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Processo n.º 16/2018
Recurso penal
Recorrentes: A, B, C e D
Recorrido: Ministério Público
Data da conferência: 15 de Junho de 2018
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima

Assuntos: - Ofensa grave à integridade física, agravado pelo resultado
- Comissão do crime por omissão
- Causalidade adequada
- Dever jurídico de garante

SUMÁRIO
1. Decorre do art.º 9.º do Código Penal que o crime de resultado não há de ser cometido por acção, mas também pode ser por omissão, sendo que a lei estabelece uma equiparação da acção à omissão.
2. A punição de omissão depende da verificação de dois pressupostos, um referente à adequação da omissão a evitar o resultado e outro é a imposição de um dever jurídico na pessoa do omitente de evitar o resultado.
3. No caso de a vítima ter sofrido no Comissariado do Corpo de Polícia de Segurança Pública agressões graves que vieram a provocar a sua morte, se os agentes policiais não tomaram tempestivamente medidas para impedirem as agressões nem prestaram tempestivamente assistência necessária à vítima, mesmo que tivessem conhecimento de tais agressões, praticaram, por omissão, o crime de ofensa grave à integridade física, agravado pelo resultado de morte, p.p. pelo art.º 138.º, al. c), conjugado com o art.º 139.º n.º 1, al. b), ambos do Código Penal.

A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
Por Acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base em 15 de Dezembro de 2015, após o novo julgamento feito por reenvio do processo, A, B, C e D (1.º a 4.º arguidos e demandados cíveis) foram condenados pela prática, em co-autoria material, por omissão e na forma consumada, de um crime de ofensa grave à integridade física p.p. pelo art.º 138.º, al. c), conjugado com o art.º 139.º n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, na pena de 7 anos de prisão.
E foram ainda condenados a pagar, solidariamente com a Região Administrativa Especial de Macau (5.ª demandada cível), aos demandantes cíveis a quantia indemnizatória total de MOP$1,700,000.00.
Inconformados com a decisão, recorreram todos os arguidos para o Tribunal de Segunda Instância, que negou provimento ao recurso, com manutenção da decisão de 1.ª instância.
Vêm agora os mesmos arguidos recorrer para o Tribunal de Última Instância, formulando na sua motivação do recurso as seguintes conclusões:
1.ª A factualidade apurada e dada por assente nos tribunais de instância e mormente no TSI não se mostra suficiente nem suporta a decisão condenatória proferida.
2.ª Incorreu, em consequência, o TSI, em erro de direito ao fundar a condenação em factos manifestamente insuficientes para a condenação.
3.ª No n.º 1 do art.º 9.º do CP consagra-se a teoria da causalidade adequada para resolver a imputação objectiva do resultado ao agente e ainda a equiparação da acção à omissão nos casos em que, como acontece neste caso, o tipo legal compreende um certo resultado.
4.ª Tal equiparação fica, porém, sujeita às particularidades dos n.ºs 2 e 3.
5.ª Para que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre um resultado e uma acção não basta que a realização concreta daquele se não possa conceber sem esta, sendo necessário que, em abstracto, a acção seja idónea para causar o resultado, isto é, que este último seja uma consequência normal típica daquela.
6.ª O processo lógico de apreciação deve ser o de uma prognose póstuma, isto é, um juízo de idoneidade referido ao momento em que a acção se realiza, como se a produção do resultado não se tivesse ainda verificado.
7.ª A exigibilidade da existência sobre o agente de um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado como requisito para a equiparação, não pode perder de vista que um alargamento desmesurado das fontes donde deriva poria em sério risco as exigências de segurança das pessoas e de determinabilidade dos tipos incriminadores que constitucionalmente se ligam ao princípio da legalidade em direito penal.
8.ª A equiparação da omissão à acção deverá ser aferida in casu, tendo o juiz que proceder a uma avaliação relativa à ilicitude global da conduta, sendo que, caso o desvalor do non facere não equivalha ao desvalor da acção, não poderá ser feita essa equiparação.
9.ª Exige-se ao preenchimento do tipo (globalmente considerado) uma rigorosa delimitação da relevância da omissão, sem a qual se criaria uma situação que escaparia ao domínio do princípio da tipicidade penal e da legalidade.
10.ª O tipo omissivo, ao contrário da comissão por acção, é complexo, impondo uma interpretação rigorosa quanto à verificação, existência e caracterização da posição de garante.
11.ª O dever jurídico que integra e determina a posição de garante tem de ser interpretado e integrado como qualquer outro elemento da tipicidade, não bastando por isso uma qualquer relação formal-situacional decorrente da lei, de contrato ou de uma situação de ingerência.
12.ª A integração típica, para permitir a integração da posição de garante, exige que este conheça a situação típica, possua as forças próprias necessárias e represente a acção exigida com fim possível da sua vontade.
13.ª Analisando o caso e a fundamentação oferecida pelas instâncias, maxime o TSI, para fazer operar a norma do art.º 9.º do CP, não logramos encontrar nos factos provados ancoragem bastante para poder integrar em relação aos arguidos uma posição de garantes com a densidade necessária à definição de um elemento típico.
14.ª Do que decorre que a posição de garante atribuída aos recorrentes foi deduzida e construída sem bases sólidas que preencham as exigências legais.
15.ª Em decorrência dos pressupostos e conclusões do presente recurso, deverão os recorrentes ser igualmente absolvidos do pagamento da indemnização de MOP$l,700.000.00 à mãe da infeliz vítima.
16.ª A decisão recorrida violou, ao fazer a sua aplicação num quadro que impunha a sua desaplicação, as normas dos art.ºs 138.º, 139.º e 9.º do Código Penal; e violou ainda o princípio in dubio pro reo.

Respondeu o Ministério público, terminando a sua resposta com as seguintes conclusões:
1) Nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 9.º do Código Penal, é necessário haver duas condições extraordinárias para o cometimento, por omissão, de um crime de resultado que é geralmente produzido por acção;
2) A diferença é que existe nexo de causalidade adequado entre a omissão e o resultado;
3) Porém, o que se diferencia da acção é que o nexo de causalidade da omissão consiste em que a omissão não impede a ocorrência dum resultado lesante;
4) A par disso, a lei exige expressamente que sobre o omitente recai um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado;
5) Da análise dos factos provados se vislumbra manifestamente que existem no vertente caso as supracitadas duas condições legais da comissão por omissão;
6) Conforme o disposto na alínea l) do n.º 2 do art.º 8.º do Estatuto dos Militarizados, os quatro Recorrentes, como agentes policiais, deviam salvaguardar a segurança da vida e do património dos residentes, contudo, no exercício das suas funções, permitiram, dolosamente, a ofensa à vítima e não a impediram imediatamente, bem como atrasaram a prestação de assistência necessária à vítima, desencadeando, finalmente, a morte da mesma;
7) Tanto da conduta subjectiva como da objectiva se revela manifestamente que os quatro Recorrentes praticaram o crime de ofensa qualificada à integridade física por omissão;
8) Assim sendo, é correcta a aplicação da lei efectuada no acórdão recorrido proferido pelo TSI, não se verificando nenhum erro.

Nesta instância, o Ministério Público mantém a posição já assumida na resposta à motivação do recurso.
Foram corridos vistos.
Cumpre decidir.

2. Factos
- Nos autos foram considerados provados os seguintes factos:
1. Em 28 de Março de 2007, por volta da 01h30, o 1º Arguido A chefiou o 3º Arguido C e o guarda E a realizar a operação de combate à prostituição na zona da Rua de Pequim e da Rua de Cantão, e foram interceptados F, G, H, I e a vítima J nas proximidades do Hotel Holiday Inn. Na dada altura, o 2º Arguido B, o 4º Arguido D e os guardas K, L e M prestaram suporte no local em causa.
2. Por volta da 01h40, os quatro Arguidos e os guardas supra mencionados levaram F, G, H, I e a vítima J para o Comissariado n.º 3 do Corpo de Polícia de Segurança Pública para mais investigação.
3. Após terem chegado ao Comissariado n.º 3, os guardas E, L e M levaram F, G, H e I para a sala de piquete para a realização do procedimento de identificação.
4. Enquanto os quatro Arguidos e o guarda K levaram a vítima para o escritório do Núcleo de Investigação para uma investigação mais profunda. No escrito do Núcleo de Investigação, ao realizar a revista corporal da vítima e das coisas que se encontravam na posse da mesma, o guarda K encontrou na carteira dela um comprimido suspeito de ser substâncias psicotrópicas (após o exame feito pela Polícia Judiciária, verificou-se que tal comprimido não era medicamento abrangido pelo Decreto-Lei n.º 5/91/M), em seguida, o guarda K questionou a vítima quanto ao comprimido em causa e, por seu turno, a vítima deu, subitamente, um soco na cara do guarda K, causando-lhe ferimento e sangramento no dorso nasal.
5. Reparada a situação, os quartos Arguidos impediram logo que a vítima praticasse o acto em apreço, bem como a subjugaram imediatamente, enquanto o guarda lesado K se dirigiu à sala de piquete para descansar e, posteriormente, foi transportado pela ambulância ao Centro Hospitalar Conde de S. Januário para ser submetido ao tratamento médico.
6. A seguir, no escritório do Núcleo de Investigação, a vítima foi algemada nas mãos e nos pés com respectivamente duas algemas e, na altura, os quatro Arguidos estavam presentes no local em causa.
7. Pouco antes das 02h57, em situação desconhecida, a vítima sofreu agressões graves de que lhe resultaram lesões fatais, causando imensas dores e vários ferimentos no corpo, na face e nos pés da mesma. Os quatro Arguidos não tomaram, tempestivamente, medidas para impedirem as agressões e prestaram assistência, mesmo que tivessem conhecimento das agressões à vítima.
8. As lesões sofridas pela vítima são detalhadamente descritas no Relatório de autópsia do cadáver de fls. 258 a 271 dos autos e expostas nas figuras constantes dos autos.
9. Pelas agressões em apreço, a vítima começou a perder a consciência e, depois, por não se verificar o sinal do melhoramento da situação da vítima, por volta das 03h30, foi chamada uma ambulância para levar a vítima ao Centro Hospitalar Conde de S. Januário para ser socorrida. Confirmou-se que a vítima já não tinha sinal de vida ao chegar ao hospital às 03h35, e, às 04h00 do mesmo dia, foi declarado o óbito da vítima.
10. A morte da vítima foi causada pelo choque por hemorragia resultante da laceração do mesentério e da ruptura e deslocamento do vaso sanguíneo provocadas pelo impacto violento externo de carácter contundente no abdómen.
11. Os quatro Arguidos, como agentes policiais, agiram, de forma livre, voluntária e consciente, ao praticar o acto em causa, no sentido de não impedir as agressões à vítima mesmo que tivessem perfeito conhecimento das agressões graves e das dores especiais sofridas pela vítima, bem como violar deliberadamente os deveres que lhes foram conferidos por lei e não prestar assistência esperada e exigida por lei, desencadeando, enfim, lesões graves e morte da vítima por agressão.
12. Os quatro Arguidos sabiam perfeitamente que a sua conduta era crime e seria punida por lei.
- Além dos supracitados factos descritos na acusação, provaram-se ainda os seguintes factos relevantes mencionados no pedido cível de indemnização constante de fls. 389 a 398 dos autos:
13. Os quatro Demandados são guardas do CPSP e a 5ª Demandada é a empregadora dos primeiros.
14. A Demandante N é a mãe da vítima J.
15. J nasceu a X de X de 1971 no Interior da China. Completou 36 anos de idade na altura da ocorrência do facto.
16. A vítima exercia funções de bate-fichas nos casinos em Macau antes de morrer.
17. A vítima era solteira antes de morrer.
18. J sofreu dores extremamente severas quando foi agredida.
19. Por morte súbita da vítima, a Demandante N sofreu dores e tristeza extremamente profundas.
Mais se provaram os seguintes factos:
20. O 1º Arguido declarou que tinha como habilitações académicas o ensino universitário completo, exercia funções de Guarda-ajudante que auferia um rendimento mensal de cerca de MOP44.000,00, e tinha a mãe, a esposa e quatro filhos a seu cargo.
21. O 2º Arguido declarou que tinha como habilitações académicas o ensino secundário complementar completo, exercia funções de Guarda que auferia um rendimento mensal de quantia correspondente ao índice 290 da tabela indiciária, e tinha os pais e a esposa a seu cargo.
22. O 3º Arguido declarou que tinha como habilitações académicas o ensino secundário completo, exercia funções de Guarda de primeira que auferia um rendimento mensal de cerca de MOP37.000,00, e tinha o pai, os sogros e duas filhas a seu cargo.
23. O 4º Arguido declarou que tinha como habilitações académicas o ensino secundário complementar completo, exercia funções de Guarda que auferia um rendimento mensal de cerca de MOP32.000,00, e tinha os pais a seu cargo.
24. Conforme os certificados de registo criminal, os quatro Arguidos são delinquentes primários.
- Factos não provados:
1. Não se provou: Por volta da 01h50, os quatro Arguidos pontapearam a vítima nas costas, fazendo com que esta embatesse contra a mesa e as cadeiras postas na sala em causa até ficassem viradas ao contrário, com vista à retaliação do ferimento causado pela vítima a um colega deles, K.
2. Não se provou: Posteriormente, os quatro Arguidos algemaram a vítima nas mãos e nos pés com respectivamente duas algemas e, depois, dois deles pressionaram fortemente a parte superior do corpo e as mãos da vítima, e um deles pressionou fortemente os pés da mesma, fazendo com que esta perdesse a capacidade de se movimentar e ficasse presa deitada no banco comprido exibido na figura 8 de fls. 177 dos autos, além disso, um outro Arguido, várias vezes, bateu fortemente os pés da vítima com um objecto de forma dum cassetete, causando imensas dores à vítima e fazendo com que esta esbracejasse fortemente; em seguida, um Arguido pisou ou pontapeou fortemente a vítima na cara e deixou uma impressão de sapato em sangue sobre a cara da mesma (vide figura de fls. 8 dos autos).
3. Não se provou: No decurso das agressões, a vítima esbracejou fortemente por se sentir dores extremamente severas, a par disso, ela foi algemada nas mãos e nos pés, por isso, as algemas em apreço causaram-lhe, directa e necessariamente, equimose em forma de barra nos pulsos e nas partes inferiores das pernas inferiores que estão próximas ao tornozelo (vide figuras de fls. 14, 15, 17, 18 e 20 dos autos).
4. Não se provou: A vítima resistiu fortemente por se sentir dores, pelo que dois dos Arguidos precisaram de pressionar com força a parte superior do corpo da vítima, causando-lhe, directa e necessariamente, fractura das 3ª e 4ª costelas do lado esquerdo e das 9ª e 10ª costelas do lado direito (vide figura de fls. 266 dos autos).
5. Não se provou: O Arguido, várias vezes, bateu fortemente os pés da vítima com um objecto de forma dum cassetete, causando-lhe, directa e necessariamente, equimose nos pés e fractura da parte distal do metatarso do lado direito (vide figuras de fls. 262 e 268 dos autos e alínea 2) da Conclusão de medicina legal de fls. 271 dos autos).
6. Não se provou: O Arguido pisou ou pontapeou fortemente a vítima na cara, causando-lhe, directa e necessariamente, equimose em forma de barra na mandíbula (vide figuras de fls. 7, 8 e 260 dos autos).
7. Não se provou: Após as agressões, o 1º Arguido A e o 2º Arguido B permaneceram no escritório do Núcleo de Investigação para vigiarem a vítima, enquanto o 3º Arguido C e o 4º Arguido D deslocaram-se à sala de piquete para auxiliarem na investigação do demais suspeitos. Por volta das 02h00, o 3º Arguido C e o 4º Arguido D levaram um indivíduo do sexo masculino que não conseguia exibir o seu documento de identificação, ao Hotel Fortuna para procederem à respectiva investigação e, em seguida, por volta das 02h10, regressaram à esquadra de Polícia.
8. Não se provou: Por volta das 02h50, o 3º Arguido C e o 4º Arguido D chegaram novamente ao escritório do Núcleo de Investigação e, nessa altura, os quatro Arguidos prepararam agredir novamente a vítima.
9. Não se provou: Portanto, os quatro Arguidos levantaram novamente a vítima que se encontrava deitada no chão e cheia de lesões, e pressionaram-na em frente duma “mesa de Mahjong” exibida na figura 8 de fls. 177 dos autos, ficando a mesma com o abdómen encostado à “mesa de Mahjong”, e, posteriormente, várias vezes, pontapearam-na fortemente na cintura.
10. Não se provou: Os vários pontapés fortes dados à cintura da vítima causaram, directa e necessariamente, à mesma fractura da 12ª costela do lado esquerdo, laceração de artéria e veia do mesentério, hemorragia ponteada na parede posterior da parte descida do duodeno e hemorragia na cabeça dos pâncreas (vide figuras de fls. 22 e 263, lesões detalhadamente descritas no Relatório de autópsia do cadáver de fls. 258 a 271 dos autos e no Auto de inquirição de fls. 334 a 335 dos autos).
11. Não se provou: Pelas duas agressões em apreço, a vítima começou a perder a consciência, pelo que um dos Arguidos deitou um líquido na cara da vítima, tentando fazê-la a retomar a consciência, porém, ainda não se verificou o sinal do melhoramento da situação da mesma.
12. Não se provou: Os quatro Arguidos agiram, de forma livre, voluntária e consciente, ao praticar o acto em causa, no sentido de agredir, deliberadamente, por meio de acordo e cooperação entre si, várias vezes a vítima com objecto contundente, socos e pontapés, causando-lhe dores especiais e, enfim, morte pelas lesões graves.

3. Direito
Alegam os recorrentes que a factualidade apurada e dada por assente nos autos não se mostra suficiente nem suporta a decisão condenatória proferida, que os condena pela prática, por omissão, de um crime de ofensa grave à integridade física.
A questão suscitada prende-se com a aplicação no presente caso concreto do art.º 9.º do Código Penal.
Vejamos se assiste razão aos recorrentes.

O art.º 9.º do Código Penal prevê o seguinte:
Artigo 9.º
(Comissão por acção e por omissão)
1. Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.
2. A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.
3. Havendo lugar a punição nos termos do número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada.
Decorre da norma acima transcrita que o crime de resultado não há de ser cometido por acção, mas também pode ser por omissão, sendo que a lei estabelece uma equiparação da acção à omissão, omissão esta que também é punida se for adequada a evitar o resultado e se sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitá-lo.
Nos crimes de resultado, “tanto a acção como a omissão (quando o crime admite esta forma de o praticar) significam o mesmo para a lei, são equiparadas, desde que idóneas, adequadas à produção desse resultado, o que no fundo vale por dizer que os crimes de resultado podem igualmente ser cometidos (em certas circunstâncias, claro …) por quem tenha um dever jurídico de agir.
Só que, quanto à acção, para além da adequação da conduta ao resultado, não se exige mais nada, enquanto que relativamente à omissão será de exigir não só essa adequação como ainda a existência de um dever jurídico que obrigue o omitente a agir para que o resultado não ocorra.”1
E “A acção distingue-se da omissão: na acção, o agente desencadeia um processo causal que cria ou aumenta o perigo de verificação de uma lesão do bem jurídico (resultado material); na omissão, o agente apenas não desencadeia ou interrompe um processo causal que evite a concretização de um perigo preexistente de lesão do bem jurídico”.2
A punição de omissão depende da verificação de dois pressupostos, um referente à adequação da omissão a evitar o resultado e outro é a imposição de um dever jurídico na pessoa do omitente de evitar o resultado.
Consagra-se no n.º 1 do art.º 9.º uma teoria de causalidade adequada, pois a lei exige a adequação da acção ou omissão a produzir o resultado ou a evitá-lo, para que a acção ou omissão seja punida.
Nos crimes de resultado cometidos por omissão, é indispensável que a abstenção de agir seja adequada a produzir o resultado incluído no tipo legal.
Por outro lado e relativamente ao exigido dever jurídico, que recai sobre o omitente para evitar o resultado, “afigura-se agora inequívoco que a comissão por omissão é punida quando o dever de agir é imposto por preceito legal, por situação contratual ou profissional, ou ainda por um dever de ordem jurídica que pessoalmente obrigue o omitente a evitar o resultado. Ficaram, portanto, excluídos deveres oriundos em outras fontes, designadamente os morais”.3
No que concerne concretamente ao crime de ofensa à integridade física, explica-se que o preenchimento do tipo legal em análise tanto pode ter lugar por acção, como por omissão quando sobre o omitente recaia um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado (dever jurídico de garante). Está-se perante uma lesão da integridade física cometida por omissão quando, por exemplo, o pai não administra ao seu filho o medicamento indicado pelo médico para eliminar ou atenuar as dores sofridas em virtude de doença terminal, quando o marido não chama o médico perante a doença da mulher, quando o dono da casa não providencia a devida assistência médica a um seu empregado que se encontra doente, quando o médico de serviço não comparece, sofrendo o seu paciente de dores cada vez maiores, ou o polícia não intervém face a agressões físicas dirigidas a quaisquer pessoas (passantes, anti-grevistas, inimigos políticos; considerando existir aqui um direito individual à protecção policial).4

Passando rapidamente por tais considerações doutrinais, mesmo breves, é de voltar ao caso concreto para apurar a responsabilidade penal dos recorrentes, com base nos factos considerados provados nos autos.
Ora, decorre da factualidade assente o seguinte:
- Em 28 de Março de 2007, por volta da 01h30, e numa operação policial, a vítima J foi interceptado e levado pelos recorrentes e outros guardas policiais para o Comissariado n.º 3 do Corpo de Polícia de Segurança Pública, a fim de ser feita mais investigação.
- Quando se encontrava no escritório do Núcleo de Investigação, a vítima deu, subitamente, um soco na cara do guarda K, que questionou a vítima quanto ao comprimido que foi encontrado na posse deste.
- Reparada a situação, os recorrentes impediram logo que a vítima praticasse o acto em apreço, bem como a subjugaram imediatamente.
- A seguir, a vítima foi algemada nas mãos e nos pés com duas algemas e, na altura, os recorrentes estavam presentes no local.
- Pouco antes das 02h57, em situação desconhecida, a vítima sofreu agressões graves de que lhe resultaram lesões fatais, com imensas dores e vários ferimentos no corpo, na face e nos pés da mesma.
- Os recorrentes não tomaram, tempestivamente, medidas para impedirem as agressões nem prestaram assistência, mesmo que tivessem conhecimento das agressões à vítima.
- Pelas agressões em apreço, a vítima começou a perder a consciência e, depois, por não se verificar o sinal do melhoramento da situação da vítima, por volta das 03h30, foi chamada uma ambulância para levar a vítima ao Centro Hospitalar Conde de S. Januário para ser socorrida.
- A vítima já não tinha sinal de vida ao chegar ao hospital às 03h35, e, às 04h00 do mesmo dia, foi declarado o óbito da vítima.
- Os recorrentes, como agentes policiais, agiram, de forma livre, voluntária e consciente.
Ora, os recorrentes não tomaram tempestivamente medidas para impedirem as agressões à vítima nem lhe prestaram tempestivamente assistência necessária, mesmo que tivessem conhecimento das agressões, tão graves que vieram a provocar a morte da vítima.
É de dizer que os recorrentes não fizeram tempestivamente nada para evitar o resultado, que é a morte da vítima.
A omissão, ou seja, a abstenção de agir por parte dos recorrentes revela-se, sem dúvida, adequada a provocar a morte da vítima, daí que a causalidade adequada existente entre a omissão e o resultado.
Por seu turno, afigura-se-nos evidente que sobre os recorrentes, enquanto agentes da PSP, recaia um dever jurídico que pessoalmente os obriga a evitar a morte da vítima.
Nos termos do art.º 17.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, para além dos deveres gerais, “constituem ainda deveres dos militarizados, inerentes à especificidade das atribuições institucionais das corporações e organismos das FSM, os constantes dos respectivos diplomas orgânicos e regulamentos e da legislação sobre a Segurança Interna”.
E ao abrigo do disposto nos art.ºs 2.º e 3.º do Regulamento Administrativo n.º 22/2001, que estabelece a organização e funcionamento do Corpo de Polícia de Segurança Pública, esta entidade desempenha funções como garante da segurança de pessoas e bens e como órgão de polícia criminal, tendo como missão geral assegurar a ordem e a tranquilidade públicas, exercer a prevenção, a investigação e o combate à criminalidade bem como ainda defender os bens públicos ou privados, etc..
No âmbito da sua missão geral, são atribuições do CPSP garantir o exercício dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, assegurar o respeito pela legalidade, garantindo a manutenção da ordem, segurança e tranquilidade públicas, prevenir a criminalidade e tomar, até à intervenção do órgão de polícia criminal competente, as providências urgentes indispensáveis para evitar a prática ou para descobrir e deter os agentes de qualquer crime de cuja preparação ou execução tenha conhecimento.
Assim sendo, é de afirmar que, ao abster-se de agir, no sentido de não impedir as agressões à vítima nem prestar auxílio à vítima, mesmo com perfeito conhecimento das agressões graves sofridas por este, violaram deliberadamente os recorrentes os deveres que lhes são impostos por lei, nomeadamente de combater à criminalidade, defender os bens privados e ainda de tomar as providências urgentes indispensáveis para evitar a prática de crimes.
Atenta a factualidade assente, afigura-se-nos suficiente a matéria de facto dada como provada nos autos para a decisão que condena os recorrentes pela prática, em co-autoria material, por omissão e na forma consumada, de um crime de ofensa grave à integridade física p.p. pelo art.º 138.º, al. c), conjugado com o art.º 139.º n.º 1, al. b), ambos do Código Penal.
Não se vislumbra a verificação do vício imputado pelos recorrentes.

É de concluir pela improcedência do recurso interposto pelos recorrentes.

4. Decisão
Face ao expendido, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, com a taxa de justiça fixada em 8 UC.

Macau, 15 de Junho de 2018

   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

1 Manuel Leal-Henriques, Anotado e Comentário ao Código Penal de Macau, Volume I, p. 181.
2 Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, p. 72.
3 Maia Gonçalves, Código Penal Português, 17.ª edição, p. 92.
4 Comentário Conimbricense do Código Penal, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Tomo I, p. 210.
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