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Processo nº 66/2018 Data: 19.04.2018
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “burla informática”.
Legitimidade do Ministério Público.
Contradição insanável.



SUMÁRIO

1. Tendo a acção penal por crime semi-público sido exercida pelo Ministério Público sem queixa do ofendido, falta uma condição de procedibilidade por carência de legitimidade daquela entidade para a promoção do processo, pelo que o respectivo procedimento está ferido de nulidade insanável, susceptível de ser conhecida a todo o tempo e, por isso, mesmo em sede de recurso.

2. A eventual irregularidade de uma queixa deve-se ter por sanada se, na sua sequência, e como uma clara manifestação de vontade no sentido da ratificação de todo o processado e de prosseguimento do procedimento criminal contra os arguidos, juntou a ofendida procuração e requereu a sua constituição como assistente, o que veio a ser deferido.

3. O vício de “contradição insanável da fundamentação” apenas se verifica quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Em síntese, quando analisada a decisão recorrida através de um raciocínio lógico se verifique que a mesma contém posições antagónicas ou inconciliáveis, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.

O relator,

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Processo nº 66/2018
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A e B, (1° e 2a) arguidos com os restantes sinais dos autos, responderam no T.J.B., vindo a ser condenados como co-autores materiais, na forma continuada, da prática de 1 crime de “burla informática”, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1, al. 1) da Lei n.° 11/2009, na pena (individual) de 1 ano de prisão; (cfr., fls. 903 a 912 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformados, os arguidos recorreram, imputando ao Acórdão recorrido os vícios de “nulidade prevista no art. 360°, n.° 1, al. a) e b) do C.P.P.M.”, “falta de legitimidade para deduzir acusação”, “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “erro notório na apreciação da prova” e “excesso de pena”; (cfr., fls. 927 a 951 e 952 a 976).

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Respondendo, diz o Ministério Público que os recursos não merecem provimento; (cfr., fls. 978 a 986).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer, opinando no sentido de se dever considerar extinto o procedimento criminal por falta de queixa; (cfr., fls. 1171 a 1172).

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 905-v a 907-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem os (1° e 2ª) arguidos A e B recorrer do Acórdão que os condenou como co-autores materiais da prática de 1 crime de “burla informática”, na forma continuada, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1, al. 1) da Lei n.° 11/2009, na pena (individual) de 1 ano de prisão.

Consideram que o Acórdão padece dos vícios de “nulidade prevista no art. 360°, n.° 1, al. a) e b) do C.P.P.M.”, “falta de legitimidade para deduzir acusação”, “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “erro notório na apreciação da prova” e “excesso de pena”.

Vejamos.

–– Comecemos, como parece lógico, pelo vício de “falta de legitimidade para deduzir acusação”.

Nos termos do art. 38° do C.P.P.M.:

“1. Quando o procedimento penal depender de queixa, é necessário que a pessoa com legitimidade para a apresentar dê conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.
2. Para o efeito previsto no número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.
3. A queixa é apresentada pelo titular do direito respectivo ou por mandatário munido de poderes especiais”.

Perante o estatuído no n.° 1 do transcrito preceito legal, impõe-se concluir que tendo a acção penal por crime semi-público sido exercida pelo Ministério Público sem queixa do ofendido, falta uma condição de procedibilidade por carência de legitimidade daquela entidade para a promoção do processo, pelo que o respectivo procedimento está ferido de nulidade insanável, susceptível de ser conhecida a todo o tempo e, por isso, mesmo em sede de recurso; (como sucedeu no âmbito do Ac. deste T.S.I. de 15.06.2017, Proc. n.° 428/2017 e de 28.09.2017, Proc. n.° 625/2017, do mesmo Colectivo deste).

No caso, atento ao que dos autos consta, cremos que não se verifica o apontado vício.

Com efeito, basta ter em conta que mesmo que existisse qualquer (eventual) questão no que toca à queixa no início dos autos apresentada, de olvidar não é que, como uma clara manifestação de vontade no sentido da ratificação de todo o processado e de prosseguimento do procedimento criminal contra os arguidos juntou a ofendida procuração e requereu a sua constituição como assistente, o que foi deferido pelo Tribunal a quo, adequado não sendo de, agora, após sentença condenatória, se voltar a colocar tal questão que, seja como for, mais não é do que uma “falsa questão” e, como se mostra óbvio, não pode proceder.

Continuemos.

–– Vejamos, agora dos vícios relativos à “decisão da matéria de facto”.

Verifica-se que, nesta sede, imputam à decisão recorrida os vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e “erro notório na apreciação da prova”.

E certo sendo que à mesma decisão assacam também os arguidos os vícios de “nulidade prevista no art. 360°, n.° 1, al. a) e b) do C.P.P.M.” e “excesso de pena”, cremos que, em boa verdade, as “questões” suscitadas estão interligadas, sendo de se lhes reconhecer razão ainda que com fundamentação não coincidente.

Pois bem, antes de mais, útil é aqui transcrever o art. 11° da Lei n.° 11/2009, com o qual se prevê e pune o crime de “burla informática”.

Nos termos deste comando legal:

“1. É punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa quem, com intenção de obter enriquecimento ilegítimo para si ou para terceiro, causando prejuízo patrimonial a outrem:
1) Introduzir, alterar, suprimir ou eliminar dados informáticos;
2) Interferir no resultado de tratamento de dados informáticos;
3) Estruturar incorrectamente programa informático; ou
4) Intervier no funcionamento de sistema informático.
2. A tentativa é punível.
3. Se o prejuízo patrimonial causado for:
1) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos;
2) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.
4. Nos casos previstos nos n.os 1 e 2, o procedimento penal depende de queixa”.

E, perante o assim estatuído, (em especial, no n.° 1), mostra-se desde já de fazer constar que, (em sede de fundamentação), consignou expressamente o Tribunal a quo que não conseguiu apurar o montante do enriquecimento dos arguidos ou prejuízo causado à ofendida, proferindo, mesmo assim, a decisão condenatória que atrás se fez referência.

E, independentemente do demais, in casu, tal “circunstância”, tem especial relevo.

É que em sede da acusação do Ministério Público, aos arguidos era imputada a prática de mais de 400 “condutas fraudulentas”, (introdução de dados – falsos – nos registos de apostas feitas e seus montantes a fim de obtenção de créditos), das mesmas resultando vantagens para aqueles e prejuízos para a ofendida superiores a MOP$1.000.000,00, (cfr., facto n.° 3, 5, 6, 7, 8 e 9 da acusação), certo sendo que, após julgamento, em sede da decisão da “matéria de facto provada”, se veio a dar tão só por provado que os arguidos apenas por “algumas – 12 – vezes introduziram dados falsos”; (cfr., “factos provados” 3 e 5).

Porém, e não obstante dar também como “não provado” o que antes constava dos art°s 8 e 9 da acusação e que se referia às “vantagens dos arguidos” e “prejuízos da ofendida”, afirma, também, e em termos genéricos, que os arguidos obtiveram vantagens e que a ofendida teve prejuízo; (cfr., factos provados com os n°s 7 e 8).

Ora, temos entendido que:

O vício de “contradição insanável da fundamentação” apenas se verificar quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”; (cfr., v.g. os recentes Acs. deste T.S.I. de 13.07.2017, Proc. n.° 522/2017, de 28.09.2017, Proc. n.° 787/2017 e de 11.01.2018, Proc. n.° 1146/2017).

Em síntese, quando analisada a decisão recorrida através de um raciocínio lógico se verifique que a mesma contém posições antagónicas ou inconciliáveis, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.

E, como recentemente se tem igualmente decidido:

“Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”; (cfr., o Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16).

E, motivos não havendo para não se manter o assim entendido, cremos que no caso dos autos verificada está tal “contradição” que, porque insanável, implica o reenvio dos autos para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M., prejudicado ficando o conhecimento das outras questões colocadas.

Com efeito, o Tribunal a quo, contradiz-se quanto à (real) “existência de vantagens para os arguidos e respectivos prejuízos da ofendida”, e, concluindo depois pela sua existência, (e sem especificar o seu montante), profere a decisão condenatória recorrida que, como se nos apresenta evidente, não se pode manter.

Nesta conformidade, resta pois decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam decretar o reenvio dos autos para novo julgamento.

Pelos seus decaimentos, pagarão os arguidos a taxa de justiça individual de 3 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor da 2ª arguida no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 19 de Abril de 2018
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José Maria Dias Azedo
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Chan Kuong Seng
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Tam Hio Wa

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