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Processo nº 236/2018 Data: 17.05.2018
(Autos de recurso penal)

Assuntos : ”Direito de reunião e manifestação”.
“Aviso prévio”.
“Manifestação ilegal”.
Crime de “difamação (agravado)”.
Chefe da P.S.P..



SUMÁRIO

1. O “direito de reunião e de manifestação” é um dos direitos fundamentais consagrados no art.º 27.º da Lei Básica da RAEM para os residentes de Macau, encontrando-se também garantido no art. 1° da Lei n.° 2/93/M.

Porém, como sem esforço se mostra de concluir, o “direito de reunião e manifestação” não é “absoluto”, (ilimitado), passível de ser exercido de qualquer forma, modo, momento e local.

Não se duvida que, como “direito fundamental” que certamente é, deve a sua restrição estar sujeita ao “princípio da proibição do excesso”, devendo a sua limitação ser necessária, exigível e proporcional, sem que se ponha em causa o seu conteúdo essencial.

As restrições a qualquer direito fundamental apenas são válidas quanto tenham a menor amplitude possível e se reduzam ao estritamente necessário para tutela doutros interesses jurídicos de suficiente relevo.

Daí que tanto o seu “exercício” como as suas “restrições” estejam (e tenham que ser) regulamentadas, nelas se inserindo (v.g.) as restrições “espaciais”, (lugares públicos), e “temporais”, (certas horas do dia), assim como em relação à necessidade de prazos e de “aviso prévio”, de forma a permitir que as autoridades competentes possam, (nomeadamente, em virtude da sua natureza, número de participantes, hora e local projectado, etc…), ponderar e adoptar, atempadamente, as medidas consideradas pertinentes, com vista a assegurar a ordem pública e segurança, até mesmo, das próprias pessoas que vão participar na reunião/manifestação em questão.

2. Resultando de forma clara da matéria de facto dada como provada que o que ocorreu foi uma “manifestação em lugar público”, sendo a mesma “ilegal” porque sem “aviso prévio”, e visto até que fez a P.S.P. oportuna advertência quanto à relevância criminal da conduta do arguido ora recorrente, evidente é que verificados estão todos os elementos do ilícito do art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 2/93/M, (com referência ao art. 5° da mesma Lei), ao qual cabe a pena prevista para o crime de “desobediência qualificada”, (nos termos do art. 312° do C.P.M.).

3. Estando (também) provado que o ora recorrente, agindo de forma voluntária e consciente, imputou ao Chefe da P.S.P. factos atentatórios da sua honra e consideração pessoal e profissional, verificados estão todos os elementos típicos objectivos e subjectivos do crime de “difamação”, cometido com “publicidade” pelos meios utilizados e, “agravado”, pela qualidade (profissional) do referido ofendido.

4. Através da incriminação em causa, não se visa proteger a mera “susceptibilidade pessoal”, mas tão só a dignidade individual do cidadão, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas, assentes na sua dimensão normativo-pessoal, em que a “honra” é vista como bem jurídico complexo que inclui, quer o “valor pessoal” ou “interior” de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a sua própria “reputação ou consideração exterior”.

5. No crime de “difamação” (e injúria) não é exigível um qualquer dolo específico ou elemento peculiar do tipo subjectivo que se traduza no especial propósito de atingir o visado na sua honra e consideração, o designado animus injuriandi, admitindo os respectivos tipos legais qualquer das formas de dolo, incluindo o dolo eventual, sendo assim suficiente que o agente admita o teor ofensivo da imputação ou juízo formulados e actue conformando-se com ele, preenchendo-se o elemento subjectivo do tipo com a vontade de praticar o acto com a consciência de com ele se atribuir um facto ou se formular um juízo com significado ofensivo do bom nome ou consideração alheias.

O relator,

______________________

Processo nº 236/2018
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, arguido com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo, a final, a ser condenado como autor material da prática de 1 crime de “desobediência qualificada”, p. e p. pelo art. 5° e 14°, n.° 1 da Lei n.° 2/93/M, alterada e republicada pela Lei n.° 16/2008, (“Direito de Reunião e Manifestação”), e art. 312°, n.° 2 do C.P.M., na pena de 60 dias de multa, e 1 outro de “difamação agravado”, p. e p. pelo art. 174°, n.° 1, 177°, n.° 1, al. a), 178° e 129°, n.° 2, al. h) do C.P.M., na pena de 90 dias de multa.

Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 120 dias de multa, à taxa diária de MOP$50,00, perfazendo a multa de MOP$6.000,00 ou 80 dias de prisão subsidiária, e no pagamento de MOP$2.000,00 de indemnização ao ofendido dos autos; (cfr., fls. 152 a 160-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformado, o arguido recorreu, afirmando que a decisão recorrida padecia do vício de “erro notório na apreciação da prova” e “errada aplicação de direito”; (cfr., fls. 166 a 188).

*

Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 206 a 208-v).

*

Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Submetido a julgamento em processo comum perante tribunal colectivo, foi o ora recorrente A condenado, pela prática de um crime de desobediência qualificada, na pena de multa de 60 dias à taxa diária de MOP $50.00, e, pela prática de um crime de difamação agravada com publicidade, na pena de multa de 90 dias, igualmente à taxa diária de MOP $50.00, o que, em cúmulo jurídico, redundou numa pena de 120 dias de multa, no montante global de MOP $6000.00, com a alternativa de 80 dias de prisão se a multa não for paga ou substituída por trabalho.
Vem interpor recurso do acórdão condenatório, imputando-lhe os vícios de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 400.° n.° 2, alínea c), do Código de Processo Penal, e errada aplicação do direito, no que é totalmente rebatido pela minuta de resposta do Ministério Público.
Diga-se, desde já, que se afigura manifestamente improcedente a argumentação do recorrente, tal como a Exm.a colega faz notar na sua judiciosa resposta à motivação do recurso, cujo teor acompanhamos integralmente.
O recorrente traça a sua própria leitura da prova, que não esmiuça totalmente, mas apenas em parte, a favor das suas conveniências, adoptando uma visão característica de quem tem interesse directo no desfecho do caso.
Na verdade, o altifalante e o que transmitia eram apenas um adereço da manifestação. Mas não foi isso, ou apenas isso, que o tribunal valorou para integrar no conceito de manifestação a acção imputada ao recorrente. Em sede de fundamentação, o tribunal descreveu, com alguma riqueza de pormenor, o teor das mensagens do dia 14 de Março de 2016 dirigidas publicamente, pelo recorrente, aos transeuntes, contra a empresa seguradora visada, incentivando a que deixassem de ser adquiridos seguros desta companhia, e contra um apelidado malfeitor, identificado pelo nome, que acusava de criminoso de burla e de ter engendrado armadilhas para prejudicar os segurados. Estas mensagens e toda a encenação com roupas e cartazes vistosos e outros adereços incluindo o altifalante e a música que debitava, configuram uma inequívoca manifestação, pese embora o facto de ser levada a cabo por um único interveniente.
Não se detecta qualquer erro na apreciação da prova, e muito menos o notório previsto naquele inciso legal.
Por outro lado, contrariamente ao que sustenta o recorrente, após respigar afirmações de Gomes Canotilho e Vital Moreira, citados no acórdão de 30 de Maio de 2011 exarado no processo n.° 25/2011 do Tribunal de Última Instância, o exercício do direito de manifestação, para assim ser considerado, não tem que ter subjacentes propósitos ou motivações políticas. Nada inculca tal exigência, a qual não decorre nomeadamente da Lei Básica e da Lei 2/93/M. Aliás, desta última resulta até o contrário, na medida em que estipula prazos diferentes para os avisos conforme as manifestações sejam de cariz político e laboral ou doutro. O que aqueles autores referem é que, por norma, ou seja, em geral ou em regra, a maior parte dos casos de manifestação estão ancorados em propósitos ou motivações de índole política, o que resulta claro com o recurso à utilização do advérbio “normalmente”.
Portanto, a falta de motivação política também não retira à actuação protagonizada pelo recorrente em 14 de Março de 2016 os traços característicos de um acto de manifestação.
Logo, é improcedente o argumento sustentado no raciocínio segundo o qual não ocorreu desobediência qualificada porquanto nenhuma comunicação havia a dirigir ao IACM, dado não se estar perante uma manifestação.
Finalmente, e quanto à difamação, afigura-se evidente que não ocorrem as causas excludentes da punibilidade previstas no artigo 174.°, n.° 2, alíneas a) e b), do Código Penal, contrariamente ao que o recorrente intenta convencer.
Não foi demonstrado que as imputações propaladas contra o ofendido B, associadas ao favorecimento ou encobrimento da seguradora, tivessem sido feitas para realizar qualquer interesse legítimo. E também não ficou provada a veracidade das imputações, nem que houvesse fundamento sério para o recorrente as reputar verdadeiras, segundo os ditames da boa-fé.
Daí que também este argumento recursivo se manifeste improcedente.
Soçobra totalmente a argumentação do recorrente, pelo que deve rejeitar-se o recurso ou negar-se-lhe provimento”; (cfr., fls. 299 a 300-v).

*

Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 153-v a 154-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (não havendo factos por provar).

Do direito

3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou como autor material da prática de 1 crime de “desobediência qualificada”, p. e p. pelo art. 5° e 14°, n.° 1 da Lei n.° 2/93/M, alterada e republicada pela Lei n.° 16/2008, (“Direito de Reunião e Manifestação”), e art. 312°, n.° 2 do C.P.M., e 1 outro de “difamação agravado”, p. e p. pelo art. 174°, n.° 1, 177°, n.° 1, al. a), 178° e 129°, n.° 2, al. h) do C.P.M., fixando-lhe o Tribunal a pena única de 120 dias de multa, à taxa diária de MOP$50,00, perfazendo a multa de MOP$6.000,00 ou 80 dias de prisão subsidiária, e condenando também o arguido no pagamento de MOP$2.000,00 de indemnização ao ofendido dos autos.

Considera que o Acórdão recorrido padece do vício de “erro notório na apreciação da prova” e “errada aplicação de direito”.

Porém, evidente se nos apresenta que não se pode reconhecer razão ao ora recorrente, bastando para tal ter em consideração o teor do douto Parecer do Ministério Público que dá clara e cabal resposta às pretensões do recorrente, (e que aqui se dá como integralmente reproduzido para efeitos da decisão a proferir).

Seja como for, não se deixa de consignar o que segue.

Vejamos.

–– No que toca ao “erro notório na apreciação da prova”, temos repetidamente entendido que o mesmo apenas existe quando “se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 08.06.2017, Proc. n.° 286/2017, de 14.09.2017, Proc. n.° 729/2017 e de 04.04.2018, Proc. n.° 912/2017).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam, v.g., por gestos, comoções e emoções, da voz.
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 15.06.2017, Proc. n.° 249/2017, de 21.09.2017, Proc. n.° 837/2017 e de 07.12.2017, Proc. n.° 877/2017).

Com efeito, importa ter em conta que “Quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum”; (cfr., o Ac. da Rel. de Coimbra de 13.09.2017, Proc. n.° 390/14).

E como se consignou no recente Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16, “A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão”.

No caso, a apreciação da prova pelo Tribunal a quo apresenta-se equilibrada e sensata, não deixando de se explicitar de forma clara e lógica os motivos da convicção, (cfr., fls. 154-v a 156-v), não se vislumbrando qualquer desrespeito a (qualquer) regra sobre o valor da prova tarifada, regra de experiência ou legis artis, impondo-se pois a improcedência o recurso na parte em questão.

Importa ter em conta que, no caso, o Tribunal a quo ponderou um total de 5 depoimentos e um conjunto de elementos probatórios existentes nos autos, nomeadamente, nas fotografias e gravações das ocorrências, (cfr., fls. 52 a 63), que suportam, claramente, a sua convicção e decisão, mais não se mostrando de dizer sobre a questão.

–– Passemos agora para o alegado “erro na aplicação do direito”.

Pois bem, aqui, em essência, diz o recorrente que não cometeu os crimes pelos quais foi condenado, considerando que não estão verificados os seus elementos típicos.

Ora, (e como – bem – o demostra o Ministério Público), incorre o recorrente em patente equívoco, pois que a matéria de facto dada como provada – e que como se viu, não merece censura, sendo de se ter como definitivamente adquirida – foi correctamente qualificada como uma “manifestação” ilegal, e adequadamente enquadrada na previsão legal dos art°s 5° e 14° da Lei n.° 2/93/M, (por se tratar de uma “manifestação sem aviso prévio”, e assim, punível, como efectivamente foi, nos termos do art. 312° do C.P.M.), sendo a questão que o recorrente coloca uma (verdadeira) “falsa questão”.

Vejamos.

Como se afirmou no douto Acórdão do Vdo T.U.I. de 04.06.2014, Proc. n.° 33/2014, dúvidas não há que “o direito de reunião e de manifestação é um dos direitos fundamentais consagrados no art.º 27.º da Lei Básica da RAEM para os residentes de Macau, que se encontra também garantido na Lei n.º 2/93/M, cujo n.º 1 prevê expressamente que todos os residentes de Macau têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, em lugares públicos, abertos ao público ou particulares, sem necessidade de qualquer autorização e gozam ainda do direito de manifestação”; (no mesmo sentido, vd., o Ac. de 30.07.2014, Proc. n.° 95/2014, e, mais recentemente, o de 03.05.2018, Proc. n.° 37/2018).

Porém, como sem esforço se mostra de concluir, (e em sede do nosso Acórdão de 26.01.2017, Proc. n.° 744/2016, já o consignamos), o “direito de reunião e manifestação” não é “absoluto”, (ilimitado), passível de ser exercido de qualquer forma, modo, momento e local.

Seria – como é fácil concluir – o caos (total) e ninguém se entendia…

Não se duvida que, como “direito fundamental” que certamente é, deve a sua restrição estar sujeita ao “princípio da proibição do excesso”, devendo a sua limitação ser necessária, exigível e proporcional, sem que se ponha em causa o seu conteúdo essencial.

De facto, e como é sabido, as restrições a qualquer direito fundamental apenas são válidas quanto tenham a menor amplitude possível e se reduzam ao estritamente necessário para tutela doutros interesses jurídicos de suficiente relevo.

Daí que tanto o seu “exercício” como as suas “restrições” estejam (e tenham que ser) regulamentadas, nelas se inserindo (v.g.) as restrições “espaciais”, (lugares públicos), e “temporais”, (certas horas do dia), assim como em relação à necessidade de prazos e de “aviso prévio”, de forma a permitir que as autoridades competentes possam, (nomeadamente, em virtude da sua natureza, número de participantes, hora e local projectado, etc…), ponderar e adoptar, atempadamente, as medidas consideradas pertinentes, com vista a assegurar a ordem pública e segurança, até mesmo, das próprias pessoas que vão participar na reunião/manifestação em questão.

Nos termos do art. 5° da Lei n.° 2/93/M (alterada e republicada pela Lei n.° 16/2008):

“1. As pessoas ou entidades que pretendam realizar reuniões ou manifestações com utilização da via pública, de lugares públicos ou abertos ao público devem avisar, por escrito, o presidente do conselho de administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais, com a antecedência mínima de 3 dias úteis e a máxima de 15.
2. Quando as reuniões ou manifestações tenham carácter político ou laboral a antecedência mínima prevista no número anterior é reduzida para dois dias úteis.
3. O aviso deve indicar o objecto ou fim da reunião ou manifestação pretendida e o dia, hora, local ou trajecto previstos para a sua realização.
4. O aviso deve ser assinado por três dos promotores devidamente identificados pelo nome, profissão e morada ou, tratando-se de associações, pelas respectivas direcções.
5. A entidade que receber o aviso deve passar recibo comprovativo desse facto”.

E, prescreve o art. 14° da mesma Lei que:

“1. Quem realizar reuniões ou manifestações contrariando o disposto neste diploma incorre na pena prevista para o crime de desobediência qualificada.
2. As autoridades que, fora do condicionalismo legal, impeçam ou tentem impedir o livre exercício do direito de reunião ou manifestação incorrem na pena prevista no artigo 347.º do Código Penal e ficam sujeitas a procedimento disciplinar.
3. Os contramanifestantes que interfiram nas reuniões ou manifestações, impedindo o seu livre exercício, incorrem na pena prevista para o crime de coacção”; (sub. nosso).

Nesta conformidade, resultando de forma clara da matéria de facto dada como provada que o que ocorreu foi uma “manifestação em lugar público”, (note-se, pois, que o ora recorrente exibia cartazes com escritos e com dimensões consideráveis, e trazia consigo um altifalante, cfr., os factos dados como provados com o n.° 1 a 5, podendo-se também ver, v.g., as fotos de fls. 52 a 62 dos autos), sendo a mesma “ilegal” porque sem “aviso prévio”, e visto até que fez a P.S.P. oportuna advertência quanto à relevância criminal da conduta do arguido ora recorrente, evidente é que verificados estão todos os elementos do ilícito do transcrito art. 14°, n.° 1, (com referência ao art. 5° da mesma Lei), ao qual cabe a pena prevista para o crime de “desobediência qualificada”, (nos termos do art. 312° do C.P.M.), e de acordo com os quais foi o recorrente punido.

De facto, e como igualmente já decidiu o Vdo T.U.I., “o direito de manifestação não é necessariamente um direito colectivo, podendo haver manifestações individuais”, (cfr., o Ac. de 30.05.2011, Proc. n.° 25/2011), sendo o que, de forma evidente, aconteceu nos autos.

Porém, importa ter em conta que o “direito à manifestação”, como qualquer outro direito que legalmente nos assista, deve ser exercido de “boa fé”, “sem abusos” e sem (exagerado) sacrifício de terceiros.

Basta pois atentar que nos termos do art. 326° do C.C.M. se prescreve que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”, (sendo este “princípio do (não) abuso do direito” um princípio de toda e qualquer conduta em sociedade que se pretenda ser minimamente evoluída).

Aliás, nem doutra forma poderia ser.

Com efeito, como seria, e o que sucederia, se toda e qualquer pessoa que se sentisse desgostosa ou inconformada com qualquer situação decidisse sair à rua nas condições que o fez o ora recorrente, manifestando-se com cartazes de dimensões consideráveis e fazendo uso de um altifalante, em locais públicos sem qualquer restrição, (apenas por se considerar estar no exercício de um direito)?

Ora, como cremos que salta à vista, evidente se apresenta a resposta.

Dest’arte, na parte em questão, nenhuma censura merece a decisão recorrida – onde se fez correcta aplicação da Lei – e ociosas nos parecendo outras considerações, avancemos.

–– Quanto ao crime de “difamação agravado”, idêntica se apresenta a solução.

Vejamos.

Nos termos do art. 174° do C.P.M.:

“1. Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2. A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa-fé, a reputar verdadeira.
3. O disposto no número anterior não se aplica tratando-se da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada ou familiar.
4. A boa-fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação”.

Através da incriminação em causa, não se visa proteger a mera “susceptibilidade pessoal”, mas tão só a dignidade individual do cidadão, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas, assentes na sua dimensão normativo-pessoal, em que a “honra” é vista como bem jurídico complexo que inclui, quer o “valor pessoal” ou “interior” de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a sua própria “reputação ou consideração exterior”; (cfr., v.g., Faria Costa in “Com. Conimbricense do C.P., Parte Especial”, Tomo I, pág. 612, e o recente Ac. da Rel. de Évora de 26.04.2018, Proc. n.° 606/14).

E, no que ao elemento subjectivo deste crime respeita, mostra-se útil aqui ter em conta o considerado no Ac. da Rel. de Guimarães de 22.01.2018, Proc. n.° 154/15, onde se consignou que “É actualmente pacífico que nos crimes de difamação e injúria não é exigível um qualquer dolo específico ou elemento peculiar do tipo subjectivo que se traduzisse no especial propósito de atingir o visado na sua honra e consideração, o designado animus injuriandi, admitindo os respectivos tipos legais qualquer das formas de dolo incluindo o dolo eventual, sendo suficiente que o agente admita o teor ofensivo da imputação ou juízo formulados e actue conformando-se com ele (dolo eventual), preenchendo-se, pois, o elemento subjectivo do tipo com a vontade de praticar o acto com a consciência de com ele se atribuir um facto ou formular um juízo com significado ofensivo do bom nome ou consideração alheias”.

Por sua vez, prescreve o art. 177° do mesmo C.P.M. que:

“1. Se, no caso dos crimes previstos nos artigos 174.º, 175.º e 176.º,
a) a ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação, ou,
b) tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação, as penas da difamação ou injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
2. Se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias”.

E, nos termos do seu art. 178°:

“As penas previstas nos artigos 174.º, 175.º e 177.º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea h) do n.º 2 do artigo 129.º, no exercício das suas funções ou por causa delas”.

Ora, no caso dos autos, está (claramente) provado que o ora recorrente, agindo de forma voluntária e consciente, imputou ao Chefe da P.S.P. B factos, atentatórios da sua honra e consideração pessoal e profissional, verificados estando todos os elementos típicos objectivos e subjectivos do crime de “difamação”, cometido com “publicidade” pelos meios utilizados e, “agravado”, pela qualidade (profissional) do referido ofendido.

Com efeito, e ante o circunstancialismo fáctivo dado como comprovado, agiu o ora recorrente de forma dolosa e que se nos apresenta totalmente despropositada e desnecessária, apoucando e ridicularizando, em público, o já identificado ofendido, acusando-o de “parcialidade” e “abuso de poder”, (cfr., a matéria de facto dada como provada com os n.°s 6 a 8), sendo esta uma conduta que excede o limite do razoável e tolerável e em relação à qual, especialmente, em face do contexto situacional em questão, não se pode ficar indiferente; (cfr., neste sentido, abordando uma “injúria a agentes da autoridade”, o Ac. da Rel. de Lisboa de 11.01.2018, Proc. n.° 68/17).

Perante o que se deixou exposto, visto está que a decisão recorrida não merece a censura que lhe é dirigida, pois que, também na parte em questão se limitou a aplicar correctamente o direito.

Aqui chegados, tudo visto, e outra questão não havendo a tratar, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam julgar improcedente o recurso.

Pagará o recorrente a taxa de justiça de 6 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 17 de Maio de 2018



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José Maria Dias Azedo
_________________________
Chan Kuong Seng
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Tam Hio Wa

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