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Processo n.º 163/2015 Data do acórdão: 2018-5-17 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– violação de segredo
– art.o 189.o do Código Penal
– segredo penalmente relevante
– conhecimento do segredo no exercício da profissão
– Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos
– regime de prevenção e controlo de tabagismo
– fiscalização do cumprimento da Lei n.o 5/2011
– art.o 28.o, n.o 1, da Lei n.o 5/2011
– art.o 15.o, n.o 1, do Regulamento Administrativo n.o 34/2003





S U M Á R I O


1. Segredo, para efeitos a relevar do disposto no art.o 189.o do Código Penal (que prevê o tipo legal de violação de segredo), significa, um facto (ou conjunto de factos) apenas conhecido de um círculo determinado (e, em princípio, restrito) de pessoas e em relação ao qual aquele a cuja esfera pertence tem a vontade, assente num interesse razoável, de que ele continue apenas conhecido daquele círculo ou (para além do círculo) de quem ele decidir.
2. A fórmula da lei “em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte” visa fundamentalmente limitar o sigilo penalmente protegido aos factos de que o agente tem conhecimento no exercício – por causa dele ou por ocasião dele, mas em estreita conexão com ele – da sua profissão ou ofício. Daí que não é segredo penalmente relevante aquilo que o agente conhece em veste puramente privada.
3. Não se optou, entretanto, na redacção da norma incriminadora em apreço, pela enumeração taxativa do universo de profissões ou ofícios obrigados ao dever de sigilo penalmente assegurado.
4. Conforme a matéria de facto provada em primeira instância, o número do telefone do ofendido por este usado para fazer queixa telefónica sob forma de anonimato é segredo para os efeitos do art.o 189.o do Código Penal.
5. Segundo o art.o 28.o, n.o 1, da Lei n.o 5/2011 (definidora do regime de prevenção e controlo de tabagismo), a fiscalização do cumprimento do disposto nesta lei compete também à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos.
6. O art.o 15.o, n.o 1, do Regulamento Administrativo n.o 34/2003 (definidor da organização e funcionamento da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos) estatui que os funcionários e agentes deste Serviço estão sujeitos ao dever de sigilo relativamente a factos e informações de que tomem conhecimento no exercício das suas funções.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 163/2015
(Recurso em processo penal)
Recorrente (arguido): A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 118 a 122 do subjacente Processo Comum Singular n.o CR4-14-0445-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), que o condenou como autor material de um crime consumado de violação de segredo, p. e p. pelo art.o 189.o do Código Penal (CP), na pena de 120 dias de multa, à quantia diária de MOP200,00, no total, pois, de MOP24.000,00 de multa, convertível, se não paga nem substituída por trabalho, em 80 dias de prisão, veio o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), tendo levantado as seguintes questões para pedir a sua absolvição (cfr., em detalhes, a sua motivação apresentada a fls. 138 a 145 dos presentes autos correspondentes):
– erro de direito (por não estar provado, no caso, que o segredo em causa foi obtido no exercício da sua actividade profissional, por não ser da sua incumbência profissional resolver caso de queixa do ofendido relativo ao controlo da qualidade do ar dentro de casino, pelo que a revelação por ele para outrem de um facto de que ele próprio tomou conhecimento de forma ocasional, ao atender ao telefonema do ofendido feito irregularmente para um telefone de uso exclusivo dos funcionários da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ), não pode estar sob a alçada da norma incriminatória do art.o 189.o do CP);
– para além da existência de erro notório por parte do Tribunal sentenciador na apreciação da prova (pois: resulta dos autos, na fundamentação da decisão recorrida, que o arguido recebeu instruções do seu superior hierárquico para investigar a razão da divulgação do número de telefone referido; conquanto o superior hieráquico não lhe tenha dito expressamente que tal investigação dependeria da identificação do ofendido, o arguido seguiu as instruções desse seu superior hierárquico e utilizou os meios ao seu alcance para o efeito; o cumprimento daquelas instruções, emanadas de quem legitimamente o arguido dependia, exigiu do arguido, pela análise que fez da situação, uma acertada divulgação do número de telefone do ofendido que o contactou, porque se lhe afigurou necessário à investigação que lhe foi superiormente exigida; de maneira que quem age diligentemente perante os seus superiores hierárquicos não viola segredo algum, porquanto prossegue interesses legítimos da instituição de que depende; exigir-se-a, portanto, que o arguido tivesse actuado com dolo (no sentido de que, ao divulgar o número de telefone do ofendido, representava os elementos objectivos do crime) ou com dolo eventual, o que, pelo referido acima, não se vislumbra nos autos; a conduta do arguido preencheria, assim (se a norma do art.o 189.o do CP punisse a sua conduta, o que não aconteceu) a norma do art.o 36.o do CP (obediência indevida desculpante) que é uma causa de exclusão da culpa, assente na falta de consciência da ilicitude, não censurável, do subordinado que cumpre uma ordem).
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 148 a 149v, no sentido de manutenção do julgado.
Subido o recurso, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 158 a 159v, pugnando também pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que a sentença ora recorrida se encontra proferida a fls. 118 a 122 dos autos, cuja fundamentação fáctica, probatória e jurídica se dá por aqui inteiramente reproduzida.
No acervo de factos provados em primeira instância, não se inclui qualquer facto no sentido de o arguido ter recebido instruções do seu superior hierárquico para investigar a razão da divulgação do número de telefone de uso do pessoal do seu Serviço (DICJ). E esse facto nem sequer foi descrito na acusação pública, e o arguido nem apresentou contestação à acusação para oferecer a sua versão fáctica das coisas.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, conhecendo:
Desde já, da questão de erro notório na apreciação da prova:
O arguido, um inspector da DICJ, construiu a tese de verificação desse vício com base na sua invocação, nuclearmente, de que tinha chegado a receber instruções do seu superior hierárquico para investigar a razão da divulgação do número de telefone de uso do pessoal do seu Serviço.
Sucede que no acervo de factos provados em primeira instância, não se inclui qualquer facto no sentido de o arguido ter recebido instruções do seu superior hierárquico para investigar a razão da divulgação desse número de telefone. E esse facto nem sequer foi descrito na acusação pública, e o arguido nem apresentou contestação à acusação para oferecer a sua versão fáctica das coisas. Daí que já não pode fazer questão na presente lide recursória a tese dele de ele ter recebido instruções do seu superior hierárquico para investigar a razão da divulgação do número de telefone de uso do pessoal do seu Serviço, o que, por decorrência lógica, prejudica a necessidade de conhecimento do argumento de verificação, no caso, da cláusula do art.o 36.o do CP.
Nota-se que após vistos, de modo crítico, os elementos de prova já referidos na fundamentação probatória do aresto recorrido, não se vislumbra que o Tribunal recorrido, aquando da formação da sua livre convicção sobre os factos, tenha violado quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor da prova, ou violado quaisquer leges artis a observar no campo jurisprudencial de julgamento da matéria de factos, pelo que sempre se pode julgar que não cometeu o Tribunal recorrido qualquer erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP.
Concluído assim pela inexistência de erro notório na apreciação da prova, é de decidir da restante parte do recurso com base na factualidade já dada por provada no texto da decisão recorrida.
Assim, no tangente ao alegado não preenchimento do tipo legal de violação de segredo previsto no art.o 189.o do CP por que vinha condenado o arguido em primeira instância:
Há que observar, desde já, que segredo, para efeitos a relevar do disposto no art.o 189.o do CP, significa, conforme o comentário tecido por MANUEL DA COSTA ANDRADE a propósito do preceito incriminador homólogo no Código Penal de Portugal, in COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL, PARTE ESPECIAL, TOMO I, dirigido por JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Coimbra Editora, 1999, página 778, 4.a parágrafo, “um facto (ou conjunto de factos) apenas conhecido de um círculo determinado (e, em princípio restrito) de pessoas e em relação ao qual aquele a cuja esfera pertence tem a vontade, assente num interesse razoável de que ele continue apenas conhecido daquele círculo ou (para além do círculo) de quem ele decidir”.
Conforme a matéria de facto provada em primeira instância, o número do telefone do ofendido por este usado para fazer queixa telefónica sob forma de anonimato é segredo para os efeitos do art.o 189.o do CP, nessa acepção doutrinária.
E ainda segundo o mesmo Ilustre Professor MANUEL DA COSTA ANDRADE, ibidem, página 781 a 782:
– A fórmula da lei “em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte” visa fundamentalmente limitar o sigilo penalmente protegido aos factos de que o agente tem conhecimento no exercício – por causa dele ou por ocasião dele, mas em estreita conexão com ele – da sua profissão ou ofício;
– Não é segredo penalmente relevante aquilo que o agente conhece em veste puramente “privada”;
– Assim, não está penalmente obrigado a segredo o advogado que, à mesa do café, ouve dizer que um seu vizinho cometeu um abuso de confiança no banco em que trabalha, mesmo que aquele vizinho seja seu cliente num processo de divórcio;
– Nesta linha, o segredo não exige a celebração efectiva de um contrato: o médico e o advogado estão obrigados a sigilo mesmo em relação a factos conhecidos de um cliente potencial, mesmo que em definitivo não venham a aceitar o patrocínio ou o tratamento. Mesmo que não se disponha a praticar o aborto solicitado por uma mulher, o médico fica vinculado a sigilo.
Sendo certo que, ainda de acordo com o mesmo Insigne Professor, ibidem, páginas 772 a 773: não se optou, na redacção da norma incriminadora em apreço, pela enumeração taxativa do universo de profissões ou ofícios obrigados ao dever de sigilo penalmente assegurado.
Assim, aplicando-se essas considerações doutrinárias ao caso concreto dos autos, é de julgar que diversamente do sustenado pelo recorrente na sua motivação, a matéria de facto dada por provada deu para o fazer responsabilizar pela autoria material de um crime consumado de violação de segredo do art.o 189.o do CP.
Na verdade, e juridicamente falando, não pode o recorrente alegar que a resolução do caso de queixa do ofendido relativo a controlo da qualidade do ar dentro de casino não é da sua incumbência funcional para a partir dessa alegação pretender a inaplicabilidade, a si, da norma incriminatória do art.o 189.o do CP.
É que no caso concreto, o recorrente tomou conhecimento do número do telefone que o ofendido usou para fazer tal queixa telefónica (dirigida ao número de telefone de uso por pessoal da DICJ em turno no casino de que o próprio ofendido era trabalhador) relativa à questão do controlo da qualidade do ar nesse casino. Se o recorrente não se encontrasse em turno como inspector da DICJ naquela madrugada nesse casino, não teria ele tomado conhecimento de tal número de telefone usado pelo ofendido para fazer tal queixa. Por isso, a factualidade provada em primeira instância é cabalmente subsumível à fórmula “de que tenha tomado conhecimento em razão do seu … emprego” empregue na legiferação da norma do art.o 189.o do CP.
Ademais, mesmo dentro da economia da tese jurídica defendida pelo recorrente, a tese dele não deixaria de decair em face nomeadamente ao disposto no art.o 28.o, n.o 1, da Lei n.o 5/2011 (definidora do regime de prevenção e controlo de tabagismo), segundo o qual a fiscalização do cumprimento do disposto nesta lei compete também à DICJ, ao que acresce a norma do n.o 1 do art.o 15.o do Regulamento Administrativo n.o 34/2003 (definidor da organização e funcionamento da DICJ) que estatui que os funcionários e agentes da DICJ estão sujeitos ao dever de sigilo relativamente a factos e informações de que tomem conhecimento no exercício das suas funções.
Por fim, a matéria de facto provada demonstra que o recorrente agiu nitidamente com dolo directo na prática deste crime em questão.
Improcede, assim, o recurso, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada em face da análise acima feita.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo arguido recorrente, com quatro UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos para os efeitos tidos por convenientes.
Macau, 17 de Maio de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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