se mostravam relevantes para a boa decisão da causa, nomeadamente factos demonstrativos da existência de uma coacção por parte do Embargado aquando da assinatura do título executivo que serviu de base à presente;
IV. Os factos invocados pelo Recorrente referem-se de forma detalhada aos actos de coacção praticados pelo Embargado, ora Exequente, na forma de obtenção do título executivo sub judice, actos esses que tornam o referido título executivo inválido;
V. Os referidos factos deveriam ter sido considerados pelo Douto Tribunal como factos essenciais na medida em que se mostram indispensáveis à procedência da excepção deduzida pelo Recorrente;
VI. E mostrando-se tais factos relevantes para a boa decisão da causa, a reclamação do despacho que seleccionou a matéria de facto deveria ter sido atendida pelo Douto Tribunal a quo, e em consequência serem tais factos transpostos para a Base Instrutória;
VII. E ainda que se entenda que tais factos se tratam de factos instrumentais, ainda assim deveriam ser levados à base instrutória porquanto revelam-se decisivos para a boa decisão da causa;
VIII. Nos termos do disposto no art. 5º e 389º, nº 1, al. c) do CPC à parte compete alegar todos os factos essenciais e circunstanciais ou instrumentais que servem de fundamento à sua pretensão, pois estes últimos só serão oficiosamente considerados se resultarem da instrução e discussão da causa;
IX. E tais factos, uma vez alegados, devem integrar a base instrutória no caso de virem a ser impugnados já que esta é o porto de abrigo de toda a matéria de facto relevante para a decisão da causa, caso contrário, a selecção da matéria de facto mostra-se deficiente;
X. Porque neste ponto a selecção da matéria de facto integrada na Base Instrutória mostrou-se deficiente, deverá ser dado provimento à reclamação ao Despacho Saneador apresentada pelo ora Recorrente, revogando-se o despacho de fls. 67 que veio indeferir essa mesma Reclamação, e em consequência deverão ser levados à Base Instrutória através da inclusão de novos quesitos os factos vertidos nos referidos artigos 8.1 a 8.7 da Oposição por Embargos à Execução, conjugada com o requerimento de aperfeiçoamento a fls. 39 e 40, tudo ao abrigo do disposto no art. 430º, nº 3 do CPC;
XI. O julgamento da matéria de facto efectuado pelo Douto Tribunal a quo quanto à resposta negativa aos quesitos 1º, 2º e 3º da douta Base Instrutória é erróneo, uma vez que uma análise criteriosa e crítica dos depoimentos das testemunhas X e X (Passagens gravadas em 3 de Maio às 10.17.02 em diante (1T((EQI100711270) impõem respostas diferentes àquelas que o Tribunal a quo decidiu dar;
XII. Os depoimentos testemunhais prestados em sede de audiência de julgamento encontram-se registados em audio, o que permite a impugnação da decisão proferida sobre a matéria e facto, ao abrigo do disposto o art. 599º, nº 3 e 629º, nº 1, al. a) do CPC.
XIII. Da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento resulta claro que o ora Recorrente foi coagido a assinar o documento particular que serve de base à presente execução;
XIV. O relato das duas testemunhas é sobejamente detalhado para podermos perceber o que se passou naquele dia e narram de forma consistente o medo instalado naquele quarto de Hotel e a intimidação de um grupo de pessoas para que aquele documento fosse assinado pelo Embargante, pelo que a resposta negativa aos referidos quesitos 2º e 3º resulta assim de um claro erro de julgamento;
XV. As referidas testemunhas foram unânimes em dizer que a suposta dívida declarada no documento particular sub judice nunca existiu nem tão pouco serviu para o negócio do embargante, ao contrário do que se alega no requerimento de execução;
XVI. No que à matéria de facto do quesito 1º diz respeito, resulta da prova testemunhal produzida que o Embargante não conhece o Embargado de parte alguma;
XVII. Mais resulta que os montantes aqui em discussão nada têm a ver com empréstimos do Embargado para os negócios do Embargante, como numa primeira versão dos factos veio o Embargado fazer crer, mas antes resultam de dividas de jogo contraídas pelo Embargante e às quais o Embargado é totalmente alheio;
XVIII. As regras da experiência comum dizem-nos que não será crível a versão dos factos apresentada pelo Embargado;
XIX. O Embargado não faz qualquer prova de que emprestou esse montante astronómico de 420 milhões de dólares de Hong Kong, não há um documento comprovativo de uma qualquer transferência bancária, um cheque emitido em nome do Embargante;
XX. Não se fez qualquer prova da entrega desse montante;
XXI. O contrato de mútuo tem a natureza de contrato real (quoad canstitutianem), e implica necessariamente a entrega efectiva da coisa (datio rei), sendo esta entrega elemento essencial à formação do contrato;
XXII. O contrato de mútuo pressupõe a existência de um acordo de vontades nesse sentido, envolvendo as obrigações (recíprocas) quer da entrega de dinheiro ou de outra coisa fungível ao mutuário, quer da restituição, por este ao mutuante, de outro tanto do mesmo género ou qualidade;
XXIII. Atenta a prova produzida a existência do referido contrato não ficou provada, como nem tão pouco ficou provada a existência de qualquer um dos aludidos elementos que o constituem;
XXIV. O ónus da prova da existência desse contrato incumbe a quem o invoca - art. 335º do Código Civil e entendimento contrário seria obrigar o Embargante a fazer prova de um facto negativo, o que equivale àquilo que usualmente se denomina por prova diabólica;
XXV. A lei impõe uma obrigação do mutuante de fazer duas provas: a prova do contrato e a prova da transferência efectiva do valor mutuado;
XXVI. O valor em causa e uma pretensa transferência em dinheiro é altamente suspeita;
XXVII. Ao nível da justiça os Tribunais não podem ser alheios às necessidades de empréstimos realizados profissionalmente por princípio só puderem ser realizados através de instituições financeiras licenciadas e sujeitas à supervisão das entidades reguladoras;
XXVIII. O tribunal não pode ignorar esta matéria dando cobertura à conduta pelo menos suspeita por parte do Embargado que se apresenta nos presentes autos munido de apenas e tão só de um papel que, como se viu, foi assinado sob coacção;
XXIX. Em face dos factos alegados pelas partes, incumbia ao Tribunal a quo um poder-dever de apurar as exactas circunstâncias em que este suposto empréstimo havia sido contraído, ao abrigo do princípio do dispositivo e do inquisitório, consagrados nos arts. 5º e 6º do CPC;
XXX. Devia o Tribunal a quo questionar como, quando e onde foi entregue a astronómica quantia ao Embargante pelo Embargado;
XXXI. Não se tendo apurado a existência do empréstimo a resposta negativa ao quesito 1º padece de um clamoroso erro de julgamento, sendo que esse erro de julgamento veio a ter uma influência nefasta na aplicação do Direito ao caso concreto;
XXXII. A alteração da decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto implicará necessariamente uma alteração da aplicação do Direito, conduzindo naturalmente à procedência da pretensão do Recorrente;
XXXIII. Da prova produzida em sede de julgamento torna-se inequívoco que não há qualquer empréstimo para a actividade do negócio do Embargado, e que a declaração vertida no documento sub judice foi efectuada sob coação, e dessa forma viciada;
XXXIV. Mostram-se preenchidos todos os pressupostos do vício da vontade nos termos e para os efeitos do disposto no art. 239º do Código Civil, pelo que deve a declaração vertida no referido documento particular ser anulada - art. 248º e 249º do Código Civil;
XXXV. Resultou da instrução e da discussão da causa, nomeadamente dos depoimentos testemunhais aqui descritos, que a quantia aqui em causa resultou de uma dívida de jogo;
XXXVI. Tratando-se de dívida de jogo, ainda que tal crédito pertencesse ao Embargado, o que não se concede, incumbia ao Tribunal, na prossecução da defesa do interesse publico, apurar a natureza dessa divida;
XXXVII. Se se tratasse de um empréstimo para jogo, tratar-se-ia de um empréstimo ilícito porque executado por quem não está legalmente autorizado para tal, e nesse caso, esse empréstimo seria sempre nulo porque contrario à Lei - art. 273º do Código Civil;
XXXVIII. Se se tratasse de uma divida de jogo decorrente de uma aposta, esta seria ilícita porque efectuada por quem não se encontra legalmente autorizado para tal actividade, e nesse caso seria a mesma igualmente nula porque contraria à Lei - art. 273º do Código Civil;
XXXIX. Sendo a nulidade de conhecimento oficioso - art. 279º do Código Civil - o Tribunal deveria conhecer ex officio de tal vício declarando essa mesma nulidade;
XL. Para a declaração de tal nulidade o tribunal não esta dependente tão pouco da alegação dos factos subjacente a essa nulidade pelas partes, antes pelo contrário, trata-se de um poder dever do Tribunal em conhecer de matérias de interesse público e que por essa razão estão protegidas pela sanção da nulidade;
XLI. Ao não conhecer da nulidade do documento que se dá à execução e do negócio a ele subjacente, a douta Sentença está ferida de nulidade por força do disposto no art. 571º, nº 1, al. d) do CPC, o que desde já se invoca para todos os efeitos legais;
XLII. Ainda que entenda que estamos no âmbito de uma divida de jogo decorrente de uma aposta lícita, o que não se concede, sempre se diga que tal divida apenas constitui uma obrigação natural e como tal, não pode ser judicialmente exigida - arts. 1171º e 396º do Código Civil;
XLIII. A decisão recorrida, ao decidir como decidiu, é nula nos termos do disposto no art. 571º, nº 1, al. d) do CPC,
XLIV. Alem disso, a decisão recorrida violou o disposto nos arts. 239º, 248º, 249º, 273º e 279º, do Código Civil.
Nestes termos, e nos mais em Direito que V.Exas mui doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso nos termos supra explanados, fazendo V. Exas. dessa forma inteira e sã JUSTIÇA!”
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O embargado, ora recorrido, respondeu ao recurso nos seguintes termos conclusivos:
“1. O Recorrente apresentou recurso relativamente a três decisões: (i) despacho sobre a reclamação apresentada pelo Recorrente relativamente à selecção da matéria de facto; (ii) acórdão sobre o julgamento da matéria de facto; e (iii) sentença (final) que julgou a improcedência dos embargos deduzidos pelo Recorrente.
2. Quanto ao recurso apresentado relativamente à selecção da matéria de facto, é importante relembrar que este incide sobre a pretensa não inclusão de factos que o Recorrente nem sequer alegou no seu requerimento inicial.
3. Essa circunstância é demonstrativa, salvo opinião diversa, da verdadeira intenção do Recorrente, dirigida a anular um julgamento que não lhe foi favorável e não propriamente insurgir-se contra uma violação de leis processuais.
4. De facto, o Recorrente foi convidado a aperfeiçoar o seu requerimento inicial, o que fez através da transcrição integral das declarações que prestou à Polícia Judiciária aquando da queixa-crime que apresentou neste âmbito.
5. Nesse sentido, o douto Tribunal a quo condensou essa panóplia de factos, a maioria dos quais apenas têm relevância em sede de processo-crime.
6. Para os presentes autos, releva apenas saber se existiu a pretensa situação de coacção e se a mesma levou à subscrição do título executivo que serve de base aos autos principais a que os presentes se encontram apensos.
7. De todo o modo, a limitação dos factos trazidos para a base instrutória apenas teria influência na produção de prova, que poderia ficar constrangida, o que não sucedeu in casu, tendo o Recorrente aliás beneficiado de extensa amplitude na inquirição das testemunhas por si arroladas.
8. Quanto à definição de factos instrumentais, decorre esta do art. 5.º n.º 2 do CPC, sendo estes aqueles que resultam da instrução e discussão da causa, e que podem ser oficiosamente considerados pelo Tribunal, pelo que não faz qualquer sentido serem aduzidos à base instrutória.
9. Em suma, o despacho sobre a reclamação apresentada pelo Recorrente relativamente à selecção da matéria de facto mostra-se irrepreensível.
10. Relativamente ao acórdão sobre o julgamento da matéria de facto, importa relembrar as matérias que subjazem aos quesitos em causa: (i) o Recorrente não ter contraído o empréstimo que decorre do título executivo (quesito 1.º); e (ii) o Recorrido ter coagido o Recorrente a assinar o título executivo (quesitos 2.º e 3.º).
11. Atendendo ao disposto no art. 370.º do CC, o título executivo, cuja autoria e assinatura não foram impugnadas (estando portanto reconhecidas), faz força probatória plena relativamente ao seu conteúdo, ou seja, que o Recorrente contraiu em 13.12.2013 uma dívida perante o Recorrido no montante de HK$420,000,000.
12. Nesse sentido, e ao contrário do que refere o Recorrente, o Recorrido não tem de fazer prova da existência da dívida, que se presume, cabendo portanto ao Recorrente fazer prova que afaste a presunção da existência da dívida (que decorre do princípio de que quem confessa um facto que lhe é desfavorável é por saber que o mesmo corresponde à verdade).
13. Nos termos do art. 387.º n.º 2 do CC, não é admitida prova por testemunhas sobre factos plenamente provados por documento, como sucede in casu relativamente à existência da dívida.
14. O Recorrente não apresentou um único elemento documental que contrariasse a existência da dívida - cuja presunção de existência lhe cabia afastar.
15. A produção de prova nos presentes autos limitou-se ao depoimento de duas testemunhas que revelaram não ter verdadeiramente conhecimento sobre a existência da dívida em causa.
16. Ambas testemunhas, além de se contradizerem durante os respectivos depoimentos, limitam-se a apresentar juízos de valor com poucos ou nenhuns elementos objectivos que os consubstanciem.
17. O próprio Recorrente entra em contradição quando alega que a dívida nunca existiu, adiante afirmando que efectivamente existe, mas resultaria pretensamente de dívidas de jogo por si contraídas.
18. Essa contradição do próprio Recorrente surge no âmbito da tentativa deste de estabelecer uma ligação entre a dívida e uma qualquer actividade ilícita, que falha redondamente atendendo ao facto das testemunhas nunca terem sequer ouvido falar do Recorrido, pelo que jamais poderiam saber qual a sua relação com o Recorrente.
19. Quanto aos quesitos relativos à pretensa coacção, é importante lembrar que o processo-crime conexionado foi arquivado pelo Ministério Público (com a ressalva embora de que o Recorrente requereu a abertura de instrução).
20. Importa também lembrar que o Recorrente apenas apresentou queixa relativamente à alegada coacção um ano depois da mesma ter supostamente ocorrido e após ter sido citado para o processo executivo, muito embora não houvesse qualquer impedimento a que o tivesse feito antes.
21. Quanto ao depoimento da 1.ª Testemunha sobre a pretensa coacção, incorre esta numa grave contradição quando refere a existência de uma determinada ameaça que, segundo consta do despacho de arquivamento do Ministério Público, nas declarações que prestou perante o mesmo, refere não ter existido.
22. Já relativamente ao depoimento da 2.ª Testemunha, nem se consegue depreender com clareza qual a ameaça que consubstanciou a pretensa coacção.
23. Ainda assim, jamais poderia o Tribunal dar como provado a prática de um facto pelo Recorrido quando as testemunhas referem não o conhecer nem sequer terem ouvido falar do mesmo.
24. Ademais, as testemunhas foram peremptórias em afirmar que, na data em decorreu a pretensa coacção (e apesar de estarem no mesmo local), não conseguiram ver se o Recorrido assinou o título executivo.
25. No que toca ao recurso sobre a sentença (final), o Recorrente alega que o Tribunal a quo não teve em consideração que a dívida resultaria de uma qualquer actividade ilícita associada ao jogo, questão esta que só agora vem suscitar.
26. Relativamente ao aspecto factual desta alegação, conforme já foi referido, não resultam dos autos elementos de prova que permitam associar a dívida ao jogo ou a qualquer actividade ilícita.
27. O próprio Recorrente, que anteriormente alegava que a dívida não existia, vem neste âmbito alegar que afinal a dívida existe, mas é incapaz de detalhar qual a sua origem, levantando diversas alternativas numa questão sobre a qual tinha de ter evidentemente conhecimento pessoal, visto que é o devedor (logo sabe a razão pela qual se constitui na referida obrigação).
28. Ainda assim, deve-se notar que um empréstimo para jogo concedido por quem não está legalmente autorizado a fazê-lo não tem como consequência a nulidade, apenas não constitui uma obrigação civil, mas meramente natural, cfr. decorre a contrario do art. 4.º da Lei n.º 5/2004.
29. Tal como a prescrição, que tem como consequência transformar uma obrigação civil em natural e que não é de conhecimento oficioso, também o facto de uma determinada dívida, plenamente demonstrada, constituir apenas uma obrigação natural nos termos da lei, tem de se oportunamente arguido (e provado) pela parte que dessa circunstância pretende beneficiar.
30. Inaplicável é igualmente o art. 1171.º do CC invocado pelo Recorrente, porquanto em momento algum foi alegado ou sequer provado que a dívida resultou de uma aposta realizada perante o Recorrido.
31. Não existindo: no processo elementos factuais que permitam ao Tribunal conhecer de uma nulidade que nunca existiu, a sentença não está viciada por omissão de pronúncia, estando aliás em plena conformidade com o art. 571.º n.º 1 al. d) do CPC.
Nestes termos, e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado integralmente improcedente, fazendo-se assim, conforme nos vem habituando este douto Tribunal, inteira e fiel Justiça!”
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Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
1 - A fls. 53 o embargante A apresentou reclamação contra a matéria de facto, entendendo que na peça da selecção da matéria de facto devem constar os artigos 8.1 a 8.7 da sua petição inicial de embargos, alegadamente demonstrativos da existência de uma coacção por parte do embargado aquando da assinatura do título executivo que serve de base à execução.
2 - A fls. 67 e vº o titular do processo proferiu o seguinte despacho:
«No presente processo, o embargante apresentou reclamação sobre o despacho da selecção da matéria de facto (v. fls.55 a 59 dos autos).
O embargado não pronunciou sobre a reclamação do embargante.
Cabe agora analisar e decidir sobre as reclamações apresentadas pelos dois Réus.
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Na sua reclamação, o embargante solicitou ao tribunal para acrescentar na Base Instrutória o conteúdo alegado complementarmente a fls.39-40.
Tal como foi alegado a fls.43 pelo embargado, o conteúdo que o embargante alegou complementarmente apenas se trata da reprodução da denúncia criminal de fls.5 a 8 dos autos. Ao mesmo tempo, pode-se considerar que as alegações complementares não foram expostas devidamente em articulado e na forma concisa, de certo que não se trata de uma forma satisfatória de apresentar as suas alegações.
Bem como devido a essa forma de apresentação das alegações, o tribunal teve de despender mais tempo para seleccionar os factos essenciais relevantes para serem julgados na presente acção, dado que a maior parte do teor se trata somente de factos instrumentais. Demais, o embargante não retirou uma conclusão do meio da complexidade desses factos como facto essencial para julgar procedente a sua reclamação. Sem dúvida que neste aspecto o embargante não assumiu as suas devidas responsabilidades.
Não obstante, analisando mais uma vez o quesito 2º da Base Instrutória, a fim de melhor julgar o meio de coacção que o embargante indicou que foi empregado, entendo que se deve alterar o quesito 2º para o seguinte:
“2. Em 14 de Janeiro de 2014, no quarto nº 2517 do Hotel X, o embargado ameaçou o embargante que caso não assinasse a declaração de dívida mencionada na alínea A dos Factos Assentes, iria fazer mal ao embargante, bem como não permitiria que o embargante se ausentasse do quarto do hotel?”
Demais, ordene-se que seja acrescentado o seguinte quesito:
“3. Devido à ameaça referida no quesito anterior, no dia 15 de Janeiro de 2014, o embargante assinou a declaração de dívida mencionada na alínea A dos Factos Assentes?”
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Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a reclamação do embargante, ordeno proceder à alteração da Base Instrutória conforme o conteúdo acima indicado.
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Ordeno a tradução da referida alteração para a língua portuguesa no prazo de dez dias.
Notifique e tome as devidas medidas.
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D.s.
(ass.) vide original»
3 - A sentença, por seu turno, deu por assente a seguinte factualidade:
O exequente instaurou o processo de execução com base no título executivo constante do documento de fls. 4 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzidos para todos os efeitos jurídicos.
Acrescenta-se ainda o seguinte:
4 - O documento dado à execução (fls. 4 da execução) tem o seguinte teor:
Declaração de Dívida
Eu, A, portador do Bilhete de Identidade de Hong Kong nº ..., pedi, em 1 de Dezembro de 2013, dinheiro emprestado a B ,portador do Bilhete de Identidade n.º ... ,no valor de quatrocentos e vinte milhões de dólares de Hong Kong (por extenso), ou HKD420.000.000,00 (em algarismo), para circulação de capital na exploração dos negócios.
Prometo devolver o aludido empréstimo sem juros antes do dia 31 de Dezembro de 2013: Mais confirmo que já recebi o aludido empréstimo.
Para constar, assino a presente declaração.
Assinatura do devedor: A (Ass.:
Vide o original) (Impressão digital: Vide o original)
Assinatura da testemunha:
Data: 13 de Dezembro de 2013
Observação: Caso o devedor não consiga cumprir a tempo o compromisso de devolução de empréstimo, o interessado tem o direito de pedir execução da devolução de empréstimo contra o devedor junto do tribunal de Hong Kong ou de Macau.
Os meus dados, fotografia recente e cópia do bilhete de identidade são os seguintes:

Fotografia:
Endereço:…, Hong Kong.
***
III – O Direito
1 – A sentença impugnada julgou improcedentes os embargos por não se ter dado por provada a matéria exceptiva invocada pelo embargante, segundo a qual a declaração de dívida foi obtida sob coacção e ameaça de um mal à sua pessoa, em privação de liberdade e no interior de um quarto de hotel.
O recurso agora interposto visa, porém, algo mais do que a própria sentença.
Pela ordem que segue, visa:
- Impugnar o despacho de fls. 67 (traduzido a fls. 72 e vº) que indeferiu a reclamação sobre a selecção da matéria de facto levada à Base Instrutória;
- Impugnar a matéria de facto dada por provada;
- Impugnar a bondade jurídica da sentença;
- Invocar a nulidade da sentença.
Face, porém, ao efeito invalidante que pode decorrer da respectiva arguição, começaremos a análise da matéria do recurso pela nulidade da sentença invocada.
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2 – Da nulidade da sentença
Defende o recorrente que, ao não tratar da nulidade do negócio que esteve na base da declaração que foi dada à execução (invalidade do negócio que se traduziria na ofensa ao art. 273º do Código Civil), a sentença incorreu na nulidade a que se refere o art. 571º, nº1, al. d), do CPC (omissão de pronúncia).
Além disso, continua o recorrente, tratando-se de uma dívida de jogo, mesmo que fosse lícita, sempre ela seria apenas uma obrigação natural e, portanto, não podia ser exigida judicialmente (arts. 1171º e 396º do Código Civil).
Ora bem. Na perspectiva do recorrente, a relação jurídica subjacente à declaração de dívida consistiu num empréstimo para jogo concedido por quem não está autorizado para tal. Por tal motivo, seria nulo esse negócio, nulidade igualmente fundada no facto de ser contrário à lei (art. 273º, do CC).
Não tem razão. Só há nulidade por omissão de pronúncia quando o juiz na sentença deixe de pronunciar-se sobre qualquer questão crucial ao desfecho da causa e sobre a qual pudesse e devesse fazer análise expressa.
Ora, neste caso, o juiz não tinha que tratar da invocada nulidade substantiva pela simples circunstância de a respectiva matéria não ter sido levada à factualidade assente, nem à base instrutória, assim como não poderia apreciar a questão pela óptica da alegada obrigação natural. É que, oficiosamente, o tribunal não poderia verter a sua atenção sobre factos que não foram tidos por controvertidos e sobre os quais tenha sido feita prova no sentido proposto pelo recorrente.
Portanto, se alguma crítica o tribunal “a quo” pode merecer será, quando muito, na não inclusão na base instrutória da factualidade pertinente. Mas isso é questão que no presente recurso se apreciará mais adiante.
Sendo assim, improcede a nulidade da sentença.
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3 – Da impugnação do despacho de fls. 67
O recorrente apresentara em tempo oportuno uma reclamação contra a selecção da matéria de facto levada à base instrutória.
Em sua opinião, os factos 8.1 a 8.7 por si suscitados na dita reclamação – constantes da peça de fls. 39-40, junta, aliás, na sequência de despacho do juiz a determinar a alegação de factos demonstrativos da invocada coacção – são essenciais à demonstração da coacção e da falta de vontade na assinatura da declaração de dívida dada à execução.
E mesmo que instrumentais fossem considerados, acrescenta, nem por isso deveriam ter ficado fora da base instrutória, por se mostrarem úteis à decisão da causa.
O despacho que recaiu sobre a dita reclamação considerou que não havia essa necessidade.
Vejamos.
*
3.1 – Efectivamente, por despacho do juiz titular do processo, o embargante/ora recorrente foi convidado a explanar factualmente a afirmação genérica e conclusiva constante dos pontos 8 e 9 do seu articulado de oposição por embargos (fls. 2-3 do apenso “traduções”).
E tal foi feito através da peça de fls. 39-40 (fls. 8-11 da tradução), em que o embargante descreve uma série de factos pretensamente reveladores de um sequestro e que alegadamente visam demonstrar que o embargado/exequente o forçou o embargante a assinar uma dívida de jogo.
Ora, o juiz do processo extraiu do lote de factos trazidos na referida peça aqueles que se mostravam úteis à decisão e com eles compôs os artigos 2º e 3º da base instrutória.
O segundo para tentar apurar-se se “Em 14 de Janeiro de 2014, na sala nº 2517 do Hotel X, o embargado ameaçou o embargante que, se não assinasse o recibo de empréstimo referido na alínea A dos factos apurados, seria desfavorável para o embargante, e impediu o embargante de sair da sala”.
E o terceiro para se tentar saber se “Em vista da ameaça descrita, em 15 de Janeiro de 2014, o embargante assinou o recibo de empréstimo referido na alínea A dos factos apurados”.
Tais quesitos foram somados ao pré-existente artigovb1º do mesmo questionário, em que se procurava indagar se “O executado não pediu ao exequente empréstimo da quantia de HKD$420.000.000,00, referida no documento constante da alínea A”.
Pois bem.
Estes três artigos, porém, não podem ser encarados isoladamente.
Não podemos esquecer que existe um documento – aquele que foi dado à execução, e que consta de fls. 4 da execução – onde o seu subscritor declara ter recebido de empréstimo 420 milhões de dólares de Hong Kong para negócio.
Corresponderá o conteúdo da declaração à verdade? Houve empréstimo, realmente? E o empréstimo foi para o embargante fazer gerir a sua actividade? Ou, pelo contrário, foi para poder jogar no casino?
É muito importante saber a resposta a esta matéria. Porquê? Porque se a dívida era de jogo (e as testemunhas ouvidas até parece revelarem essa finalidade) e se aquele documento foi assinado como forma de a reconhecer, então podemos estar perante uma dívida que emerge de uma concessão de crédito que escapa à fonte lícita de concessão de crédito a que alude o art. 3º da Lei nº 5/2004, que torna simplesmente a obrigação natural e não jurídica (art. 4º da citada Lei nº 5/2004) e cujo cumprimento não pode ser judicialmente exigível, nomeadamente através da execução (art. 396º, do CC).
A ilicitude pode até resultar da génese do negócio, se na base do empréstimo estiver uma usura (Ac. do TSI, de 24/05/2012, Proc. nº 179/2012), o que do mesmo modo o tornaria ilícito.
Tudo isto quer dizer que é preciso averiguar a natureza da dívida e se há elementos dos autos para dissipar esta vexata questio.
E quanto a nós, o embargante invocou inúmeros factos na sua peça de fls. 39 e 40 dos autos (traduzida a fls. 8 a 11 do apenso “traduções”), de onde se pode vir a concluir que aquele montante debitório pode ter resultado de empréstimo para jogo.
Sendo assim, prevenindo o que se acaba de admitir como sendo verdadeiro, importará fazer voltar os autos à primeira instância para tentar apurar a natureza deste empréstimo.
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3.2 – Mas há mais.
Realmente o juiz do processo incluiu mais dois artigos da base instrutória, como já vimos, sendo todos dados como não provados.
Só que o quesito 1º foi formulado na negativa “O executado não pedir nenhum empréstimo da quantia de HK$ 420.000.000,00 referida no documento constante da alínea A?”.
Mas, acontece que este quesito foi dado como não provado. Todavia, a não prova deste facto negativo não equivale a prova do contrário. Ou seja, não se pode dizer que o embargante pediu emprestado, nem, para que finalidade.
E então perguntamos nós agora: E a resposta aos arts. 2º e 3º serão suficientes para dissipar as dúvidas sobre se o eventual empréstimo era para negócio ou para jogo?
Claro que não.
Sendo assim, retomamos o que mais atrás vínhamos afirmando. Torna-se necessário saber com precisão que tipo de dívida era esta, a fim de que, uma vez apurado esse facto, possa o tribunal estar dotado de toda a matéria à qual possa aplicar “as várias soluções plausíveis da questão de direito” (art. 430º, nº1, fine, do CPC).
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3.3 – E não é tudo.
Ainda no quadro dos factos necessários à subsunção ao direito nas suas mais diversas soluções possíveis, cremos que a matéria do articulado referido de fls. 39 e 40 dos autos é muito mais rica e densa do que aquela que emerge do restrito painel levado à base instrutória.
Com efeito, além de os artigos da base instrutória terem um cariz perigosamente conclusivo e até incorrerem na inclusão de conceitos jurídicos (“o embargado ameaçou o embargante…”, no art. 2º, e “em vista da ameaça…descrita…”, no art. 3º), temos para nós que são manifestamente insuficientes para a revelação da coacção exercida sobre o embargante e que ele invocou no seu articulado.
Realmente, esses artigos podiam ter uma outra resposta se:
- Fossem provados os factos alegados pelo embargante acerca de tudo quanto se passou no interior do quarto do Hotel X, os quais traduzem uma pressão para a assinatura do documento sob pena de ser impedido de sair das instalações e de sofrer alguma consequência “desfavorável”;
- Fosse provada a causa da dívida declarada no documento;
- Fossem provadas as condições da viagem de regresso do embargante até Hong Kong juntamente com as suas duas empregadas e os “acompanhantes” enviados alegadamente para os vigiarem, a mando do embargado;
- Fossem provadas as condições em que durante um mês foi alegadamente pressionado num hotel de Hong Kong por alguns homens para o pagamento em falta.
A análise holística de toda essa materialidade – essencial e instrumental - seria manifestamente útil para a perfeita compreensão dos condicionalismos em que o referido documento foi assinado.
E isto, na verdade, pode, se vier a ser provado, expor um verdadeiro caso de sequestro e extorsão, o que caracteriza um ilícito, mas que sobretudo revela uma coacção que torna a declaração assim extorquida anulável (art. 239º. nº1, al. a) e c), 248º e 249º, do Código Civil.
Ora bem. Como se vê, tanto por esta razão, como pela primeira, somos a entender que a factualidade levada à base instrutória é manifestamente insuficiente para o apuramento dos factos invocados e para a solução que o caso merece, impondo-se a solução prevista no art. 629º, nºs 3 e 4, do CPC.
Deste modo, o recurso procede nesta parte.
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4 – Da impugnação da matéria de facto provada
Entende neste passo o recorrente que o tribunal incorreu em erro de julgamento da matéria de facto constante dos três artigos da base instrutória. Em seu entender todos eles mereciam uma resposta positiva. Ou seja, pretende que se provasse que não existiu nenhum mútuo e que o documento foi assinado sob coacção.
Contudo, face ao que se acaba de ajuizar, torna-se inútil qualquer análise sobre este fundamento do recurso, por ter por génese uma matéria de facto que o tribunal “a quo” de novo irá reapreciar em conjunto com outra factualidade em resultado da ampliação.
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5 – Da bondade jurídica da sentença
Considera o recorrente estarem presentes os pressupostos do vício da vontade na assinatura da declaração em causa, razão pela qual nos termos e efeitos do art. 239º do CC, ela deveria ser anulada.
De momento, os elementos são insuficientes. Razão pela qual se tomou a posição constante do ponto 3 supra.
Fica, pois, prejudicada também este fundamento do recurso, pois que todo o processo terá que retroceder a nova fase de julgamento, com ampliação da matéria de facto.
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6 – Da nulidade da sentença.
Também invocou a nulidade da sentença, com base em omissão de pronúncia, por entender que o tribunal não se pronunciou sobre a nulidade do documento, alegadamente titulador de um empréstimo ilícito.
A sentença não sofre desse vício, uma vez que não deu por provada a natureza ilícita do empréstimo. Portanto, esse nunca seria maleita de que enfermasse ao abrigo do art. 571º, nº1, al. d), do CPC.
De qualquer maneira, sempre esta matéria se mostra prejudicada face à decisão de determinar a ampliação da matéria de facto.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e, em consequência:
- Anula-se a sentença e determina-se a ampliação da matéria constante da base instrutória e repetição de todo o julgamento nos sobreditos termos.
Custas pela parte vencida a final.
T.S.I., 01 de Março de 2018
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong


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