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Processo nº 395/2016
Data do Acórdão: 15MAR2018


Assuntos:

Impugnação da paternidade
Impugnação da maternidade
Reconhecimento judicial da paternidade
Reconhecimento judicial da maternidade
Legitimidade activa
Regra da substituição


SUMÁRIO

1. A mãe biológica tem legitimidade activa para a propositura da acção para impugnar cumulativamente a maternidade e paternidade do filho, estabelecidas e registadas, com base nas identidades inverídicas dos pais indicadas na declaração de nascimento.

2. Na procedência do recurso que tem por objecto a sentença que absolveu o Réu da instância com fundamento na ilegitimidade activa do Autor e na sequência da revogação da decisão recorrida, o Tribunal ad quem deve, por força da regra da substituição consagrada no artº 630º do CPC, proferir a decisão, em substituição do Tribunal a quo, no sentido de julgar imediatamente o Autor parte legítima, e não apenas determinar à primeira instância que substitua a sua sentença por outra reconhecendo à Autora a legitimidade activa.


O relator


Lai Kin Hong


Processo nº 395/2016


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

A, propôs a presente acção declarativa, com processo comum, sob a forma ordinária contra B, C, D, todos devidamente identificados nos autos, pedindo, com fundamento de que não corresponde à verdade a declaração prestada pelo Ré B, constante do registo do nascimento de D, quanto à maternidade e à paternidade, que, na sua procedência, se declare estabelecidas a maternidade entre a Autora e a Ré D e a paternidade entre a Ré D e o seu cônjuge E, e que se declare o cancelamento da parte respeitante à maternidade e paternidade de D, constante do registo do nascimento.

Na petição inicial, a Autora requereu a intervenção do seu cônjuge E, como seu associado.

Foi admitida a intervenção principal provocada e citado E.

Devidamente tramitados os autos, foi realizado o julgamento da matéria de facto e proferida a seguinte sentença, constante das fls. 155 a 158v dos presentes autos, absolvendo os Réus da instância com fundamento na ilegitimidade activa da Autora:

I. 概 述
   A,女,已婚,持澳門居民身份證,編號129XXXX(X),居於澳門XXXXXX;及
   參加人
   E,男,已婚,持澳門居民身份證,編號129XXXX(X),居於澳門XXXXXX,針對
   
   第一被告B,其訴訟地位由下列人士代替:
   C,女,持澳門居民身份證,編號132XXXX(X),居於澳門XXXXXX;
   F,男,持澳門居民身份證,編號152XXXX(X),居於澳門XXXXXX;
   G,女,持澳門居民身份證,編號152XXXX(X),居於澳門XXXXXX;
   H,男,持澳門居民身份證,編號152XXXX(X),居於澳門 XXXXXX;
   D,女,持澳門居民身份證,編號519XXXX(X),居於澳門XXXXXX;
   第二被告C女,持澳門居民身份證,編號732XXXX(X),居於澳門氹仔XXXXXX;
   第三被告D,女,持澳門居民身份證,編號519XXXX(X),居於澳門XXXXXX提起
   
   通常宣告(調查父母身份)之訴 FM1-12-0015-CAO
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   原告提出訴訟的理由載於第2至11頁的起訴狀內,㧪要為:
   原告與E於1973年3月2日在中國大陸結婚,於1982年偷渡來澳居住。
   於1989年12月25日在澳門誕下第三被告。
   原告與E在懷有第三被告時,原本打算進行墮胎,但經其朋友B勸阻及承諾收養孩子才打消念頭。
   於是在第三被告出生後,B自行到當時民事登記局登記為第三被告的父親,並宣稱C為其母親。
   但是,自原告取得臨時逗留證及在澳門找到工作後,便將第三被告接回家撫養,自此,第三被告一直由原告負責供書教學直至第三被告成年。
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   原告提出的訴訟請求為:
1) 宣告原告及參與人E為第三被告D的親生父母;及
2) 命令註銷相關之出生登記。
**
   原告在訴狀內還要求誘發E聯同其本人參加訴訟。
***
   透過2015年1月8 日的批示,准予了E以共同原告身份參加本訴訟。
***
   參加人及被告獲傳喚後未有在法定期限內呈交答辯狀。
***
   本案由合議庭主席以獨任庭形式進行審判聽證。
***
   本法院在事宜、等級及地域上對此案具有管轄權,且訴訟程序恰當。
   雙方當事人享有法律人格及訴訟能力,且具有正當性。
   不存在妨礙審理本案的抗辯或先決問題。
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II. 事 實
   經查明,本院認定下列對審理實體問題為重要的事實獲得證實:
- Em 2 de Março de 1973, a Autora A casou, civilmente, com E, na República Popular da China. (Artigo 1º)
- Em 1982, a Autora e o seu marido E entraram clandestinamente para Macau e aqui fixaram a sua residência. (Artigo 2º)
- Na constância do matrimónio, a Autora deu à luz D, ora 3ª Ré, em Macau, no dia 25 de Dezembro de 1989. (Artigo 3º)
- Nessa altura a Autora e o seu marido E já eram pais de quatro crianças (I, J, K e L). (Artigo 4º)
- Aquando a Autora tomou o conhecimento da sua 5ª gravidez, queria, sem outra solução, recorrer ao aborto voluntário, porque bem sabia que não tinha condições suficientes para sustentar a vida da criança que ia nascer, porque a sua família estava a viver debaixo do nível de pobreza devido à sua situação de clandestinidade. (Artigo 5º)
- Todavia, o aborto não foi concretizado, dado que o seu amigo de 40 anos B, ora 1º Réu, conseguiu convencer a Autora de dar a luz à criança com a promessa de que iria sustntar e educá-la como se fosse a sua própria filha, sob as seguintes condições:
i) “Oferecer” a criança ao Ré B; e
ii) Permitir o Réu B e a sua mulher C, ora 2ª Ré, declarar como pais da criança, junto à Conservatória do Registo Civil do então Território de Macau. (Artigo 6º)
- Em face da sua situação económica e para não prejudicar a vida da sua futura criança, a Autora aceitou a proposta sugerida. (Artigo 7º)
- Após o nascimento da Ré D, o Réu B deslocou-se à Conservatória do Registo Civil do então Território de Macau e registou-a como sua filha e declarando a sua mulher, a Ré C, como mãe da criança. (Artigo 8º)
- Anos volvidos, e já com a aquisição do título de permanência temporária em Macau, emitido pelo Corpo de Polícia de Segurança Pública do então território de Macau, em 1990, e por ter conseguido encontrar um emprego com um salário bastante razoável, a vida familiar da Autora melhorou acentuadamente. (Artigo 9º)
- Em face deste melhoramento de vida, foi possível uma gradual aproximação entre a Autora e a sua filha, com o consentimento dos alegados pais da mesma. (Artigo 10º)
- A ponto da Ré D, passar a conviver frequentemente com os seus verdadeiros pais e irmãos I, J, K e L. (Artigo 11º)
- A Ré D vive com a Autora e o seu pai E com o perfeito conhecimento da verdadeira relação actualmente de filiação que os une. (Artigo 12º)
- O Réu B e a Ré C têm o perfeito conhecimento que a Ré D não é a sua filha. (Artigo 14º)
- A Ré D sabe, ou pelo menos sabia desde da sua infância, que foi sempre educada e alimentada pela Autora e interveniente. (Artigo 15º)
- A Autora tomou a seu cargo a educação da Ré D, assumindo-se como seu encarregado de educação perante a direcção da Escola XX, a partir de 1997. (Artigo 16º)
- No mês de Março de 2012, às Autora, Ré D e E, foram solicitados comparecer a uma diligência realizada pela Direcção dos Serviços de Identificação, cujo teor consta do documento de fls. 134 a 136. (Artigo 17º)
- E para efeitos de investigação da maternidade e da paternidade, a Autora, E e a Ré D, foram solicitadas a realização de testes de ADN junto aos peritos do Laboratório da Polícia Judiciária. (Artigo 18º)
- Em finais de Março de 2012, a Autora foi notificada pelo Ministério Publico para, no dia 17/04/2012, pelas 10:00, prestar declarações sobre um processo de impugnação de paternidade. (Artigo 19º)
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III. 法 律 依 據
   確定了既證事實,現對事實作出分析並考慮適用的法律。
   原告提起本訴訟,以其本人及參加人E為第三被告D的親生父母親為由,要求宣告原告及E為第三被告的親生父母親,同時要求宣告第三被告的出生登記上父母身份無效並將之註銷。
   依據原告的訴狀,原告提起本案的主要請求為調查或確認第三被告的父親及母親身份,在確認原告及E為第三被告的真正父母的前提下,宣告第三被告出生登記上的父母親資料無效。
   然而,本院認為本案缺乏應有的訴訟前提。

   原告及參加人的正當性
   本案的請求為確認母親及父親身份。
   《民事訴訟法典》第五十八條規定:“在原告所提出出現爭議之實體關係中之主體具有正當性,但法律另外指明者除外。 ”
   原告在訴狀中描述其本人及參加人實為案中第三被告的親生母親及父親,表面看原告描述的事實足以讓彼等具有提起本訴訟的正當性。
   然而,對於司法確認親子關係,不論父親還是母親,法律訂定了可提起訴訟的規定。
   《民法典》第一千六百七十三條規定:“母親身分不能按照以上各條之規定透過作出聲明而確立時,得在子女專為此目的而提起之訴中予以確認。”
   同樣地,在《民法典》第一千七百一十九條亦作出類似的關於調查父親身份的規定。
   按照上述特別規定,無論父親身份還是母親身份的司法確認,均只可由子女提起訴訟。其他的相關人士,不論為假父親、假母親,還是自認為父親或母親的人,甚至檢察院均沒有法定的正當性提起訴訟。
   因此,在本案中,原告既不具備正當性提起確認母親身份之訴,當然亦不具備正當性提起確認父親身份之訴,同樣地,參加人亦不具備正當性。
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   而且,撇除正當性的問題,原告提起確認父母親身份之訴,卻沒有提出爭議被登記父母親身份的請求,據《民法典》第一千六百七十五條及第一千七百零二條的規定,相關的請求也絕對不可能成立。
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   固然,若缺乏正當性的訴訟前提及訴訟不可行的情節當初及早被發現並在初端批示中給予原告補正,可以避免不必要的訴訟行為,如今,到目前的訴訟階段,有關狀況已不可以改變或補正,故此,只可以根據《民事訴.法典》第二百三十條第一款c)項的規定,駁回原告及參加人針對被告的起訴。
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IV. 裁 決
   據上論結,基於原告A及參加人E缺乏正當性,駁回針對被告B(其訴訟地位由C、F、G、H及D代替)、C及D的起訴。
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   訴訟費用由原告承擔,但不妨礙已給予原告的司法援助。
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   訂定指定予原告的公設代理人澳門幣$5,000.00元的代理費用(根據第41/94/M號法令附表第1點)。
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   依法作出通知及登錄本判決。


Inconformada com a sentença, veio a Autora interpor dela recurso para este Tribunal da Segunda Instância, concluindo e pedindo que:

a) Em 6 de Setembro de 2012, a ora Recorrente A interpôs uma acção de impugnação da maternidade e de perfilhação contra a Ré D, filha registada do 1.º Réu e da 2ª. Ré, o falecido Réu B, pai registado da 3ª. Ré D e a Ré C, mãe registada da mesma, por não sendo verdadeiras maternidade e paternidade estabelecidas;
b) Para efeitos de impugnação de perfilhação, a ora Recorrente tinha requerido a intervenção do seu marido E como o seu associado, nos termos do artigo 267.º n.º 1 do Código de Processo Civil;
c) Tendo a ora Recorrente pedido que o Tribunal “a quo” declarasse estabelecido a maternidade e a paternidade da Ré D, a seu favor e a do Interveniente E, por sendo eles os verdadeiros pais biológicos da mesma;
d) Com base da matéria de facto provada e os documentos junto aos autos, mormente o relatório de exame pericial de ADN, elaborada pelo Laboratório da Polícia Judiciária da RAEM, o Tribunal “a quo” considerou provado que a ora Recorrente e o Interveniente são pais biológicos da Ré D, nos termos seguintes: “本院根據卷宗的文件書證,尤其是第12至22頁、第114至123頁及第133至136頁文件,而對卷宗的事實作出認定。依照司法警察局的脫氧核糖核酸的測試報告,顯示被告D的親生父親及母親極有可能為原告及參加人E。而且,按照三名證人的證言,第三被告自2歲起已與彼等一起居住,父母親視其為女兒,彼等亦視之為妹妹,給合第19至21頁之文件,故此,可以認定第三被告的真正父母為原告及參加人以及被登記為其餘兩名被告的女兒的經過屬實。根據卷宗第13頁、第22頁以及第133至136頁的文件的內容,足以認定第一條、第十九條及第十七條的事實。”- cfr. fls. 152 a 153 dos presentes autos;
e) Mas, mesmo tendo provado a existência da filiação biológica entre a ora Recorrente, o Interveniente e a Ré D, a acção de impugnação da maternidade e de perfilhação tinha sido julgada improcedente, por ter entendido que ora Recorrente e o Interveniente não têm legitimidade activa, conforme a douta fundamentação ora se transcreve: “原告提起本訴訟,以其本人及參加人E為第三被告D的親生父親母親為由,要求宣告原告及E為第三被告的親生父母親,同時要求宣告第三被告的出生登記上父母身份無效並將之註銷。依據原告的訴狀,原告提起本案之主要請求為調查或確認第三被告的父親及母親身份,在確認原告及E為第三被告的真正父母之前提下,宣告第三被告出生登記上的父母親資料無效。然而,本院認為本案缺乏應有的訴訟前提”;
f) Sempre com o devido respeito, a ora Recorrente considera que o Tribunal “a quo” tinha interpretado erroneamente o seu pedido principal, julgando que o seu pedido era de proceder à investigação ou reconhecimento de maternidade e de paternidade da Ré D (“依據原的訴狀,原告提起本案之主要請求為調查或確認第三被告的父親及母親身份…”), o que não era essa a pretensão da ora Recorrente;
g) E em virtude da errada interpretação do pedido, o Tribunal “a quo” aplicou o regime jurídico de reconhecimento judicial, para o caso sub judice, que levou a acção ter sido julgada improcedente, por falta de legitimidade activa;
h) Conforme o nosso Código Civil vigente (doravante designado por CC), prevê que a maternidade pode ser estabelecida por declaração, averiguação oficiosa e por reconhecimento judicial - vd. os artigos 1658.º a 1684.º do CC;
i) A paternidade pode ser estabelecida e por via de presunção e de reconhecimento - vd. os artigos 1685.º a 1722.º do CC;
j) Para o caso sub judice, o Tribunal “a quo” entendeu que o regime jurídico aplicável seria o de reconhecimento judicial, quer em termos de investigação de maternidade ou de paternidade;
k) Mas, tal como se prevê nos artigos 1673.º e 1719.º, ambos do CC, a acção de investigação de maternidade e de paternidade só pode ser intentada pelo filho, ou seja, ín casu, este tipo de acção só pode ser intentada pela Ré D;
1) Nunca seria a pretensão da ora Recorrente de recorrer à investigação ou reconhecimento judicial para efeitos de estabelecimento da verdadeira maternidade e de paternidade com a Ré D;
m) Sempre como devido respeito e salvo das diversas melhores opiniões, a ora Recorrente considera que o regime jurídico de reconhecimento judicial não tem aplicabilidade para o caso sub judice, uma vez que a relação de filiação entre os Réus tinha sido estabelecida por via de declaração, prestada pelo falecido Réu B, junto à Conservatória de Registo Civil do então território de Macau, tal como ficou provado no artigo 8.º da sentença da matéria de facto provada (fls. 151 v. dos presente autos);
n) Conforme a previsão da norma do artigo 1673.º do CC, dispõe que a acção de investigação de maternidade só terá lugar quando não resulte de declaração, que não seria o caso em concreto, tal como ficou provado;
o) Tendo em conta a relação de filiação entre os Réus tinha sido estabelecida por declaração, assim, a maternidade e a paternidade podem ser impugnadas em juízo, por não sendo verdadeiras, respectivamente, por quem se declarar mãe do registado e por quem se declare pai do perfilhado, in casu, a ora Recorrente e o Interveniente, por força dos artigos 1665.º n.º 1 alínea c) e 1710.º n.º 2, ambos do CC;
p) A ora Recorrente pretende, através da sua acção, impugnar a maternidade e a paternidade estabelecida entre os Réus, e em consequência, requer que o Tribunal “a quo” declarasse estabelecidas a sua maternidade com a Ré D e a paternidade entre esta e o Interveniente;
q) Embora ora Recorrente não tinha pedido expressamente, na sua petição inicial, que seja declarada impugnada a relação de filiação entre os Réus, mas, mesmo sendo assim, nada se impede que o Tribunal “a quo” declarasse estabelecidas a maternidade e a paternidade entre o ora Recorrente, o Interveniente e a Ré D, com base da matéria de facto provada;
r) Ora, se não for permitido que o estabelecimento de maternidade e de paternidade seja feita através da declaração judicial, ficaríamos sem saber qual seria o efeito principal da impugnação de maternidade e de paternidade, feita em juízo, por que se declarar mãe do registado e por que se declare pai do perfilhado;
s) Deve considerar que a Recorrente e o seu marido, o ora Interveniente E, têm legitimidade activa na acção de impugnação de maternidade e de paternidade, nos termos dos artigos 1665.º n.º 1 alínea c) e 1710.º n.º 2, ambos do CC;
t) Por último, deve a decisão recorrida ser revogada, e consequentemente ser declarada estabelecidas a maternidade e a paternidade entre o ora Recorrente, o Interveniente e a Ré D.

IV. PEDIDO
1.º Deve dar-se provimento ao presente recurso, e consequentemente revogar a decisão do Tribunal Judicial de Base; e
2.º Declarar estabelecida a maternidade e a paternidade entre o ora Recorrente, o Interveniente e a Ré D.

Notificados das alegações de recurso, nenhum dos sujeitos processuais respondeu.

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

A única questão que a Autora, ora recorrente, coloca-nos, em sede de recurso, consiste em saber se a Autora tem legitimidade activa para instaurar a presente acção.

Então vejamos.

Pretende, com a instauração da presente acção, impugnar tanto a paternidade como a maternidade estabelecidas e constantes do registo de nascimento da Ré D, segundo o qual são pais B e C.

Para o efeito, alega que são verdadeiros pais biológicos ela própria e o seu cônjuge E.

E pede na hipótese da procedência da impugnação, que se ordene o cancelamento do registo de nascimento da Ré D na parte respeitante à paternidade e à maternidade, e em substituição, se faça passar a constar do registo o seu cônjuge E e ela própria como pai e mãe de D, respectivamente.

Para o Tribunal a quo, face ao disposto quer no artº 1673º quer no artº 1719º do CPC, só o filho tem a legitimidade activa para a propositura da acção para o estabelecimento da maternidade e da paternidade, e por isso, a Autora, enquanto mãe, para tal não tem legitimidade activa.

Dispõe o artº 1673º do CC que quando não resulte de declaração, nos termos dos artigos anteriores, a maternidade pode ser reconhecida em acção especialmente intentada pelo filho para esse efeito.

Este artigo visa a regular as situações, não muito frequentes, senão raras, em que a maternidade não foi estabelecida “normalmente”.

Como se sabe, na maioria das situações, a maternidade estabelece-se logo após o nascimento do filho mediante a indicação da identidade da mãe feita pelo declarante do nascimento junto da conservatória competente, nos termos prescritos no artº 1658º do CC.

Também por vezes, é necessário mover uma averiguação oficiosa, nos termos prescritos nos artºs 1667º e s.s. do CC, por ter sido feita declaração de nascimento sem menção da maternidade.

Mesmo assim, o nosso legislador tem ainda o cuidado de assegurar ao filho o direito à sua identidade pessoal, através do meio judicial do reconhecimento judicial da maternidade, regulado nos artºs 1814º e s.s. do CC, nos raros casos em que a falta da menção da maternidade é seguida do inêxito da averiguação oficiosa.

O que significa que se trata de um meio judicial ao dispor do filho, investigante, para conhecer a sua identidade pessoal, nas situações em que a sua maternidade não foi estabelecida.

In casu, a maternidade já se encontra estabelecida com base na identidade mencionada na declaração de nascimento e a Autora, alegando ser mãe biológica, pretende afastar a maternidade estabelecida com fundamento na falsidade da indicação.

Portanto, é de concluir que não é o meio idóneo para tal o reconhecimento judicial da maternidade regulado nos artºs 1673º e s.s. do CC.

Assim sendo, a legitimidade activa não deve ser avaliada de acordo com o artº 1673º do CC.

E por sua vez, o artº 1719º diz que a paternidade pode ser reconhecida em acção especialmente intentada pelo filho.

Ora, este artigo visa conferir o direito à identidade pessoal ao filho, nascido fora do matrimónio, cuja paternidade não tiver sido estabelecida e registada por qualquer de outros modos permitidos pela lei, nomeadamente a averiguação oficiosa da paternidade e a perfilhação.

Igualmente o reconhecimento judicial da paternidade não é bem um meio idóneo para impugnar a paternidade já estabelecida e registada, como sucede in casu com a Ré D.

Portanto, salvo o devido respeito, não acolhemos o entendimento do Tribunal a quo.

Ora, pretende a Autora impugnar quer a paternidade e a maternidade de D, já estabelecidas e registadas.

No fundo, a presente acção pode desdobrar-se em duas acções, uma para a impugnação da paternidade e a outra para a impugnação da maternidade.

De acordo com o teor da causa de pedir configurada pela Autora, a paternidade e maternidade da Ré D, constantes do seu registo de nascimento, foram estabelecidas mediante a declaração do nascimento de D, prestada por B, que identificou ele próprio como pai e o seu cônjuge C como mãe.

Comecemos pelo exame da legitimidade activa da Autora para a impugnação da maternidade.

1. Legitimidade activa para impugnar a maternidade

De acordo com a relação controvertida configurada pela Autora, foi o Réu B quem declarou o nascimento da Ré D e indicou o seu cônjuge C como mãe.

Assim, face ao disposto no artº 1803º/1 e 2 do CC então vigente, correspondente ao artº 1658º/1 e 2 do vigente CC, a tal declaração indicando a identidade da mãe é suficiente para o estabelecimento da maternidade da Ré D.

Cremos que foi justamente com base na mera indicação contida na declaração feita por B, que se lavrou o registo de nascimento de D com a menção da tal maternidade.

Agora, a invocada mãe biológica, ora Autora, pretende afastar a maternidade mediante a demonstração de que a maternidade fundada na mera declaração não corresponde à verdade.

Importa saber se a mãe biológica tem legitimidade activa para tal.

Na matéria de legitimidade, a nossa lei processual estabelece a regra geral segundo a qual é parte legítima no processo declarativo a pessoa que é sujeito da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor – artº 58º do CPC.

Ao lado dessa regra genérica de que a legitimidade das partes advém da sua posição de sujeitos da relação controvertida, há numerosos casos em que a lei estatui especificamente quem tem legitimidade para intentar certas acções.

Um desses casos é justamente o de impugnação da maternidade, regulado nos artºs 1665º e s.s. do CC.

Na matéria de legitimidade activa para a propositura da acção de impugnação da maternidade, dispõe o artº 1665º/1 do CC que:

1. Se a maternidade estabelecida nos termos dos artigos anteriores não for a verdadeira, pode ser impugnada em juízo:
a) Pela pessoa declarada como mãe;
b) Pelo registado;
c) Por quem se declarar mãe do registado;
d) Pelo pai;
e) Por quem tenha interesse moral ou patrimonial na procedência da acção; ou
f) Pelo Ministério Público.

In casu, atendendo à forma, descrita na causa de pedir, como foi estabelecida a maternidade, a Autora, ora recorrente, que alega ser mãe biológica, não se integra em qualquer das categorias previstas nas al. a) a d).

Resta saber se a mãe biológica é integrável na categoria das pessoas a que se refere a al. e), ou seja, aqueles que tenham interesse moral ou patrimonial na procedência da acção da impugnação da maternidade estabelecida.

Parece que sim.

Na verdade, para nós, do simples facto de ser a mãe biológica já deve fazer presumir, de per si, pelo menos, o interesse moral, consistente na pretensa afectividade por laço sanguíneo, na impugnação da falsa maternidade estabelecida, com vista a repor a verdadeira maternidade.

O que, cremos nós, é suficiente para nos levar a reconhecer a legitimidade activa à Autora, ora recorrente, no caso em apreço – no mesmo sentido, defendem Pires de Lim e Antunes Varela, in CPC anotado, vol. V, pág. 55, no ponto 5 das anotações ao artº 1807º.

Passemos então a debruçar-nos sobre a legitimidade activa da Autora para a impugnação da paternidade.

2. Legitimidade activa para impugnar a paternidade.

De acordo com a forma, descrita na petição inicial, como foi feita declaração do nascimento de D na conservatória competente, o registo do nascimento foi lavrado justamente com base na declaração feita pelo Réu B que se declarou ser marido da pessoa indicada como mãe.

Assim sendo, a paternidade deve ter sido estabelecida nos termos do artº 1826º/1 do CC então vigente, que corresponde ao artº 1685º/1 do CC vigente, à luz do qual se presume que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio tem como pai o marido da mãe.

A matéria de legitimidade activa para a propositura da acção de impugnação da paternidade estabelecida nestes termos com fundamento na sua falsidade, encontra-se regulada no artº 1697º/1 do CC, que reza:

1. Se a paternidade presumida nos termos do artigo 1685.º não for a verdadeira, pode ser impugnada em juízo:
a) Pelo presumido pai;
b) Pelo filho;
c) Pela mãe;
d) Por quem se declarar pai do filho;
e) Por quem tenha interesse moral ou patrimonial na procedência da acção; ou
f) Pelo Ministério Público.

Ao contrário do que sucede com a legitimidade activa para a impugnação da maternidade, a lei atribui especificamente legitimidade activa à mãe para a impugnação da paternidade.

Portanto, indubitavelmente é de reconhecer à Autora, ora recorrente, mesmo não associada pelo interveniente, seu cônjuge e alegado pai biológico, a legitimidade activa para a instauração da presente acção para a impugnação da paternidade e maternidade, e o consequente cancelamento do registo na parte a elas respeitante.

Há que portanto revogar a decisão recorrida na parte que absolveu os Réus da instância com fundamento na ilegitimidade activa da Autora.

Procede o primeiro pedido do recurso.

A par desse pedido, a recorrente também pediu, em sede de recurso, a declaração do estabelecimento da maternidade entre ela própria e a Ré D e da paternidade entre o seu cônjuge E e a mesma Ré D.

Normalmente falando, na hipótese da procedência de recurso das decisões que não conheçam do mérito da causa, o Tribunal revogará a decisão recorrida e determinará a baixa dos autos à para que continue a marcha processual no Tribunal a quo.

Em princípio, não é de atender o pedido do conhecimento do mérito da causa.

Só que, existe in casu uma particularidade que merece a nossa ponderação.

É que por razões da ordem processual que se prendem com a repartição das competências entre o Juiz titular do processo e o Juiz Presidente do Colectivo autor da sentença, a acção só veio a ser “tardiamente indeferida”, com fundamento na ilegitimidade activa, numa fase processual em que já tinha sido julgada e decidida a matéria de facto.

Ou seja, sob ponto de vista puramente técnico, este Tribunal de recurso está habilitado a substituir-se ao tribunal a quo para proferir a decisão de direito de acordo com a matéria de facto já fixada na primeira instância.

Importa averiguar, sob ponto de vista jurídico, se este tribunal de recurso tem competência para conhecer directamente do mérito da causa.

Ao contrário do que se sucede com o CPC anteriormente vigente, já não existe no actual CPC a distinção entre agravo e apelação na matéria da disciplina dos recursos para o Tribunal de Segunda Instância, apesar de existirem regras específicas para um ou outro tipo de recursos.

Pois, na matéria desses recursos, o CPC vigente fá-los sujeitar à mesma disciplina geral, quer os que têm por objecto decisões que conheçam do mérito da causa, quer os que visam atacar decisões que não conheçam do mérito da causa.

Portanto, é de se aplicar ao presente recurso a regra da substituição, consagrada no artº 630º do CPC, uma vez que esta regra se encontra justamente inserida na disciplina geral dos recursos para o Tribunal de Segunda Instância.

Todavia, isso não quer dizer que, por força da regra da substituição, no caso em apreço, este Tribunal se habilita juridicamente a conhecer imediatamente o mérito da causa.

Para nós, atendendo às circunstâncias concretas do caso em apreço, a regra da substituição não deve ser interpretada no sentido de que se deve impor a este Tribunal de recurso, na sequência da revogação da decisão recorrida que determinou a absolvição da instância com fundamento na ilegitimidade activa da Autora, mais do que a prolação de uma decisão, em substituição do Tribunal a quo, no sentido de julgar imediatamente a Autora parte legítima para a propositura da presente acção.

Ou seja, só haveria a inobservância da regra da substituição se este Tribunal de recurso, na sequência da revogação da sentença recorrida, se se recusasse a julgar desde logo a Autora como parte legítima e se limitasse a determinar à primeira instância que substituísse a sua sentença por outra reconhecendo à Autora a legitimidade activa para a propositura da presente acção.

A não entender assim, ou seja, se nos debruçássemos logo sobre o mérito da causa, estaríamos a proceder à supressão, tão violenta que se não justifica com o pretexto da necessidade da tutela da celeridade processual subjacente à regra da substituição, de um grau de jurisdição para permitir a este Tribunal de Segunda Instância conhecer do mérito de causa que nunca passou pela cabeça do Juiz a quo, e ainda pior é que no presente caso em particular, o conhecimento imediato do mérito da causa implicará a privação do direito de impugnar a matéria de facto por via de recurso, uma vez que, não obstante a admissibilidade do recurso da nossa decisão, o Tribunal de Última Instância não conhece da matéria de facto.


Em conclusão:

1. A mãe biológica tem legitimidade activa para a propositura da acção para impugnar cumulativamente a maternidade e paternidade do filho, estabelecidas e registadas, com base nas identidades inverídicas dos pais indicadas na declaração de nascimento.

2. Na procedência do recurso que tem por objecto a sentença que absolveu o Réu da instância com fundamento na ilegitimidade activa do Autor e na sequência da revogação da decisão recorrida, o Tribunal ad quem deve, por força da regra da substituição consagrada no artº 630º do CPC, proferir a decisão, em substituição do Tribunal a quo, no sentido de julgar imediatamente o Autor parte legítima, e não apenas determinar à primeira instância que substitua a sua sentença por outra reconhecendo à Autora a legitimidade activa.

Tudo visto, resta decidir.
III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam julgar procedente o recurso:

* revogando a sentença na parte que absolveu os Réus da instância;

* reconhecendo a legitimidade activa à Autora para a propositura da acção; e

* determinando ao Tribunal a quo que profira a decisão de direito de acordo com a matéria de facto fixada.

Sem custas.

Registe e notifique.

RAEM, 15MAR2018
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
(voto a decisão, afigurando-se, porem, que a legitimidade do Autor a poderia enquadrar-se directamente na al. c) do n.°1 do art.° 1665° do C.C.)
Ac. 395/2016-1