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Processo n.º 203/2018 Data do acórdão: 2018-5-10 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– fuga à responsabilidade
– art.o 89.o da Lei do Trânsito Rodoviário
– acidente em parque de estacionamento público
S U M Á R I O

A acidente de viação ocorrido em parque de estabelecimento público é aplicável a norma incriminatória (de fuga à responsabilidade) do art.o 89.o da Lei do Trânsito Rodoviário.
O relator por vencimento,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 203/2018
(Autos de recurso penal)
  Recorrente: Ministério Público
  Recorrido: A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida no Processo Comum Singular n.o CR4-17-0185-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judical de Base, condenatório do arguido A, aí melhor identificado, pela prática, em autoria material, na forma continuada, de um crime de fuga à responsabilidade, p. e p. pelo art.o 89.o da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), veio o Digno Procurador-Adjunto junto desse Tribunal recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, na sua essência, que todo o acidente ocorrido dentro de parque de estacionamento público não é subsumível a acidente de que se fala no art.o 89.o da LTR, por não se encontrar sob o âmbito de aplicação da LTR definido no art.o 4.o desta Lei, devendo, pois, no seu entender, ser absolvido o arguido, por erro de direito cometido pelo Tribunal sentenciador (cfr. em detalhes, o teor da motivação de fls. 147 a 157v dos presentes autos correspondentes).
Subidos os autos, opinou, em sede de vista, o Digno Representante do Ministério Público pelo provimento do recurso (cfr. o douto parecer de fls. 221 a 222v).
Feito o exame preliminar, e corridos os vistos legais, foi apresentado pelo M.mo Juiz Relator o douto Projecto de Acórdão à discussão do presente Tribunal Colectivo de recurso.
Como o M.mo Juiz Relator acabou por sair vencido da votação feita sobre a solução do recurso, é de decidir do recurso nos termos constantes do presente acórdão definitivo, lavrado pelo primeiro dos Juízes-Adjuntos nos termos do art.o 417.o, n.o 1, parte final, do Código de Processo Penal.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos elementos dos autos, sabe-se que a sentença recorrida se encontra proferida a fls. 135 a 140v dos autos, cuja fundamentação fáctica se dá por aqui inteiramente reproduzida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que este Tribunal de Segunda Instância (TSI), como tribunal ad quem, só tem obrigação de decidir das questões material e concretamente postas pela parte recorrente na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas respectivas conclusões, e já não decidir, da justeza, ou não, de todos os argumentos invocados pela parte recorrente para sustentar a procedência da sua pretensão (neste sentido, cfr., nomeadamente, os arestos deste TSI nos seguintes processos: de 4/3/2004 no processo n.° 44/2004, de 12/2/2004 no processo n.º 300/2003, de 20/11/2003 no processo n.º 225/2003, de 6/11/2003 no processo n.° 215/2003, de 30/10/2003 no processo n.° 226/2003, de 23/10/2003 no processo n.° 201/2003, de 25/9/2003 no processo n.º 186/2003, de 18/7/2002 no processo n.º 125/2002, de 20/6/2002 no processo n.º 242/2001, de 30/5/2002 no processo n.º 84/2002, de 17/5/2001 no processo n.º 63/2001, e de 7/12/2000 no processo n.º 130/2000).
O Ministério Público aponta, na sua motivação, o erro de erro por parte do Tribunal sentenciador na decisão condenatória do arguido.
Pois bem, ante toda a factualidade já dada por provada em primeira instância, é de julgar que não cometeu o Tribunal recorrido o erro de direito apontado pelo Digno Ente Recorrente.
De facto, sobre a questão nuclear de saber se a acidente de viação ocorrido em parque de estabelecimento público é aplicável a norma incriminatória do art.o 89.o da LTR, já se pronunciou, no sentido afirmativo, o TSI no Acórdão de 16 de Novembro de 2017, no Processo n.o 941/2016, cuja posição jurídica é seguida para a decisão do presente recurso, pelo que sem mais indagação por prejudicada, improcede o recurso.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Macau, 10 de Maio de 2018.
_______________________
Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
_______________________
Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
_______________________
José Maria Dias Azedo
(Relator do processo)
(seguir declaração)

Processo nº 203/2018
(Autos de recurso penal)



Declaração de voto

   Vencido. Em síntese, pelos motivos seguintes:
   
–– Nos presentes autos, e antes de mais, (como “questão prévia”), importava decidir da “legitimidade do Ministério Público para recorrer”.

No âmbito dos Autos de Recurso Penal deste T.S.I. n.° 494/2014, e sendo um recurso “contra o arguido”, entendi que Ministério Público não tinha “interesse em agir” dado que estava a recorrer de uma “decisão com a qual antes tinha concordado”; (cfr., o Ac. de 20.11.2014).
   
   No caso dos presentes autos, semelhante é a situação.
   
   Com efeito, foi o Ministério Público que deduziu a acusação (e requereu o julgamento do arguido), (cfr., fls. 62 a 63), e, após o Tribunal dar (toda) a matéria da acusação como provada, condenando o arguido pela prática do crime pelo qual estava acusado, do assim decidido vem o Ministério Público recorrer, e alegando que a matéria de facto que – fez constar da acusação e que foi integralmente dada como provada, (sem mais nada se ter provado) – não constitui a prática do crime pelo qual foi o arguido – acusado e – condenando, pedindo, a final, a sua absolvição; (cfr., fls. 135 a 140-v e 147 a 157-v).
   
   Dest’arte, colocando-se (apenas) uma questão de “qualificação jurídica da matéria de facto” – não se impugnando a “decisão da matéria de facto” ou, v.g., questionando-se a “espécie” ou “medida da pena” – tem o presente recurso como objecto uma “decisão (inteiramente) concordante” com a – anterior – posição pelo Ministério Público assumida em sede da sua acusação, afigurando-se-nos, por isso, pertinente a questão do seu “interesse em agir”, (recorrer), como já em sede de exame preliminar dos autos consignamos.
   
   Porém, não obstante o que se deixou consignado, na situação sub judice, trata-se de um recurso “a favor do arguido”, (pedindo – agora – o Ministério Público a sua absolvição quanto ao crime pelo qual foi – acusado e – condenando, inversamente ao que sucedeu no referido Proc. n.° 494/2014).
   
   E, sem prejuízo de melhor opinião e reflexão, esta “diferença” apresenta-se-nos relevante para se avançar para o conhecimento do “mérito do recurso”.
   
–– Pois bem, aqui, a questão a apreciar consiste em saber se um “Auto-silo” constitui “via pública” para efeitos da “Lei do Trânsito Rodoviário”, (Lei n.° 3/2007), e, especialmente, para efeitos do seu art. 89° que pune o crime de “fuga à responsabilidade”, (pelo qual foi o arguido condenado).
   
   E como no douto Acórdão que antecede se fez referência, idêntica questão foi já por este T.S.I. tratada no Ac. de 16.11.2017, Proc. n.° 941/2016, no âmbito qual considerei que a resposta à mesma deveria ser de sentido negativo; (cfr., declaração de voto que anexei ao aludido aresto, e onde, em essência, consignei o seguinte: “Sob o título “Disposições gerais”, e com a epígrafe “Definições relativas às vias”, prescreve o art. 2° da dita Lei n.° 3/2007 (na parte que agora interessa) que:
   
   “Para os efeitos do disposto na presente lei e diplomas complementares, entende-se por:
1) Via pública: via de comunicação terrestre aberta ao trânsito público, independentemente da mesma pertencer ao domínio público ou ao domínio privado da RAEM;
2) Via equiparada a via pública: via particular de comunicação terrestre aberta ao trânsito público;
(…)
22) Parque de estacionamento: local exclusivamente destinado ao estacionamento de veículos;
23) Zona de estacionamento: local da via pública especialmente destinado, por construção ou sinalização, ao estacionamento de veículos;
(…)”; (com sub. nosso).
   
   Por sua vez, (e sob a epígrafe “Âmbito de aplicação”), estatui o art. 4° do mesmo diploma legal que:
   
   “1. O disposto na presente lei é aplicável ao trânsito nas vias públicas da RAEM.
2. Em tudo o que não estiver regulado por legislação especial, por contrato administrativo ou por acordo celebrado entre a entidade competente e os respectivos proprietários, o disposto na presente lei é também aplicável ao trânsito nas vias equiparadas a vias públicas”; (sub. nosso).
   
   Resulta assim claro que o preceituado na mencionada Lei apenas tem aplicação a “factos” ocorridos aquando do “trânsito nas vias públicas” ou nas “vias equiparadas a vias públicas”, (cuja noção é a é a que figura no art. 2°, n.° 1 e 2).
   
   Nesta conformidade, não constando na Lei em questão qualquer definição de “Auto-silo”, e verificando-se que nos termos do art. 2°, n.° 1 do “Regulamento do Serviço Público de Parques de Estacionamento”, (Regulamento Administrativo n.° 35/2003), é o mesmo entendido como “edifício ou fracção de edifício tendo como finalidade de utilização o estacionamento de veículos”, não nos parece que se possa considerar que um “auto-silo”, (definido como “edifício” ou “fracção de edifício”), possa integrar o conceito de “via pública” ou “via equiparada a via pública”, (para efeitos de aplicação da aludida Lei n.° 3/2007).
   
   Há pois que atentar que aquando da aprovação da Lei n.° 3/2007, em vigor já estava o Regulamento Administrativo n.° 35/2003, (onde constava o conceito de “auto-silo”), e que, em nossa opinião, foi (deliberadamente) excluído da sua regulamentação por ser “estranho” ao seu objecto e âmbito de aplicação.
   
   Importa, por sua vez, distinguir um “auto-silo” de um “parque de estacionamento” ou de uma “zona de estacionamento”; (cfr., art. 2°, n.° 22 e 23 da Lei n.° 3/2007 e art. 2°, n.° 1 do Reg. Adm. n.° 35/2003).
   
   Aliás, tal distinção, (cremos nós), é também feita no art. 3° do citado Reg. Adm. n.° 35/2003, onde, no seu, n.° 1 se preceitua que:
   
   “1. Integram o serviço público de parques de estacionamento os:
1) Lugares de estacionamento localizados na via pública, integrados ou não em parques de estacionamento, independentemente da forma de disponibilização e controlo de tempo de utilização;
2) Parques de estacionamento instalados em auto-silo público subterrâneo, em elevação ou misto;
(…)”; (com sub. nosso).
   
   Outrossim, mostra-se de ter igualmente presente que neste mesmo Reg. Adm. n.° 35/2003, autónoma e distinta é a regulamentação do “Estacionamento localizado na via pública” – Capítulo III, art. 14° e 21° – e do “Estacionamento em auto-silos públicos”, (Capítulo IV, art. 22° e segs.), notando-se, que no seu art. 23°, (sob a epígrafe “Sinalização”), se prescreve que “No interior, os sentidos de circulação, perigos e restrições devem ser assinalados mediante a utilização da sinalização vertical e horizontal prevista no Regulamento do Código da Estrada, bem como por sinalização complementar adequada”, (cfr., n.° 2), o que não ocorre em relação à regulamentação prevista para os “lugares de estacionamento localizados na via pública”, afigurando-se-nos que a (única) razão para tal se prende com o facto de a estes se aplicar (automáticamente) as disposições da “Lei do Trânsito Rodoviário”, (dado que localizados na “via pública”).
   
   Por fim, cabe também referir que até mesmo em “matéria sancionatória” se distingue o “estacionamento abusivo em lugares na via pública” e o “estacionamento abusivo nos auto-silos”, (cfr., art. 35° e 36° do Reg. Adm. n.° 35/2003), sendo de se consignar (e destacar) também que o “bloqueamento” e, em especial, a “remoção” do veículo em caso de estacionamento abusivo apenas está prevista para infracções ocorridas em “lugares na via pública”, afigurando-se-nos óbvios os seus motivos”).
   
Nenhum motivo me parecendo existir para alterar a posição que assumi, clara fica a razão da presente declaração, valendo ainda a pena aqui transcrever o seguinte excerto do Parecer pelo Ministério Público junto aos autos, onde, abordando a questão, e de forma que se nos afigura adequada, considera que: “Na verdade, o legislador da Lei n.° 3/2007 não podia desconhecer o Regulamento Administrativo n.° 35/2003 e os conceitos que este adoptara em matéria de parques de estacionamento. E, não obstante, manteve inequivocamente afastada esta realidade da incidência regulatória do trânsito abarcada pela Lei do Trânsito Rodoviário, conforme deflui do artigo 4.° da Lei n.° 3/2007.
Não esteve, pois, seguramente na mente do legislador englobar os auto-silos nas vias públicas ou equiparadas a que se aplica a Lei n.° 3/2007 e para cujo tráfego está previsto o crime de fuga à responsabilidade.
   Além disso, cabe ainda dizer que a remissão do artigo 33.° do Regulamento Administrativo n.° 35/2003 para as disposições do Código da Estrada, em matéria de deveres dos utentes do serviço de parques de estacionamento, não tem o condão de criar um novo tipo incriminador, ou de alargar o âmbito de incidência do crime de fuga à responsabilidade, que já existia no Código da Estrada com um recorte idêntico ao que possui hoje. E ainda que tivesse, na verdade, sido intenção daquele artigo 33.° estender a previsão do crime de fuga à responsabilidade às operações de estacionamento em silo-autos, sempre isso seria ilegal por provir de instrumento normativo sem habilitação para legislar em matéria de crimes, e nunca seria passível da convalidação a que aludiu a Mm.a juiz na sua douta sentença, pois trata-se de uma convalidação genérica, de índole essencialmente formal, insusceptível de sanar um tão grande atropelo ao princípio da legalidade”; (cfr., fls. 221 a 222-v).
Macau, aos 10 de Maio de 2018




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