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Processo nº 706/2017
(Autos de recurso cível)

Data: 3/Maio/2018

Assuntos: Falta de personalidade judiciária
      Órgão de administração de sociedade comercial

SUMÁRIO
Parte é quem propõe uma acção judicial (autor) e aquele contra quem é proposta a acção (réu), o representante legal, voluntário ou estatutário, não é parte, parte é sempre o representado.
A administração é apenas um órgão social de uma sociedade comercial, não possuindo personalidade jurídica e, em consequência, personalidade judiciária.
Faltando à administração da sociedade a necessária personalidade judiciária para estar em juízo, deve aquela ser absolvida da instância com fundamento na falta de verificação do referido pressuposto processual.


O Relator,

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Tong Hio Fong

Processo nº 706/2017
(Autos de recurso cível)

Data: 3/Maio/2018

Recorrente:
- A (requerente)

Recorrida:
- B Limitada (requerida)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
A, com sinais nos autos (doravante designado por “recorrente”), inconformado com a decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base que absolveu a requerida B Limitada (doravante designada por “recorrida”) da instância com fundamento na falta de personalidade e capacidade judiciárias, interpôs recurso ordinário para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“A. A Recorrente intentou a acção de prestação de contas contra os administradores da sociedade, estando os mesmos individualmente, um por um, identificados no cabeçalho da petição inicial e devidamente referidos no pedido, tendo os administradores sido individualmente citados na acção em causa.
B. A partir do momento em que o tribunal não convidou a Recorrente a corrigir ou esclarecer a petição e ordenou a citação individual dos administradores, não pode deixar de se entender que a acção foi proposta contra os administradores.
C. A própria sentença recorrida individualiza os administradores (não se referindo em nenhum momento a uma ré, mas sim a réus) e condenou apenas parte dos mesmos em custas.
D. Na matéria de fundo, coloca-se a questão de saber quem deve ser demandado numa acção de prestação de contas – a sociedade, ou os seus administradores?
E. A aprovação das contas é da competência dos sócios, reunidos em Assembleia Geral (artigo 216º, alínea b) do Código Comercial), mas este direito-dever só pode ser exercido desde que tenha sido cumprido um dever prévio, o dever de apresentação (prestação) de contas.
F. A lei é clara a este respeito, dispondo o artigo 254º do Código Comercial que “No fim de cada exercício, a administração da sociedade deve organizar as contas anuais e, salvo se todos os sócios forem administradores e a sociedade não tiver conselho fiscal ou fiscal único, elaborar um relatório respeitante ao exercício e uma proposta de aplicação de resultados.”
G. A prestação de contas foi pedida a quem de direito.
H. Resulta dos artigos 254º e 255º do Código Comercial, acima citados, cabe à administração, na pessoa dos seus administradores, proceder à organização e prestação das contas anuais da sociedade, um dever pessoal que incumbe aos administradores.
I. Este dever resulta da realidade de serem os administradores que gerem, representam e acompanham o dia-a-dia da sociedade, representando-a perante terceiros, pelo que só eles estão habilitados e em condições de preparar as respectivas contas, incumbindo-lhes o dever de preparar e organizar as contas da sociedade e sendo aos mesmos que a respectiva prestação deve ser exigida.
J. Seguindo a teoria do tribunal “a quo”, a norma do artigo 245º do Código Comercial estaria totalmente desprovida de sentido, pois se os administradores não podem ser demandados a cumprir os seus deveres, também não poderão, por maioria de razão, vir a ser responsabilizados pelas respectivas omissões.
K. De outra forma não existiria qualquer consequência para os administradores pela omissão das suas obrigações – seria sempre a sociedade a responsável, nada acontecendo aos administradores que não cumprissem os seus deveres legais.
L. “A todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo”, sendo este um dos princípios mais basilares do Estado de Direito e, em particular, do processo civil, consagrado no n.º 2 do artigo 1º do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser os administradores da sociedade condenados a apresentar as contas dos anos de 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014.”
*
Devidamente notificados, apenas responderam os administradores C e D, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
“I. A “Administração” não tem personalidade jurídica por se tratar de um órgão social de uma sociedade comercial (artigo 214º, n.º 1, alínea b) do Código Comercial), ao qual compete a sua gestão e representação nos termos do disposto nos artigos 346/1 do Código Comercial e 53/1 do CPC.
II. A “Administração” da Ré não dispõe, assim, de personalidade jurídica, nem, por conseguinte, de capacidade judiciária para ser demandada em juízo em lugar (ou em vez) da sociedade que representa por força da regra da coincidência ou equiparação plasmada no artigo 39º, n.º 2 do CPC.
III. Não podiam assim os administradores da Ré, aqui recorridos, terem sido demandados em lugar dela face ao disposto art.º 43º, n.º 1 do CPC.
IV. Era, pois, contra a sociedade (e não contra a sua administração) que poderia ter sido movida a presente acção.
V. E por faltar aos administradores da Ré a necessária personalidade e capacidade judiciária para serem demandados como partes em lugar da sociedade que representam, teve o Tribunal a quo que os absolver da instância por força do disposto nos artigos 412º, n.º 2 e 230º, n.º 1, alínea c), primeira parte, ambos do CPC.
Nestes termos e com o mais que V. Exas., muito doutamente, não deixarão de suprir, deve ser negado provimento ao recurso interposto, com as legais consequências.”

Corridos os vistos, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
Está em causa a seguinte decisão de primeira instância:
“Da invocada preterição de litisconsórcio necessário passivo e da falta de personalidade jurídica e capacidade judiciária da administração da sociedade
Nos presentes autos vem o requerente demandar a administração da sociedade pedindo ao tribunal a fixação de um prazo para a apresentação de contas anuais de 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014.
Efectivamente o objecto da lide tem a ver com o direito à informação da vida da sociedade o qual o sócio tem para com a sociedade. Por isso, salvo melhor opinião, a relação material controvertida é entre o sócio e a sociedade e não a administração desta.
A administração da sociedade, apesar de representar a sociedade externamente, é de per si um órgão interno da sociedade (cfr. o dispoto no artigo 214º, n.º 1 do Código Comercial).
Personalidade jurídica é a susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações (Castro Mendes, Direito Civil, Teoria Geral, 1978, I-169), e traduz-se na aptidão de um pessoa (singular ou colectiva) para ser titular autónomo de relações jurídicas (cfr. Mota Pinto, Teoria Geral de Direito Civil, 3ª ed-191).
Por isso, quem tem personalidade jurídica é a sociedade (mas representada pela administração) e não a própria administração que é meramente um órgão interno daquela.
Assim, deve o requerente demandar a B LIMITADA e não a administração desta, porquanto sendo a administração um órgão representativo da Sociedade, não tem personalidade jurídica e por conseguinte por princípio de coincidência ou equiparação plasmado no artigo 39º, n.º 2 do CPC, também não tem capacidade judiciária.
Nestes termos, deve julgar esta excepção dilatória procedente absolvendo os RR da instância.
Custas pelo requerente.
Notifique.”
*
A única questão colocada no presente recurso é saber se a recorrida, B Limitada, tem personalidade judiciária.
Dispõe n.º 1 do artigo 39.º do Código de Processo Civil que “a personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte”.
Como observam Cândida Pires e Viriato de Lima1, “parte é quem propõe uma acção judicial (autor) e aquele contra quem é proposta a acção (réu)” (…) “de onde resulta que o representante legal, voluntário ou estatutário, não é parte: parte é sempre o representado”.
No caso em apreço, o recorrente intentou uma acção judicial contra a administração duma sociedade por quotas, pelo que a administração da respectiva sociedade aparece na acção como requerida por indicação do recorrente.
De acordo com o princípio da iniciativa das partes ou do pedido, competem às partes intentar a acção, indicar as partes do processo, alegar os factos essenciais e formular o pedido.
Não obstante que foram citados os administradores da sociedade, a verdade é que aqueles são considerados como meros elementos que compõem a administração, ou melhor, contra quem foi proposta a acção continua a ser a própria administração.
Salvo o devido respeito por melhor opinião, a administração é apenas um órgão social de uma sociedade comercial, não possuindo personalidade jurídica e, em consequência, personalidade judiciária.
Nestes termos, faltando à administração da sociedade a necessária personalidade judiciária para estar em juízo, andou bem a decisão recorrida ao absolver a recorrida da instância com fundamento na falta de verificação do referido pressuposto processual.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente A, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.
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                 RAEM, 3 de Maio de 2018
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
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Fong Man Chong
                 
1 Código de Processo Civil de Macau anotado e comentado, Volume I, pág. 139
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Recurso Cível 706/2017 Página 8