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Proc. nº 1153/2017
Recurso jurisdicional em matéria cível
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 31 de Maio de 2018
Descritores:
- Divórcio litigioso
- Separação de facto

SUMÁRIO:

A separação de facto, enquanto fundamento do divórcio litigioso, face ao art. 1637º, al. a), do CC, constitui um conceito jurídico e conclusivo, que deve ser traduzido em factos que, uma vez provados, demonstrem a verificação de uma ruptura da comunhão de vida entre os cônjuges por mais de dois anos consecutivos e a inexistência do propósito por parte de ambos, ou de um deles, em restabelecê-la, nos termos do art. 1638º, nº1, do CC.


Proc. nº 1153/2017

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I - Relatório
A, casado, de nacionalidade filipina, titular do bilhete de residente não permanente de Macau nº1XXXXX2(8), emitido em 19.09.2008, com residência na Rua XX, Edifício “XX”, nºXX, XXº andar “XX” Macau, -----
Intentou acção de divórcio no TJB (Proc. nº FM1-13-0142-CDL) contra a sua mulher, -----
B, casada, de nacionalidade XX, com residência no nºXX XX road, XX City, XX XX.
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A ré foi citada editalmente, tendo sido a partir de então representada pelo Ministério Público, que, porém, não deduziu contestação.
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O tribunal, por sentença de 17/07/2017, julgou improcedente a acção e absolveu a ré do pedido.
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É contra esta sentença que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional pelo autor da acção, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso tem por objecto a Sentença de fls. 197 a 198vº dos Autos que julgou improcedente a acção e, consequentemente, absolveu a Ré, ora Recorrida, do pedido de divórcio formulado pelo Autor, ora Recorrente.
2. O Recorrente não se conforma com a Sentença em causa, que padece do vício de deficiência de julgamento da matéria de facto, o que legitima que se requeira a sua anulação e a repetição do julgamento, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 629º do CPC.
3. O Recorrente casou com a Recorrida em 12 de Abril de 1988, sustentando o pedido formulado na presente acção na separação de facto entre os cônjuges por dois anos consecutivos, ao abrigo do disposto no artigo 1637º, alínea a) do Código Civil.
4. O Tribunal a quo, interpretando o artigo 1638º, nº 1 do CC no sentido de que a separação de facto só se verifica se estiverem simultaneamente preenchidos o elemento objectivo, que consiste na inexistência de comunhão de vida entre os cônjuges, e o elemento subjectivo, que consiste no propósito de não restabelecer essa comunhão de vida por ambos ou por um dos cônjuges, decidiu que não foi demonstrado o primeiro (elemento objectivo).
5. Foi alegado no artigo 4º da Petição Inicial que o Recorrente e a Recorrida estão separados de facto desde 1993, ou seja, há mais de 20 anos.
6. Realizada a audiência de discussão julgamento, efectuada sem a prévia selecção da matéria de facto face à citação edital da Ré e ausência de contestação, a M.mª Juiz a quo proferiu o despacho sobre a matéria de facto em 23 de Junho de 2017.
7. Nesse despacho não foi incluída a matéria constante do artigo 4º da PI, não tendo sido dada resposta à mesma.
8. O Recorrente apresentou reclamação, ao abrigo do disposto no artigo 556º, n.º 5 do CPC, com fundamento na falta de pronúncia sobre a matéria de facto alegada no artigo 4º da PI a que se reporta o artigo 556º, nºs 1 a 3 do CPC,
9. Se o Tribunal deu como provado que o Recorrente reside habitualmente em Macau desde 1995, devia ter formulado uma resposta àquele ponto da matéria de facto (artigo 4º da PI), fosse ela positiva (provado) ou negativa (não provado).
10. A matéria constante do artigo 4º da PI é relevante para a decisão da causa, porque permite apurar, ou não, a alegada separação de facto.
11. A reclamação apresentada pelo Recorrente foi indeferida, entendendo o Tribunal recorrido que a separação de facto alegada é um conceito jurídico e não um facto, encerrando matéria de direito sobre a qual o Tribunal não deve responder.
12. O Recorrente discorda desta decisão, porque o alegado no artigo 4º da PI, onde se escreveu que o A. e a R. estão separados de facto desde 1993, ou seja há cerca de 20 anos, é matéria de facto e devia ter sido sujeita a resposta pelo Tribunal.
13. Tem vindo a ser entendido pela jurisprudência e pela doutrina que, quando uma determinada linguagem jurídica se encontra interiorizada na comunidade com o sentido corrente, traduzindo uma realidade factual, a expressão ou expressões em causa podem ser incluídas na base instrutória.
14. A expressão separados de facto é utilizada actualmente pela comunidade em sentido comum para dizer que o casamento já não existe, que o casamento acabou, que o marido e a mulher já não vivem juntos.
15. Traduzindo, por isso, a descrição de uma situação da vida real, sendo admissível a sua inclusão na base instrutória ou, na falta desta, no acervo fáctico sobre o qual recaiu o julgamento da matéria de facto a que alude o artigo 556º do CPC.
16. A inclusão do alegado no artigo 4º da PI na matéria de facto não conduz a qualquer contradição com as respostas dadas aos artigos 6º e 7º desse articulado.
17. A resposta à matéria alegada nos artigos 6º e 7º da PI foi negativa, não significando que se tenha provado o contrário do que foi alegado.
18. Com efeito, desde 1995, que o Recorrente reside habitualmente em Macau.
19. Sendo que desde essa altura que o Recorrente e a Recorrida deixaram de viver juntos.

20. A indagação da demonstração da separação de facto entre o Recorrente e a Recorrida pressupõe a verificação dos requisitos previstos na alínea a) do artigo 1637º e no nº 1 do artigo 1638º do Código Civil.
21. São requisitos da separação de facto que esta se verifique por mais de dois anos, que entre os cônjuges não exista comunhão de vida (elemento objectivo) e que por parte de ambos os cônjuges, ou apenas de um deles, não exista o propósito de restabelecer a vida a vida em comum (elemento subjectivo).
22. A jurisprudência do Tribunal de Segunda Instância tem entendido que a falta de comunhão de vida se traduz na divisão do habitat, na falta de vida em comum dos cônjuges que passam a ter residências diferentes, sendo complementada com o propósito do não restabelecimento da comunhão de vida material por parte, pelo menos, de um dos cônjuges.
23. A interposição da acção de divórcio no Tribunal Judicial de Base, pelo Recorrente, em 15 de Agosto de 2013, implica a verificação do elemento subjectivo.
24. A demonstração da separação de facto entre o Recorrente e a Recorrida, atento o pedido formulado na acção de divórcio, é essencial para a verificação do elemento objectivo, constituindo matéria relevante para a boa decisão da causa.
25. Deveria a M.mª Juiz a quo ter incluído a alegação do artigo 4º da PI na sua resposta à matéria de facto.
26. Sendo que, a provar-se essa matéria de facto, não poderia a presente acção judicial deixar de proceder.
27. Não o tendo feito, incorreu o Tribunal a quo no vício de deficiente apuramento da matéria de facto devendo, consequentemente, ser revogada a sentença recorrida e ordenada a repetição do julgamento sobre a matéria de facto acima descrita, ao abrigo do artigo 629º, n.º 4 do CPC,
     Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, deverá ser anulada a Sentença recorrida, com fundamento na deficiência da decisão sobre a matéria de facto, e ser ordenada a remessa dos Autos ao Tribunal Judicial de Base para a repetição do julgamento, de acordo com o disposto no artigo 629º, nº 4 do CPC, fazendo-se assim a habitual JUSTIÇA!»
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Não houve resposta ao recurso.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:

«- O Autor e a Ré contraíram casamento na República das Filipinas, em 12 de Abril de 1988. (Artigo 1°)
- Desse casamento, existem os três filhos C e D, todos maiores. (Artigo 3°)
- Pelo menos, desde 1995, o A. passou a residir habitualmente em Macau. (Artigo 5°)».
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III – O Direito
1 - O autor A, instaurou acção de divórcio contra a ré B, com a alegação de que estão separados de facto desde 1993, nunca mais tendo comunicado um com o outro, nem partilhado refeições e o leito conjugal.
A separação de facto, nos termos do art. 1637º, al. a), do Código Civil foi, então, o fundamento da acção.
A sentença recorrida, contudo, face aos factos julgados provados, julgou a acção improcedente e não concedeu o divórcio peticionado. E isto, não apenas por se não ter demonstrado o elemento subjectivo do propósito de se não querer restabelecer a vida em comum, mas desde logo por não estar provado que um e outro vivem realmente separados um do outro há mais de dois anos e não fazerem vida em comum. Portanto, na opinião do julgador da 1ª instância, não está provada a falta de comunhão de vida por mais de dois anos consecutivos, ao contrário do que é necessário pela 1ª parte, do nº1, do art. 1638º do Código Civil.
O recorrente discorda.
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2 - Na opinião do recorrente, o facto de não ter sido provada a factualidade dos arts. 6º (“O A e a R nunca mais comunicaram um com o outro nem mais partilharam quer as refeições quer o leito conjugal”) e 7º da petição inicial (“Entre o A e a R não existe qualquer diálogo ao longo destes anos sendo que a R nunca residiu nem tão pouco visitou a Região Administrativa Especial de Macau”) não podia impedir o tribunal “a quo” de julgar provado o art. 4º da petição (“O A. e a R. estão separados de facto desde 1993, ou seja há cerca de 20 anos”).
Ou seja, para o recorrente havia prova suficiente para dar por provada a matéria do citado art. 4º da p.i., a fim de que se pudesse fazer a sua subsunção ao disposto no art. 1637º, al. a) e 1638º, nº1, do CPC.
Lamentavelmente, não o podemos acompanhar.
E isto por duas razões principais.
Em primeiro lugar, se a sua intenção era impugnar o julgamento da matéria de facto, ele omitiu completamente o procedimento imposto no art. 599º do CPC. Logo, não pode este TSI proceder à alteração do julgamento de facto efectuado na 1ª instância.
Em segundo lugar, o recorrente esforça-se por fazer-nos crer que o art. 4º podia ser dado como provado, por constituir um facto (separação de facto) que já entrou na linguagem, podendo, pois, ser objecto de prova.
Mas, quanto a esta matéria, também não podemos dar-lhe razão.
Antes de mais nada, se é certo que nalgumas vezes há situações da vida real que, materializadas, acabam por ser recebidas pela norma, e em que, por isso, se confundem os conceitos de direito com os próprios factos, outras vezes há em que tal não é possível. É o caso em presença.
Em nossa opinião, se tivesse havido contestação da ré, o tribunal não poderia incluir na base instrutória essa precisa matéria, visto que, além de traduzir um conceito jurídico (a “separação de facto” não tem ainda uma representação real na linguagem comum do dia a dia das pessoas), representa claramente uma situação conclusiva. E se não podia integrar a base instrutória nessa hipótese, também não podia ser provada, tal como se ele (art. 4º, da pi) se acha descrito.
Por outro lado, aquilo por que o recorrente deveria bater-se era tentar convencer o tribunal de que os factos dos arts. 6º e 7º deveriam ser dados como provados. Efectivamente, se tal conclusão fosse possível obter em sede de julgamento, estaria demonstrada a separação de facto, pelo menos na sua dimensão objectiva da falta de comunhão de vida entre os cônjuges. Mas, não. O recorrente não se preocupou com os arts. 6º e 7º, aceitando o modo como foram dados julgados (Não provados).
Em suma, e sem mais considerandos, a separação de facto, enquanto fundamento do divórcio litigioso, face ao art. 1637º, al. a), do CC, constitui um conceito jurídico e conclusivo, que deve ser traduzido em factos que, uma vez provados, demonstrem a verificação de uma insuperável ruptura da comunhão de vida entre os cônjuges por mais de dois anos consecutivos e a inexistência do propósito por parte de ambos, ou de um deles, em restabelecê-la, nos termos do art. 1638º, nº1, do CC.
Face ao exposto, o TSI concorda com a 1ª instância quando considera que faltou à procedência da acção a prova dos requisitos objectivos (separação de facto, por ausência de ruptura de vida em comum entre os cônjuges) e também o propósito de não a restabelecer, nos termos dos referidos normativos.
Consequentemente, o tribunal de recurso não pode fazer qualquer censura sobre o modo como o tribunal “a quo” fez o julgamento de facto e de direito.
Não resta, então, ao TSI senão dar como improvido o recurso.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
T.S.I., 31 de Maio de 2018
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong





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