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Processo n.º 636/2014 Data do acórdão: 2018-5-10 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– usura para jogo
– art.o 13.o, n.o 1, da Lei n.o 8/96/M
– art.o 13.o, n.o 3, da Lei n.o 8/96/M
– empréstimo para jogar em casino
– conduta do mutuário
– estratagemas astuciosos do mutuário
– burla
S U M Á R I O


1. O art.o 13.o, n.o 1, da Lei n.o 8/96/M (que prevê o tipo legal de usura para jogo) pune quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial para si ou para terceiro, facultar a uma pessoa dinheiro ou qualquer outro meio para jogar (e, portanto, não pune quem, sem intenção de alcançar benefício patrimonial ou para terceiro, facultar a uma pessoa dinheiro ou qualquer meio para jogo de fortuna ou azar).
2. Daí que o contrato de empréstimo gratuito para jogo de fortuna ou azar não é empréstimo ilícito, enquanto o contrato de empréstimo oneroso para jogo de fortuna ou azar já implica responsabilidade penal ao mutuante.
3. Como o empréstimo em questão nos autos foi concedido com estipulação de juros para ser utilizado no jogo de fortuna ou azar, não se pode imputar ao arguido mutuário (o qual para se tornar mutuário empregou estratagemas astuciosos para obter esse empréstimo) a prática do crime de burla contra o mutuante, já que é o n.o 3 do art.o 13.o da Lei n.o 8/96/M que diz que a conduta do mutuário não é punível.
4. Em suma, só se poderia imputar ao arguido mutuário o crime de burla contra o mutuante, quando estivesse em causa um empréstimo lícito, fora da alçada da Lei n.o 8/96/M.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 636/2014
(Recurso em processo penal)
Recorrente: Ministério Público
Arguido recorrido: A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 128 a 135 do ora subjacente Processo Comum Colectivo n.o CR1-14-0014-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB) na parte que absolveu o arguido A, aí já melhor identificado, da inicialmente também imputada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de burla em valor elevado, p. e p. pelos art.os 211.o, n.o 3, e 196.o, alínea a), do Código Penal (CP), veio a Digna Delegada do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, no seu essencial, que o Tribunal recorrido, ao decidir pela absolvição do arguido desse crime, fez errada interpretação do art.o 18.o da Lei n.o 8/96/M e violou o art.o 211.o, n.o 3, do CP, rogando, assim, com base na factualidade já dada por provada em primeira instância, a condenação do arguido como autor material desse crime, em pena de prisão não inferior a um ano e seis meses, e, finalmente, em pena única, resultante do cúmulo da pena desse crime com a pena já aplicada no mesmo acórdão recorrido para o crime de falsificação de documento de especial valor, não inferior a dois anos e três meses de prisão, com período de suspensão da execução da pena não inferior a três anos (cfr. o teor da motivação de fls. 144 a 148v).
Ao recurso, respondeu o arguido recorrido (a fls. 151 a 152), no sentido de manutenção do julgado.
Subido o recurso, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 160 a 162), pugnando pelo provimento do recurso, com condenação do arguido também pela prática de um crime de burla em valor elevado, com baixa do processo ao Tribunal recorrido para efeitos de determinação concreta da pena desse crime.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontra proferido a fls. 128 a 135 dos autos, cujo teor integral se dá por aqui inteiramente reproduzido.
Nesse acórdão, o arguido ora recorrido ficou absolvido da inicialmente também imputada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de burla em valor elevado, p. e p. pelos art.os 211.o, n.o 3, e 196.o, alínea a), do CP (apesar de ficar condenado como autor material de um crime consumado de falsificação de documento de especial valor, p. e p. pelos art.os 244.o, n.o 1, alínea c), e 245.o do CP, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos).
Segundo a factualidade descrita como provada nesse acórdão:
– o arguido entrou em Macau com um passaporte chinês (com nome de titular como sendo B, diferente, pois, do nome dele próprio, mas com fotografia dele), comprado a outrem no Interior da China, passaporte esse que ele guardou consigo a fim de ocultar a verdadeira identidade dele próprio, aquando do futuro pedido de empréstimo de dinheiro a outrem em casino de Macau, para fugir à reclamação da dívida por parte de pessoa concedente de empréstimo de usura (cfr. os factos provados 1 a 6);
– depois, passou ele a conhecer, mediante apresentação por outrem, o bate-fichas chamado C e o auxiliar deste chamado D, para efeitos de pedido de empréstimo de dinheiro para jogar em casino, declarando a estes, aquando da negociação do empréstimo, que ele próprio se chamava B e que ele era gerente geral de uma fábrica de malas numa cidade do Interior da China e que tinha um veículo automóvel de luxo de marca XX, tendo exibido a C tal passaporte chinês e cartão de visita de “B” da dita fábrica (cfr. os factos provados 7 a 10);
– através do visionamento do sítio de website impresso no cartão de visita, verificou C que o representante legal daquela fábrica era “B”, e verificou também que a fotografia do referido passaporte chinês era do arguido, pelo que acreditou C em que o arguido era “B” e este tinha capacidade de pagar dívida do empréstimo (cfr. o facto provado 11);
– para aliciar C para este lhe conceder empréstimo, o arguido prometeu que mesmo que viesse a perder em jogos o dinheiro emprestado, também poderia pagar a dívida na manhã do dia de concessão do empréstimo (cfr. o facto provado 12);
– portanto, C concordou em emprestar ao arguido cem mil dólares de Hong Kong, para este jogar em casino (cfr. o facto provado 13);
– o auxiliar D do ofendido trocou esse numerário (entregue pelo ofendido) em igual montante de fichas de jogo (cfr. o facto provado 15);
– o ofendido entregou fichas de jogo no valor de cinquenta mil dólares de Hong Kong ao arguido para este jogar, e colocou as restantes fichas de jogo no valor de cinquenta mil dólares de Hong Kong na mesa de jogos em causa, guardando-as deste modo provisoriamente (cfr. o facto provado 16);
– e depois de jogar, o arguido levou consigo todas as fichas de jogo em cima da mesa de jogos em valor cerca de quarenta mil dólares de Hong Kong e saiu do local (cfr. os factos provados 17 a 21);
– o arguido, para obter empréstimo a favor dele, e fugir à reclamação da dívida pelo respectivo concedente de empréstimo, usou o passaporte falsificado para pedir empréstimo ao ofendido, e usou de mentira para fazer com que o ofendido tenha caído em erro a nível de factos e ficado enganado, para atingir o fim de ocultar a verdadeira identidade, e a partir daí fez com que o ofendido tenha praticado acto que lhe causou prejuízo de valor elevado (cfr. o facto provado 25);
– o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com intenção de praticar os factos referidos, sabendo da ilegalidade e da punibilidade da sua conduta (cfr. o facto provado 26).
Por outra banda, o Tribunal recorrido considerou também provada a seguinte factualidade, mas sem ter sido descrita previamente no libelo acusatório (de fls. 91 a 93v):
– as condições do empréstimo acordadas entre o arguido e C foram: o arguido tinha que jogar em bacará, e em relação a cada aposta iria ser feita a dedução de 15% no valor da aposta como juros do empréstimo, independentemente do ganho ou da perda no jogo.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Veio a Digna Delegada do Procurador recorrente pedir a condenação directa do arguido como autor material de um crime consumado de burla em valor elevado.
No caso dos autos, ficou provado que o bate-fichas C emprestou dinheiro (convertido depois em fichas de jogo) ao arguido para este jogar em casino, com estipulação de juros para esse empréstimo (embora este indivíduo, no âmbito do presente processo penal, não tivesse sido acusado por prática do crime de usura do art.o 13.o da Lei n.o 8/96/M, sem prejuízo, naturalmente, da possível condenação desse mutuante pela autoria material desse crime, se fosse acusado como tal, por exemplo, em outra sede processual penal).
O art.o 13.o, n.o 1, da Lei n.o 8/96/M (que prevê o tipo legal de usura para jogo) pune quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial para si ou para terceiro, facultar a uma pessoa dinheiro ou qualquer outro meio para jogar (e, portanto, não pune quem, sem intenção de alcançar benefício patrimonial ou para terceiro, facultar a uma pessoa dinheiro ou qualquer meio para jogo de fortuna ou azar).
Daí que o contrato de empréstimo gratuito para jogo de fortuna ou azar não é empréstimo ilícito, enquanto o contrato de empréstimo oneroso para jogo de fortuna ou azar já implica responsabilidade penal ao mutuante ou concedente de empréstimo.
O contrato de empréstimo nos autos é uma relação jurídica estabelecida entre o bate-fichas C e o arguido. Como o empréstimo em causa foi concedido com estipulação de juros para ser utilizado no jogo de fortuna ou azar, não se pode imputar ao arguido (o qual para se tornar mutuário empregou estratagemas astuciosos para obter esse empréstimo) a prática do crime de burla contra aquele bate-fichas, já que é o n.o 3 do art.o 13.o da Lei n.o 8/96/M que diz que a conduta do mutuário não é punível, de maneira que só se poderia imputar ao arguido mutuário o crime de burla contra o bate-fichas mutuante, quando estivesse em causa um empréstimo lícito, fora da alçada da Lei n.o 8/96/M.
Razões por que não deixa de ser mantida a decisão absolutória do crime de burla ora recorrida (sem mais indagação, por já prejudicada pela análise acima feita).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso.
Sem custas.
Fixam em duas mil patacas os honorários do Ex.mo Defensor Oficioso do arguido, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Comunique a decisão ao Inquérito penal n.o 5498/2011.
Macau, 10 de Maio de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
(vencido com declaração de voto que se junta a seguir)

編號:636/2014號(刑事上訴案)
上訴人:檢察院



表決聲明

本人並不同意上述裁判書的決定,並表決如下:

本人同意檢察官在上訴狀中的見解:“民事責任及刑事責任都旨在保護法益,但是,刑事責任是透過處罰行為人而達到保護及彌補利益的功能,民事責任則是行為人透過對被害人賠償而彌補被害人的損害,則一法律關係不受民法保護,并不必導致刑法也不予保護。
另一方面,即使被害人貸出金錢的行為屬於非法行為,有關金錢會被特區充公,這兩項事實都不會改變金錢的性質,亦不會影響詐騙罪的成立,因為詐騙罪所保護的是「財產」,亦即是具有金錢性質的利益,該罪是行為人以詭計取得他人財產作為前提,并不以財物給付者具有民法上享有請求返還權為必要。”

根據已證事實,本案嫌犯是通過詐欺行為導致被害人陷入錯誤或受欺騙,從而向其交付巨額款項,使嫌犯本人不當得利。對於交付給嫌犯的財產,無論被害人是否屬合法對其持有或佔有,以及是否會將之用作犯罪工具,均不會改變嫌犯行為屬詐騙的性質。嫌犯的行為,不會因被害人財產來源可能不合法或者被害人會將該等財產用作非法用途或犯罪工具,而變為正當或不可處罰。

因此,本案嫌犯江亞國應就詐騙罪的行為負上刑事責任。

2018年5月10日


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譚曉華 (第一助審法官)




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