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Proc. nº 737/2017
Relator: Cândido de Pinho
Data do aresto: 19 de Abril de 2018
Descritores:
- Usucapião
- Ocupação por tolerância
- Posse e mera detenção

SUMÁRIO:

I – Sem a prova da intenção da posse em nome próprio e com a intenção de adquirir, não é possível a aquisição originária pela via da usucapião.

II – A mera detenção por tolerância do dono não pode conduzir à usucapião. A ocupação de uma fracção por alguém com autorização temporária por outrem, seu dono, é feita a título de mera detenção (art. 1177º, al. b), do CC), razão pela qual, sem animus possidendi, não é possível a aquisição originária pela usucapião (art. 1212º, do CC).

Proc. nº 737/2017

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I - Relatório
A, titular do BIR n.º XXX, residentes em Macau, XXX, instaurou no TJB (Proc. nº CV3-14-0024-CAO) acção com processo ordinário contra---
1º- B, titular do BIR n.º XXX, falecido, mas substituído pelos seguintes herdeiros habilitados:---
- C, titular do BIR n.º XXX, residente em Macau,XXX;
- D, titular do BIR n.º XXX, residente em Macau, XXX;
- E , titular do BIR n.º XXX, residente em Macau, XXX;
- F, titular do BIR n.º XXX, residente em Macau, XXX;
- G , titular do BIR n.º XXX, residente em Macau, XXX;
2º - H, titular do BIR n.º XXX, em parte incerta;
3 º - I, titular do BIR n.º XXX, residente em Macau, XXX; e
4 º- Interessados incertos (其他不確定利害關係人)
Concluiu a petição inicial, pedindo a procedência da acção e a consequente condenação dos Réus na entrega de uma fracção autónoma que identifica.
*
Foi na oportunidade proferida sentença, que julgou parcialmente procedente a acção, mas improcedente a reconvenção, e condenou os RR e interessados incertos a reconhecerem o Autor como dono e legítimo proprietário da fracção, ordenando a respectiva entrega.
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Contra esta sentença vieram os RR, à excepção do 2º H, apresentar recurso jurisdicional, em cujas alegações formularam as seguintes alegações:
«A - Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos presentes autos, pela qual o Tribunal a quo julgou parcialmente procedente a acção e improcedente o pedido reconvencional deduzido pelos Réus e ora Recorrentes.

B - Com tal decisão não se podem os ora Recorrentes conformar, por entenderem que a mesma padece de erros de julgamento sobre a matéria de facto que, a final, deverão motivar a alteração do sentido da decisão proferida.
C – Todas as testemunhas ouvidas no processo referiram que o Autor tinha procedido a empréstimos ao 1º Réu, irmão do Autor e presentemente já falecido, pelo que não entendem os Recorrentes como o Tribunal a quo não deu qualquer relevância a tal facto e, pelo contrário, deu tal facto como não provado.
D - Entendem os Recorrentes que a sentença recorrida padece de nulidade por oposição dos fundamentos com a decisão (art. 571.º, n.º 1, al. c) do C.P.C.), nulidade essa que deve impor a revogação da sentença, na medida em que os Recorrentes lograram ilidir a presunção de proprietário de que beneficia o Autor, porquanto foi dado como não provado que o 1º Réu tenha concordado vender a casa ao Autor (resposta ao quesito 2º da base instrutória).
E - Trata-se de um facto essencial invocado pelo Autor, donde atendendo aos demais factos apreciados e assentes nos autos, não se percebe, fica sem resposta, o como e o porquê de a fracção em causa nos presentes autos ter sido posta em nome do Autor, se, como visto, o Tribunal deu como não provado que o 1º Réu quisesse ter vendido a fracção ao Autor.

F - Da análise da matéria de facto assente em C) e D), bem como dos factos provados em resposta aos quesitos 4.º e 14.º e do facto não provado em resposta ao quesito 2º da base instrutória, apontam em sentidos contraditórios, pelo que não se percebe como o Tribunal a quo funda a sua conclusão no sentido de o Autor ser o titular do imóvel com base na presunção que resulta do registo. Com efeito, não há base factual para o Tribunal a quo ter considerado que o Autor adquiriu a casa por compra e venda, se o próprio Tribunal deu como não provado que o 1º Réu tenha concordado vender a fracção ao Autor.
G - Acresce que, nos termos do disposto no art. 599.º, n.º 1, al. a) do C.P.C., analisada a prova produzida em sede de audiência de julgamento e devidamente documentada, é possível concluir que foram incorrectamente julgados o quesito 1.º (apenas quanto ao valor de aquisição da fracção), bem como os quesitos 13.º,15.º,16.º,17.º,18.º,19.º, 24.º e 25.º
H - Quanto ao quesito 1.º, perante o documento junto como doc. 1 da contestação, entendem os Recorrentes que o Tribunal deveria ter dado o referido quesito como provado, como deu efectivamente, mas corrigindo o valor para HKD$420,000.00.
I - Quanto ao quesito 13.º dado como Não Provado, entendem os Recorrentes que o mesmo deveria ter sido dado como Provado, tal é o que resulta da certidão do registo predial do imóvel, com inscrições em vigor e não em vigor, que os Recorrentes pensavam que já ter sido junta aos autos, mas que ora juntam como Doc. 1. Uma vez que o documento cuja junção ora se requer não é um documento novo, mas antes um documento já junto aos autos, quer pela Autora, quer pelos próprios Réus, com a única diferença que tem também as inscrições não em vigor, requer-se a V. EX.a que admita a sua junção ao presente recurso.
J - Quanto aos quesitos 15.º, 16.º, 17.º, 18.º e 19.º dados como Não Provados, entendem os Recorrentes que o mesmo deveriam ter sido dado como Provados, com base na prova testemunhal acima identificada nas alegações.
K - Sendo que, no que diz respeito ao quesito 15.º, admitindo embora os Recorrentes que não resultou da prova produzida em julgamento os montantes concretamente emprestados pelo Autor ao 1º Réu, em resposta ao quesito 15º o Tribunal a quo deveria ter dado como PROVADO que, na sequência do pedido de ajuda do 1º Réu, o Autor emprestou-lhe dinheiro.
L - Quanto aos quesitos 24.º e 25.º dado como Não Provados, entendem os Recorrentes que o mesmo deveriam ter sido dado como Provados, com base nas declarações das testemunhas J e K, ouvidos na sessão de julgamento de 17.11.2016, às 11.20.06 (gravação 1ZEUIU0100711270), os quais disseram peremptoriamente ao Tribunal que o 1º Réu e a sua família eram os donos da casa, que se comportavam e que eram reconhecidos como tal por todos os vizinhos e moradores do Bairro.
M - Na verdade, o Tribunal deu tais quesitos como não provados, com base numa questão de direito, isto é, por ter de antemão considerado que os Réus não têm o animus de possuidores do imóvel, mas tão só de meros detentores. Todavia, como adiante se verá, entendem os Recorrentes que tal asserção do Tribunal a quo, no caso, afigura-se incorrecta, pelo que, com base nos depoimentos das testemunhas, deverão os quesitos 24º e 25º ser dados como provados.
N - Sem prescindir do acima exposto, entendem os Recorrentes que o Tribunal a quo declarou improcedente o pedido reconvencional com base no entendimento de que os Réus e ora Recorrentes, tendo embora o corpus que caracteriza a posse, não têm o animus que a caracteriza, na medida em que serão meros detentores do imóvel em apreço nos autos. Os Recorrentes discordam de tal entendimento do Tribunal a quo, na medida em que nada resulta dos autos, nem mesmo da resposta ao quesito 5º da base instrutória que os Réus tivessem, a partir da data da cessão da posição contratual a favor do Autor, alterado o seu comportamento em relação à fracção objecto dos autos.
O - No entender dos Réus e ora Recorrentes os actos materiais por si praticados, tal como provados em resposta aos quesitos 20º, 21º, 22º e 23º da base instrutória, excedem o comportamento de um mero detentor do imóvel, sendo antes actos demonstrativos de que os mesmos se vêm comportando, à vista de todos e sem oposição, como verdadeiros proprietários do imóvel.
P - Pelo que, no entender dos Recorrentes, no caso em concreto, o Tribunal fez uma incorrecta interpretação e aplicação do disposto nos arts. 1175.º e 1177º, al. b) do Código Civil.
Termos em que, e com o douto suprimento de V. Ex.ªs, deverá o recurso interposto ser declarado procedente e, em consequência, ordenada a revogação da decisão recorrida, substituindo-se por outra que declare improcedente a acção e procedente o pedido reconvencional, declarando-se que a fracção autónoma objecto dos presentes autos, para todos os efeitos legais e inclusivamente para efeitos de registo, pertencente aos ora Recorrentes, por a terem adquirido por usucapião.
Decidindo assim farão Vossas Excelências JUSTIÇA!
*
O autor respondeu ao recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos conclusivos:
«A. Face à prova testemunhal e documental o A. recorrido é o proprietário da fracção autónoma em litígio.
B. Não há contradição entre os fundamentos e a decisão proferida em sentença pelo Meritíssimo Juiz A Quo, pelo que não assiste razão aos R.R. recorrentes ao invocar a nulidade da sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz A Quo.
C. O pedido reconvencional pedido pelos R.R. recorrentes não faz sentido, considerando que esses são apenas meros detentores da fracção autónoma cujo direito de propriedade pertence ao A. recorrido.
D. Pela prova feita os R.R. recorrentes beneficiaram da tolerância do A. recorrido, que, considerando as dificuldades financeiras dos R.R, permitiu que estes permanecessem na referida fracção autónoma durante algum tempo.
E. O A. recorrido, como verdadeiro proprietário da referida fracção autónoma, tem o direito de em qualquer altura chamar a si o direito de propriedade da fracção autónoma e que esta lhe seja entregue.
Pelos fundamentos das presentes alegações vem o A. recorrido requerer a V.Exas que seja mantida a douta sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz A Quo, em todo o seu conteúdo e respectivos fundamentos.
Assim farão V. Exas a necessária e desejada Justiça!».
*
Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
«Da Matéria de Facto Assente:
- A fracção autónoma, sita em Macau, XXX, melhor ido a fls. 14 e ss. dos autos, cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos, encontra-se inscrita a favor do A. (inscrição nº ZZZ) e na sequencia do contrato de compra e venda titulada por escritura de 21/05/1999 (cfr. fls. 18). (alínea A) dos factos assentes)
- O 1º R. e esposa, I e um outro filho, habitam a referida fracção desde Novembro de 1992. (alínea B) dos factos assentes)
- Para poder adquirir o imóvel ido em A), o 1º Réu pediu um empréstimo ao Banco da China no valor de HK$130,000.00. (alínea C) dos factos assentes)
- No dia 11 de Novembro de 1992, o 1º R. assinou um contrato-promessa de compra e venda para compra da fracção identificada em A). (alínea D) dos factos assentes)
Da Base Instrutória:
- No contrato mencionado em D), o 1º Réu prometeu comprar o referido imóvel pelo valor de MOP$311,760.00. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- No dia 13 de Janeiro de 1999, o 1º R. cedeu a sua posição contratual no contrato referido em 1º ao A. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- Na data da escritura referida em A), o 1º R. tinha dificuldades financeiras. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- O Autor concordou que o 1º Réu ficasse a viver na fracção. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- O Autor pediu ao R. para desocupar a fracção. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- O R. não devolveu a fracção autónoma ao A. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
- A partir de 2011 até 2014, o A. insistiu por várias vezes com o 1º R. para que este lhe devolvesse a fracção autónoma. (resposta ao quesito 9º da base instrutória)
- Em Janeiro de 2014, o A. se deslocou à fracção autónoma. (resposta ao quesito 11 º da base instrutória)
- Por dificuldades financeiras no início de 1999, o 1º Réu decidiu pedir ajuda ao Autor. (resposta ao quesito 14º da base instrutória)
- Desde a data referida em B) que é o 1º R. quem procede ao pagamento dos consumos de electricidade, água, gás, televisão e demais despesas relativos à fracção id. em A). (resposta ao quesito 20º da base instrutória)
- Desde Novembro de 1992 é o 1º Réu que procedeu a algumas reparações e obras de conservação na fracção id. em A). (resposta ao quesito 21º da base instrutória)
- O 1º R. habita e pratica os actos referidos à vista de toda a gente. (resposta ao quesito 22º da base instrutória)
- ... sem oposição de quem quer que seja. (resposta ao quesito 23º da base instrutória)».
***
III – O Direito
1 – A situação material dos autos, tal como ela veio configurada inicialmente era esta:
O autor dizia-se dono de uma fracção habitacional autónoma, que está a ser ocupada pelos RR, os quais se negam a entregarem-lha, apesar de para tal terem sido interpelados.
Esta fracção, de acordo com a tese do demandante, fora objecto de um contrato de promessa de aquisição por parte do 1º réu, que era seu irmão, entretanto falecido na pendência da acção. Mas, como não tinha dinheiro no momento da compra e venda, concordou que ela fosse vendida ao A, que a teria comprado efectivamente em 21/05/1999.
O autor deixou o 1º réu a viver na fracção por uns tempos, até organizar a sua vida. Mas este não mais dela saiu, apesar da insistência do A. nesse sentido.
*
O 1º réu apresentou outra versão. Diz:
Foi ele quem quis adquirir a fracção, tendo inclusive pedido dinheiro ao banco, mas, como a sua situação económica piorou, pediu ajuda ao irmão, autor da acção. O autor emprestou-lhe duzentas e cinquenta mil patacas, tendo ele prometido que a fracção passaria posteriormente para o nome do réu mediante a garantia do reembolso do empréstimo. O autor, entretanto, registou o imóvel em seu nome.
O autor nunca aceitou a devolução de qualquer montante emprestado.
Face a esta matéria, em reconvenção, acha-se com direito ao reconhecimento do direito de propriedade sobre a fracção por usucapião.
*
2 – Como se viu, a sentença, face aos factos provados, entendeu que a fracção pertence ao autor e, em consequência, ordenou aos réus (excepto quanto ao 2º) a sua entrega ao A.
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3 – Da nulidade da sentença
Vêm agora os RR recorrer, começando por suscitar a nulidade da sentença, com fundamento na oposição entre fundamentos e decisão (art. 571º, nº1, al. c), do CPC).
Acham estranho que o tribunal considerasse que a fracção tivesse sido “posta” em nome do autor, apesar de ter dado como não provado que o 1º réu a quisesse vender-lha (art. 2º da base instrutória).
Por outro lado, entendem que, tendo o tribunal dado como provado que o 1º réu (entretanto falecido) tinha assinado um contrato de promessa de compra da fracção (al. A) dos factos assentes) e que atravessava dificuldades na data da escritura referida em A) e que, por causa dessas dificuldades económicas, pediu ajuda ao 1º réu (arts. 4º e 14º da base instrutória), existe incongruência entre esta fundamentação e a decisão judicial de reconhecer ao autor a propriedade da casa, por um lado, e de, por outro lado, não considerar terem os RR elidido a presunção de propriedade a favor do autor.
Quanto a esta arguição, cremos que ela não pode proceder.
Temos para nós que a ausência de prova ao art. 2º da BI não pode, por si só, ser geradora de nenhuma demonstração do contrário do que ali se quesitava.
Com efeito, nele se perguntava se “ No momento da compra e venda referida em A. o 1º réu não teve dinheiro suficiente para pagar a fracção autónoma, e concordou que essa mesma fracção autónoma fosse vendida ao A”.
Ora, todo o quesito estava orientado para a prova de um facto reportado a um determinado momento (que é o momento da compra e venda). Assim, a circunstância de não se ter provado que, nesse momento, o 1º réu não tivesse dinheiro, nem que tivesse concordado em que a fracção fosse vendida ao autor, não significa automática e necessariamente que ele não se tivesse conformado com tal venda ao autor em momento posterior.
É certo, por outro lado, que o 1º réu contraiu um empréstimo junto do autor, o que pode inculcar que estava interessado em adquirir realmente a casa.
Então, qual a razão pela qual aparece ela comprada pelo autor? Bem, isso pode parecer estranho e poderia até encaminhar-nos para a ideia de que a tese do 1º réu levada à contestação era lógica, coerente e verosímil.
Só que isso não significa que a sentença tenha cometido alguma contradição. O que pode ter havido é, simplesmente, erro de julgamento que afecta, porventura, o enquadramento jurídico e a respectiva solução decisória. Isso se verá mais adiante, mas por ora o que há a concluir é que não se vislumbra qualquer contradição que produza a apontada nulidade, pelo que nesta parte o recurso é de julgar improvido.
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4 – Do erro de julgamento da matéria de facto
Na 2ª parte da peça alegatória os recorrentes acham que o tribunal “a quo” avaliou mal as provas sobre a relação material controvertida.
Estão em causa os arts. 1º, 13º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 24º e 25º da base instrutória.
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4.1 – Comecemos pelo art. 1º.
Nele perguntava-se: “No contrato mencionado em D) o 1º Réu prometeu comprar o referido imóvel pelo valor de MOP$ 311.760,00?”
A resposta foi: “Provado”.
Entendem que a resposta está certa, menos no que se refere ao valor, que para si deve ser de HK$ 420, 000,00”, conforme documento de fls. 60.
Em nossa opinião, contudo, a resposta não deve alterar-se.
Efectivamente, o quesito formulado era no sentido de indagar se o contrato mencionado em D) tinha sido celebrado pelo valor de MOP$ 311.760,00. Ora, a matéria da alínea D) dos factos assentes dava conta de que, no dia 11 de Novembro de 1992, o 1º R assinou um contrato-promessa de compra e venda da fracção em causa. Faltava apenas a comprovação do valor. Mas, sendo assim, a resposta está correcta. É que o documento de fls. 13 dos autos corresponde precisamente ao contrato de promessa e à data constante da referida alínea D).
Em contrapartida, o documento junto com a contestação a fls. 60, que não é sequer datado, embora também tenha a designação de contrato de promessa, apresenta como vendedor a identidade de Chan Ip Lan, diferente da que consta como alienante no de fls.13.
Portanto, a conexão entre o teor literal da alínea d) da especificação e a remissão que nele é feita no quesito 1º leva-nos a aceitar o valor mencionado no documento de fls. 13. Repare-se: não seria possível dar como provado que o valor do contrato de fls. 13 era o de fls. 60, sob pena de contradição insanável.
Nesse sentido, não há que alterar a resposta dada pelo colectivo julgador.
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4.2 – No art. 13º perguntava-se:
“Na sequência do referido em C o 1º R. deu de hipoteca a fracção id. em A ao BOC?”
A resposta foi negativa.
Entendem os recorrentes que o quesito deveria ter sido dado como provado, com base nas inscrições em vigor e não em vigor, conforme documentos juntos aos autos e documento nº1 ora junto.
Cremos que têm razão, não porque a 1ª instância tivesse julgado mal esta matéria (pois na verdade, os documentos registrais não incluíam este dado, nem as testemunhas tinham possibilidade de provar um facto que, pela sua natureza, é de prova documental), mas porque o documento ora junto é revelador do que se quesitava no art. 13º.
Assim, daremos como provado este quesito ao abrigo do art. 629º, nº1, al. b) e c), do CPC.
*
4.3 – No art. 15º perguntava-se:
“Na sequência do pedido de ajuda do 1º réu, o Autor emprestou-lhe um total de MOP$ 250.000,00”
A resposta foi negativa.
Os recorrentes acreditam que deveria ser dado como provado, face ao depoimento das testemunhas L (testemunha do autor e seu irmão) e K (testemunha dos RR).
Quanto a esta matéria, depois de ouvida a gravação dos depoimentos prestados em audiência (em particular da testemunha L e de M, irmãos igualmente do autor e do falecido B), somos a concluir que, realmente, o autor chegou a emprestar ao réu uma quantia em dinheiro em montante não apurado. Não se sabe, ao certo, se esse pedido de ajuda era para o irmão (1º réu já falecido) prover à satisfação de necessidades familiares, se para acudir ao seu negócio de peixe, se para, eventualmente, efectuar algum pagamento de parte do preço da aquisição da casa onde vivia, até mesmo se para jogar no casino (pois, segundo a testemunha M, o irmão padecia desse tipo de vício). Nada acerca do montante e da causa do empréstimo ficou apurado. Apenas se sabe que sim, que houve um empréstimo.
Razão pela qual daremos como provado o seguinte:
“Provado apenas que, na sequência do pedido de ajuda do 1º réu, o Autor emprestou-lhe dinheiro”.
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4.4 – Nos arts. 16º e 17º da BI perguntava-se:
16º: “Por acordo entre o 1º R e o A., o imóvel passaria para o nome do Autor, através da compra, como garantia de que o Réu lhe reembolsaria o montante emprestado?”
17º: “Nos termos do acordo verbal celebrado entre o 1ª Réu e o Autor, o 1º Réu devolveria o dinheiro emprestado ao Autor logo que o tivesse, altura em que o Autor mudaria novamente o nome do apartamento para o do 1ª Réu?”
Ora bem. O tribunal “a quo” que procedeu ao julgamento da matéria de facto não deu esta matéria como provada e deu a justificação que consta do respectivo acórdão.
Este TSI nada tem a censurar sobre o modo como estes quesitos foram respondidos. Com efeito, as pessoas que, por razões perfeitamente compreensíveis, estariam em melhor posição para nos convencerem da existência deste acordo entre A. e 1º R. seriam os próprios irmãos depoentes. Mas eles, ou desconheciam o acordo, ou não quiseram tomar posição quanto a esta questão. Apenas M admitiu que tivesse havido um acordo entre A e R, mas até seria no sentido de que a casa adquirida pelo Autor, e que o 1º Réu passou a habitar por autorização daquele, lhe seria devolvida logo que este arranjasse uma casa de habitação social/económica. Quanto ao acordo a que se referem os artigos, ninguém mostrou conhecer a respectiva matéria.
*
4.5 – Nos arts. 18º e 19º perguntava-se:
18º: “No decurso de 2010 o 1º Réu dirigiu-se ao Autor para lhe devolver a quantia emprestada?”
19ª: “ …tendo o A. recusado receber a devolução de qualquer montante?”.
Esta matéria não ficou provada. Com efeito, embora o irmão L tivesse referido a existência de um cheque no valor de cem mil patacas, emitido pelo irmão falecido, e que ele mesmo, como intermediário dos dois, tentou levantar, tratar-se-ia de um cheque antigo, já caducado e que não chegou a ser pago por falta de provisão.
Quanto à razão de ser da emissão deste cheque, ou seja, se ele servia para pagar parte ou a totalidade do empréstimo concedido pelo A. ao 1º réu, nada se ficou a saber.
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4.6 – A matéria dos artigos 24º e 25º era esta:
Art. 24º: “…e com a convicção de assim praticar actos correspondentes aos de proprietário?”
Art. 25º: “Sendo o 1º Réu reconhecido por todos como sendo o proprietário da mesma?”
Esta factualidade foi invocada, a par de outra que foi dada como provada (arts. 20º, 21º- parcialmente -, 22º e 23º), pelos réus na tentativa de provar a matéria da reconvenção, que tinha em vista a demonstração da aquisição originária pela via da usucapião.
Quanto a esta matéria, porém, o tribunal “a quo” não entendeu que ela tivesse sido provada, uma vez que, em contrapartida, considerou provada a aquisição da casa pelo Autor, o qual, face às dificuldades económicas do seu irmão, 1º réu, permitiu que nela permanecesse com a sua família.
E assim, considerou que o Réu não estava a ocupar a casa com animus de proprietário, mas sim como mero detentor de uma bem que pertencia a outrem.
Não se pode, portanto, aceitar a prova proposta pelos recorrentes acerca desta factualidade, pois, em boa verdade, nenhuma testemunha foi capaz de afirmar peremptoriamente que esta era uma posse em nome próprio.
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5 – Da subsunção dos factos ao direito
O que resta do julgamento?
A circunstância de o 1ª réu ter pedido um empréstimo ao Banco da China para poder adquirir o imóvel (alínea C) dos factos assentes) e de ter mesmo assinado um contrato de promessa de compra e venda da fracção (alínea D) e resposta ao quesito 1º), apenas revela que ele pensou e quis adquiri-la.
Mas, certo é também que cedeu a sua posição contratual ao Autor (resposta ao quesito 3º), o qual a viria a adquirir através do respectivo contrato de compra e venda (alínea A)), sendo verdade ainda que na data para a escritura definitiva de compra e venda ele, réu, atravessava dificuldades (resposta ao quesito 4º).
O que se passou, então, entre estes irmãos (A. e 1º R.)?
Algo se terá passado, certamente.
O autor “emprestou “somente o seu nome na escritura de compra e venda, porque o irmão, 1º réu, não estava em condições de efectuar o pagamento?
Nesse pressuposto, acordaram que o autor iria mais tarde passar a casa para o nome do 1ª réu, logo que este lhe devolvesse o dinheiro que lhe emprestou?
- Se existiu este acordo, o autor não o chegou a cumpri-lo?
Esta posição tem coerência, é lógica e abstractamente verosímil. Porém, não ficou demonstrada.
Outra possibilidade seria a de:
Face à indiscutível situação de carência do 1ª réu, que o impossibilitava de adquirir a fracção, será que este se desinteressou dela e permitiu que definitivamente o autor a comprasse para si, embora na condição de lá poder o 1º réu ficar a viver com a sua família?
Nada se sabe; um mar de dúvidas! Quem lê os articulados apresentados pelas partes fica com a sensação de que se zangaram os irmãos e que uma das partes está a mentir. Sim, alguém mentirá neste caso e é lamentável chegar à conclusão de que esta mentira se tenha verificado entre irmãos, circunstância que parece ter deixado as testemunhas do mesmo sangue pouco à vontade, claramente incomodadas, sem desejo de participar com o seu depoimento em favor de um e contra outro dos litigantes, ainda por cima tendo em conta que um deles veio a falecer na pendência da causa. Enfim, o que quer que tenha sucedido, ficou lamentavelmente por provar.
*
5.1 – E quanto à usucapião invocada pelos RR na sua contestação?
A usucapião vem invocada em desespero de causa, aparentemente, como tentativa de, por essa via, os RR obterem aquilo que, pela via “negocial” (o tal “acordo” entre irmãos, alegadamente incumprido) alegadamente não lograram.
Só que também, quanto a isto, os elementos são insuficientes. Servem aqui todas as dúvidas que acima já expusemos. Se não se conhecem os contornos e as condições em que os factos apurados ocorreram após a celebração do contrato de promessa, então não podia o tribunal “a quo” dar por provada a matéria dos artigos 24º e 25º, tal como vimos. E a falta dessa prova, obviamente deixa os RR sem a protecção e a tutela que judicialmente solicitaram.
O facto de o 1º R ali ter vivido (foi afirmado por algumas testemunhas que ali morou até à data em que se mudou para uma casa de habitação económica fornecida pelo Governo, permanecendo na fracção, no entanto, o seu filho mais velho), de ele ter feito algumas reparações e de ali, ele e demais membros da família directa, terem habitado à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, não significa que o tenham feito como proprietários.
Quanto a esse aspecto, somos a acompanhar a posição do tribunal de 1ª instância a respeito da prova produzida.
E sem a demonstração do animus de agir com a intenção de proprietários, cai por terra a usucapião (art. 1212º, do CC). O facto de o R. ter feito algumas reparações e pagado as despesas de consumo ordinário de electricidade, água, gás, televisão, etc. (art. 20º da BI) não é, por si só, revelador do animus aquisitivo, uma vez que a utilização da fracção por esse réu pode ter sido feita na base da relação familiar entre si e o “dono” do imóvel e da autorização por este dada àquele. Ora, sendo assim, o mais normal é que a pessoa que ocupava a fracção em tais condições de tolerância suportasse os correspondentes custos mensais das despesas correntes que o uso dela implicava.
De qualquer maneira, pelo menos a partir da cessão da sua posição contratual pelo R. ao A. e da aquisição definitiva por este, a ocupação pelo réu da fracção passou a ser precária e feita por tolerância do adquirente, tal como, isso sim, ficou demonstrado. O que significa que a ocupação pelo 1º R. e familiares próximos era feita a título de simples detenção (art. 1177º, al. b), do CC), e sem o animus possidendi necessário à aquisição originária (art. 1212º, do CC).
Por tudo isto não poderia proceder a reconvenção, tal como foi decidido, não obstante a alteração das respostas aos arts. 13º e 15º da base instrutória. A modificação da factualidade respectiva em nada altera o rumo da decisão (razão pela qual, inclusive, não tem qualquer reflexo ao nível da tributação em custas).
***
IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam:
1 - Julgar que a resposta aos artigos 13º e 15º da base instrutória tenham a seguinte redacção:
13º - “Na sequência do referido em C o 1º réu deu de hipoteca a fracção id. em A ao BOC”.
15º - “ Provado apenas que, na sequência do pedido de ajuda do 1º réu, o autor emprestou-lhe dinheiro”
2 - Quanto ao mais, em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença.
Custas pelos recorrentes.
T.S.I, 19 de Abril de 2018
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
737/2017 23