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Processo nº 418/2018 Data: 31.05.2018
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Acidente de viação.
Culpa (percentagem).
Espaço livre e visível.
Princípio da confiança.
Incapacidade parcial permanente.
Perda de capacidade de ganho.
Indemnização.



SUMÁRIO

1. Tal como sobre o condutor de uma viatura impendem “deveres de cuidado” e (de observância) das regras estradais, também ao peão cabe observar as mesmas regras e, da mesma forma, tomar as suas providências, de forma a não perturbar, (“embaraçar”), o trânsito e a segurança dos outros utentes.

2. Os peões, (até por serem os mais vulneráveis utentes da via pública), para além de deverem escolher os locais devidamente assinalados para atravessar a faixa de rodagem, (quando existam), devem, certificar-se que tem condições de segurança para o fazer.
E, ainda que numa “passadeira”, não podem para ela se lançar de forma repentina, súbita e inopinada, sem ponderar a “proximidade” e “velocidade” do veículo que da mesma se aproxima, obrigando este a fazer uma travagem brusca, (se resultado pior não suceder).
Se (é verdade que) o condutor deve moderar a sua velocidade sempre que se aproxima de uma passadeira, prevendo a possibilidade de um transeunte querer passar, quem circula a pé tem também o dever de não avançar se a distância e velocidade a que se encontram os carros inviabilizar uma travagem segura.

3. O “espaço livre e visível” é a secção de estrada isenta de obstáculos que se inclui no campo visual do condutor, sendo certo que podendo os obstáculos, anteriormente inexistentes, surgir, repentinamente, inegável se tem que constitui esta uma “circunstância” com aptidão para excluir a sua previsibilidade e, portanto, a culpa do condutor.
Por sua vez, a regra segundo a qual o condutor deve adoptar a velocidade que lhe permita fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, (em nossa opinião, mais vocacionada para as situações do veículo que circula atrás de um outro veículo), pressupõe, na sua observância, que não se verifiquem “situações anormais” ou factos que, de forma súbita, alteram a situação.

4. Em conformidade com o “princípio da confiança” todo aquele que se comporta dentro dos limites do cuidado objectivamente exigido ou do risco permitido, pode confiar que os demais coparticipantes da mesma actividade também actuarão cuidadosamente, seguindo as regras de experiência, (id quod plerumque accidit), de sorte que sua aplicação exclui a responsabilidade dos agentes quanto aos fatos que se situam fora do dever concreto que lhes é exigido no momento da acção.

5. O utente da via que age de acordo com as normas de cuidado impostas na situação concreta deve poder confiar que o mesmo sucederá com os restantes utentes da via.

6. Quanto à indemnização pela “perda de capacidade de ganho” em consequência de um “incapacidade parcial permanente”, considera-se que a solução mais adequada passa por se proferir uma decisão onde, atentando-se na equidade, e tendo-se em conta a “situação concreta”, (mas sem se olvidar as decisões proferidas em situações análogas ou próximas), se pondere, especialmente, o “grau” e “tipo” de incapacidade, a situação profissional, perspectivas de evolução, a idade do ofendido e a expectativa em termos de vida activa.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo

Processo nº 418/2018
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão datado de 02.02.2018 do Colectivo do T.J.B. decidiu-se condenar A, arguido com os sinais dos autos, como autor material da prática de 1 crime de “ofensa grave à integridade física por negligência”, p. e p. pelo art. 142°, n.° 1 e 3, e 138°, al. c) do C.P.M., em conjugação com o art. 93°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007, (“Lei do Trânsito Rodoviário”), fixando-lhe o Tribunal a pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, fixando-lhe também a pena acessória de inibição de condução por 9 meses, igualmente suspensa na sua execução por 1 ano.

Em relação ao “pedido de indemnização civil” pelo ofendido B enxertado nos autos, decidiu-se julgar o mesmo parcialmente procedente, condenando-se a demandada civil “COMPANHIA DE SEGUROS DA C (MACAU), S.A.”, (C保險(澳門)股份有限公司), a pagar ao referido demandante a quantia total de MOP$370.388,50 e juros; (cfr., fls. 356 a 373 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformados com o assim decidido, do mesmo recorreram os referidos demandante e demandada (seguradora).

O demandante, para concluir afirmando o que segue:

“A - As razões do presente recurso cingem-se aos critérios seguidos na sentença recorrida para fixação do montante da indemnização correspondente à redução na capacidade de trabalho ou de ganho, em caso de incapacidade permanente parcial.
B - Entende o Recorrente que o Tribunal a quo procedeu a uma errónea aplicação da fórmula que resulta do art. 47.°, n.° 1, als. c) e d) do Decreto-Lei n. ° 40/95/M (que aprova o regime jurídico da reparação por danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais) à situação objecto dos presentes autos em que em causa está um acidente de viação, e não um acidente de trabalho ou uma doença profissional.
C - Com efeito, a ratio que subjaz ao referido diploma legal não tem qualquer relação que permita a sua aplicação aos presentes autos, tendo em conta que num acidente de viação a fonte da responsabilidade civil é sempre a responsabilidade extracontratual e, portanto, uma responsabilidade subjectiva, assente na culpa (dolo ou negligência).
D - A responsabilidade que se afere no âmbito de um acidente de trabalho ou em resultado de uma doença profissional é sempre uma responsabilidade objectiva ou pelo risco, daí o legislador ter sentido a necessidade de impor limites, fixando os limites mínimos e máximos de tal responsabilidade que, em princípio, irão onerar a entidade patronal.
E - Mesmo que fosse de aplicar tal diploma legal – o que por mera hipótese de raciocínio se pondera sem conceder – sempre haveria de considerar que a lei prevê a actualização anual dos limites fixados (cfr. art. 47.°, n.° 2 e art. 28.°, n.° 4 do Decreto-Lei n.° 40/95/M), situação que não foi de todo contemplada na sentença ora recorrida.
F - Ora, a fixação de tais limites não faz qualquer sentido no caso em apreço nos presentes autos, pelo que o Decreto-Lei n.° 40/95/M não se aplica à situação dos autos, tal como, aliás, tem vindo a ser decidido noutros casos judiciais (cfr., a título meramente exemplificativo, Acórdão do TSI proferido no processo Proc. n.° 376/2015).
G - Assim, considerando os próprios critérios fixados na sentença recorrida, tendo sido determinado o período de 23 anos – até aos 65 anos (idade em que se poderia reformar) – como o período de tempo em que, previsivelmente, o Recorrente poderia trabalhar na plenitude nas suas capacidades caso não tivesse ocorrido o acidente, ao fazer a multiplicação, o Tribunal deveria ter considerado MOP$10.640 (salário) x 276 meses (23 x 12) x 28% (incapacidade parcial permanente), o que perfaria o valor de MOP$822.259.20 (e não o valor de MOP$321,753,00 referido na sentença).
H - Pelo que, aplicando a redução de 80%, nos termos previstos na sentença, o valor da indemnização por danos futuros deveria ter sido fixado em MOP$657.807,36 (e não no valor de MOP$257,402,90 referido na sentença).
I - Assim, no entender do Demandante Cível e ora Recorrente, seguindo os critérios e os valores previamente definidos na sentença, o valor total da indemnização deverá ser o seguinte: MOP$49.580,00 + MOP$33.794,00 + MOP$400.000,00 + MOP$657.807.36 = MOP$1.141.181,36.
J - Pelo que, atenta a repartição da responsabilidade pela ocorrência de acidente na proporção de 50% – 50%, deveria a Demandada Cível, ora Recorrida, ser condenada no pagamento de MOP$570,590.68 (MOP$1.141.181,36 : 2) ao Recorrente.
K - Acresce que, tendo o Tribunal a quo optado por aplicar a fórmula que resulta do art. 47.° do Decreto-Lei n.° 40/95/M à situação em apreço nos presentes autos, não poderia ter procedido à redução equitativa do montante da indemnização encontrado.
L - Com efeito, ao ter definido o período de 23 anos – até aos 65 anos de idade – em que o Recorrente perdeu capacidade permanente parcial para o trabalho, mas ao ter multiplicado a remuneração mensal do Recorrente pelo número 108, o Tribunal a quo procedeu automaticamente a uma redução, superior a mais de metade, do montante da indemnização, em termos que manifestamente não impõem que tenha de ser efectuada uma redução equitativa a fim de evitar qualquer enriquecimento ilegítimo.
M - Pelo exposto, ao ter procedido a tal redução automática, no entender do Recorrente é incorrecta a redução equitativa efectuada pelo Tribunal a quo de só considerar o valor de 80% do valor encontrado.
N - Pelo que, caso venha a manter-se a aplicação de tal fórmula – hipótese que por mero dever de patrocínio se pondera, sem conceder –, não deverá ser efectuada qualquer redução adicional.
O - Nesse caso, no entender do Demandante Cível e ora Recorrente, seguindo os critérios e os valores previamente definidos na sentença, o valor total da indemnização deverá ser o seguinte: MOP$49.580,00 + MOP$33.794,00 + MOP$400.000,00 + MOP$321.753,60 = MOP$805.127,60.
P - Pelo que, em qualquer caso, atenta a repartição da responsabilidade pela ocorrência do acidente na proporção de 50% – 50%, deveria a Demandada Cível, ora Recorrida, ser condenada no pagamento de MOP$402.563,80 (MOP805.127,60 : 2) ao Recorrente, o que, subsidiariamente se requer”; (cfr., fls. 412 a 422).

Por sua vez, no seu recurso, produziu a demandada seguradora as conclusões seguintes:

“I. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão que condenou a Demandada Seguradora, ora Recorrente, no pagamento ao Demandante de uma indemnização no valor de MOP$370.388,50, considerando que o Demandante teve uma quota-parte da responsabilidade na produção do acidente, na percentagem de 50%.
II. Foi a Demandada condenada a pagar uma compensação no referido valor, equivalente a 50% da quantia total arbitrada de MOP$740.776,90.
III. O presente recurso circunscreve-se à vertente da repartição da responsabilidade e a consequente proporção da culpa, não se conformando a ora Demandada com a proporção atribuída ao condutor do veículo.
IV. Outra deveria ter sido a decisão atentos os factos provados nestes autos.
V. Dá-se por reproduzida a matéria de facto provada e descrita no Douto Acórdão ora recorrido.
VI. O Demandante perdeu uma vista pelo facto de ter sido atropelado por um autocarro quando efetuava a travessia, de forma desatenta, da Ponte Nobre de Carvalho, ignorando por completo que não podia atravessar aquela artéria.
VII. O demandante para atravessar a Ponte Nobre de Carvalho deveria ter efectuado essa travessia de uma forma rápida e sem perturbar o trânsito.
VIII. Ficou provado que “Ao atravessar a Ponte, o Demandante não se certificou devidamente que não circulava qualquer trânsito pela referida Ponte Nobre de Carvalho”, bem como que “O condutor devia prestar atenção às pessoas que passam pelas ruas e se for necessário deve parar (imobilizar) a viatura”.
IX. O condutor, de qualquer veículo, circula tendo a convicção que os outros condutores ou peões cumprem as regras estradais.
X. O princípio da segurança norteia qualquer condutor, bem, como qualquer peão.
XI. Tendo ficado provado que o peão “[…] não se certificou devidamente que não circulava qualquer trânsito pela referida Ponte Nobre de Carvalho” naturalmente se conclui que o atravessamento que originou o embate se ficou a dever a uma enorme falta de atenção por parte do Demandante.
XII. O atravessamento ocorreu na Ponte Nobre de Carvalho, no início da Ponte, no lado da Taipa, tendo o Demandante atravessado a Ponte “do lado esquerdo para o lado direito da via, atenta a direção da circulação do veículo MP-59-XX”.
XIII. Estabelece o regulamento da Ponte Nobre de Carvalho (artigo 2.º Decreto Lei n.º 70/95/M) que “os peões devem transitar unicamente nos passeios existentes, em sentido contrário ao da circulação dos veículos, sendo-lhes proibido transportar volumes que, pelas suas dimensões, ultrapassem os limites dos passeios”.
XIV. Se nem sequer aos peões é permitido transportarem volumes que excedam os limites dos passeios, se devem transitar unicamente pelos passeios, notório e claro é que os mesmos não devem atravessar a Ponte Nobre de Carvalho.
XV. O Demandante circulava no sentido Taipa Macau, do lado esquerdo da via, na mesma direcção dos veículos que se deslocavam da Taipa para a Península de Macau.
XVI. Quando o autocarro já estava muito perto, colocou o pé na estrada e foi colhido pela viatura de enormes dimensões, sem sequer ter olhado, sem sequer se ter certificado que o poderia fazer em segurança, mas acima de tudo completamente desatento.
XVII. O Demandante não viu a aproximação de uma viatura de grandes dimensões como é um autocarro.
XVIII. Quando se fundamenta, pelo facto provado, que o condutor deveria abrandar a marcha e até, se necessário, imobilizar a viatura, o Tribunal a quo fundamenta essencialmente com o que está legalmente estabelecido na Lei do Trânsito Rodoviário, ignorando, salvo o devido respeito, o que está previsto, em concreto e de forma específica, no Regulamento da Ponte Nobre de Carvalho.
XIX. Considerando as previsões da Lei do Trânsito Rodoviário (Lei n.° 3/2007), o atravessamento da faixa de rodagem “se deve fazer sem perigo, tendo em conta a distância e a velocidade dos veículos que se aproximam” e devem os peões efectuar essa travessia de forma rápida.
XX. “Os peões só podem atravessar fora das passagens que lhes estão destinadas se não existir nenhuma devidamente sinalizada a uma distância inferior a 50 metros e desde que não perturbem o trânsito de veículos, devendo, nesse caso, fazê-lo pelo trajecto mais curto e o mais rapidamente possível” (artigo 70.° da Lei n.° 3/2007).
XXI. Nada disto aconteceu tendo ficado provado precisamente o oposto.
XXII. Grande parte da responsabilidade na ocorrência deste acidente se ficou a dever à actuação do peão pelo que jamais poderia a responsabilidade ser repartida na proporção em que foi.
XXIII. A responsabilidade sempre deveria ter sido repartida diferenciadamente como estatui o artigo 564.° do Código Civil, ou seja com base na “gravidade das culpas de ambas as partes”.
XXIV. A responsabilidade do Demandante é bem maior do que a do condutor do veículo.
XXV. A repartição da responsabilidade não seria desajustada se fosse de 80% para o peão/Demandante e 20% para o condutor do autocarro.
XXVI. O acórdão fez errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 564.° do Código Civil, violando essa disposição.
XXVII. O acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por um outro que estabeleça uma repartição da responsabilidade em proporção diferente à decidida pelo Tribunal a quo”; (cfr., fls. 424 a 433).

*

Adequadamente processados os autos, e nada obstando, cumpre apreciar.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido, a fls. 358 a 361-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Como resulta do que até aqui se deixou relatado, dois são os recursos trazidos à apreciação deste T.S.I., ambos tendo como objecto o segmento decisório ínsito no Acórdão do T.J.B. com o qual se emitiu pronúncia em relação ao “pedido de indemnização civil” enxertado nos presentes autos.

No primeiro, é recorrente o demandante, e no segundo, a demandada seguradora.

Aquele, pretendendo um aumento do quantum arbitrado pela sua “perda de capacidade de ganho”, e esta, a demandada seguradora, contestando a “percentagem de culpa pelo acidente”.

Não havendo uma relação de prejudicialidade de um recurso em relação a outro, comecemos pelo primeiro, do demandante.

–– Do “recurso do demandante”.

Pois bem, em causa está tão só a “quantia” que constitui a parcela indemnizatória pela perda de capacidade de ganho em virtude da “incapacidade parcial permanente” (I.P.P.) de 28% que o demandante passou a sofrer em consequência do acidente de viação dos autos.

E, em questão, está (apenas) o seu “cálculo”.

Nesta conformidade, e em causa não estando nem a referida “incapacidade”, nem se discutindo que a mesma constitui um “dano indemnizável”, considera-se adequado, (e para abreviar), dar aqui como reproduzido tudo o que sobre o “sentido” e “alcance” da aludida incapacidade como “perda de capacidade de ganho” já se consignou em anteriores decisões deste T.S.I.; (cfr., v.g., os Acs. de 14.04.2016, Proc. n.° 238/2016, de 12.05.2016, Proc. n.° 326/2016, de 03.11.2016, Proc. n.° 759/2016, de 20.04.2017, Proc. n.° 264/2017 e de 04.04.2018, Proc. n.° 53/2018).

Dito isto, vejamos.

Entende o recorrente que a “fórmula” utilizada pelo T.J.B. – que aplicou o art. 47° do D.L. n.° 40/95/M – não é a adequada.

Ora, reconhecendo que a questão não é “nova” e que posições distintas podem existir, temos entendido que a solução mais adequada passa por se proferir uma decisão onde, atentando-se na equidade, e tendo-se em conta a “situação concreta”, (mas sem se olvidar as decisões proferidas em situações análogas ou próximas), se pondere, especialmente, o “grau” e “tipo” de incapacidade, a situação profissional, perspectivas de evolução, e a idade do ofendido, assim como a expectativa em termos de vida activa.

E, em conformidade com o exposto, atenta a referida “incapacidade parcial permanente”, (dada como provada), calculada em 28%, e que, no caso, consiste na perda irreversível de visão do olho direito do ofendido, considerando que o mesmo se dedicava à instalação de aparelhos de ar condicionado onde auferia cerca de MOP$10.640,00 por mês, provado estando também que em consequência da dita I.P.P. se cansa com mais facilidade e que tem de fazer as mesmas tarefas (que antes fazia) de forma mais lenta, que tem 42 anos de idade, expectável sendo que levasse uma vida activa por mais 23 anos, (até aos 65 anos), e ponderando também no que decidido foi em outros processos onde se tratou de idêntica questão, (cfr., também, o Ac. do Vdo T.U.I. de 25.04.2007, Proc. n.° 20/2007), afigura-se-nos que justo e equilibrado se apresenta a quantia de MOP$600.000,00.

Dest’arte, e com a parcial procedência do recurso do demandante – que pelo dano em causa pedia MOP$822.259,20, (cfr., alínea G das suas conclusões) – continuemos.

–– Do “recurso da demandada”.

Aqui, e – note-se – sem questionar a “decisão da matéria de facto”, considera a demandada/seguradora e ora recorrente que incorrecta foi a decisão que atribuiu a culpa do acidente ao arguido, (seu segurado), e demandante/ofendido, a cada um fixando 50% de culpa pelo mesmo.

E, alegando o que atrás se deixou transcrito, entende a ora recorrente que ajustada seria a atribuição de 80% de culpa para o demandante/ofendido e 20% para o arguido.

Vejamos.

Em essência, resulta da factualidade dada como provada que o acidente ocorre quando o ofendido se introduz na via tentando atravessar a mesma da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha da viatura conduzida pelo arguido, passando de uma faixa de rodagem, para a outra, (de sentido contrário), na Ponte Nobre de Carvalho, (que como se sabe tem apenas uma faixa de rodagem para cada sentido dividida por um traço contínuo), provado estando que o mesmo ofendido “não se certificou que não circulava qualquer trânsito pela referida Ponte”.

E, perante isto, cremos que tem a ora recorrente razão.

Com efeito, nos termos do art. 6° da Lei n.° 3/2007:

“1. É livre a circulação nas vias públicas da RAEM, com as restrições constantes da presente lei e diplomas complementares.
2. Os utentes da via pública devem abster-se de quaisquer actos que possam impedir ou embaraçar o trânsito ou comprometer a segurança ou comodidade dos outros utentes”.

Por sua vez, nos termos do art. 37° da mesma Lei:

“1. Ao aproximar-se de uma passagem para peões sinalizada, junto da qual o trânsito de veículos e de peões, ou só o primeiro, está regulado por sinalização luminosa ou por agente, o condutor deve, mesmo que autorizado a avançar, deixar passar os peões que já tenham iniciado o atravessamento da faixa de rodagem.
2. Ao aproximar-se de uma passagem para peões sinalizada, junto da qual o trânsito de veículos não é regulado por sinalização luminosa nem por agente, o condutor deve reduzir a velocidade e, se necessário, parar, a fim de deixar passar os peões que se encontrem a atravessar a faixa de rodagem.
3. Ao mudar de direcção, o condutor deve reduzir a velocidade e, se necessário, parar, a fim de deixar passar os peões que se encontrem a atravessar a faixa de rodagem à entrada da via que aquele condutor vai tomar, mesmo que não exista passagem para peões”.

E, prescreve ainda o art. 70° do referido diploma legal que:

“1. Ao pretenderem atravessar a faixa de rodagem, os peões devem assegurar-se de que o podem fazer sem perigo, tendo em conta a distância e a velocidade dos veículos que se aproximam, e efectuar o atravessamento rapidamente.
2. Sem prejuízo do disposto no n.º 5, o atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se pelas passagens para peões, devidamente sinalizadas.
3. Nas passagens equipadas com sinalização luminosa os peões devem obedecer às prescrições dos sinais.
4. Quando só o trânsito de veículos estiver regulado por sinalização luminosa ou por agentes, os peões não devem efectuar o atravessamento enquanto o trânsito estiver aberto para os veículos.
5. Os peões só podem atravessar fora das passagens que lhes estão destinadas se não existir nenhuma devidamente sinalizada a uma distância inferior a 50 metros e desde que não perturbem o trânsito de veículos, devendo, nesse caso, fazê-lo pelo trajecto mais curto e o mais rapidamente possível.
6. É punido com multa de 300,00 patacas quem infringir o disposto neste artigo”.

No caso, tratando-se de uma “faixa de rodagem” situada na referida Ponte, óbvio nos parece que, na mesma, tem os veículos “prioridade” no seu uso (circulação) – devendo, naturalmente, os condutores circular com o cuidado que as circunstâncias o exigirem e no integral respeito das regras legais que regulam esta actividade – cabendo, (por sua vez), aos peões que a pretendam atravessar, acatar igualmente o estatuído no art. 6°, n.° 2 e, em especial, o art. 70°, ambos, atrás transcritos.

E, a se ter como boa a consideração que se deixou consignada, (e assim se nos apresenta efectivamente), impõe-se-nos concluir que o acidente dos autos se deveu – no mínimo – principalmente, à “forma como o ofendido atravessou a via”, tendo-o feito, (como provado está), sem o devido cuidado, sem se certificar que o podia fazer em segurança e sem prejudicar terceiros, calculando – se é que o chegou a fazer – mal a velocidade e distância do veículo conduzido pelo arguido que, infelizmente, o acabou por colher na via.

Não se considera que na dita Ponte, proibido é que se proceda ao seu atravessamento.

Se lícita é a “circulação de peões” – cfr., art. 2°, n.° 1 do “Regulamento da Ponte Nobre de Carvalho, Ponte da Amizade e Viadutos de Acesso” – adequado se nos apresenta que os peões a possam atravessar, passando de um dos seus lados para o outro, não sendo obrigados a percorrer todo passeio que ladeia faixa de rodagem para, só então, ponderem passar para o lado contrário em que seguiram.

Porém, o que se deixou consignado, em nada altera a conclusão a que se chegou.

Importa pois ter em conta que é ao peão que cabe certificar-se que pode fazer a travessia da faixa de rodagem em segurança, e sem prejudicar a segurança de outros utentes da mesma.

A “via pública a todos pertence”; (cfr., art. 6°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007).

Porém, não se pode esquecer que “Os utentes da via pública devem abster-se de quaisquer actos que possam impedir ou embaraçar o trânsito ou comprometer a segurança ou comodidade dos outros utentes”; (cfr., art. 6°, n,.° 2).

E, tal como sobre o condutor de uma viatura impendem “deveres de cuidado” e (de observância) das regras estradais, também ao peão cabe observar as mesmas regras e, da mesma forma, tomar as suas providências, de forma a não perturbar, (“embaraçar”), o trânsito e a segurança dos outros utentes.

Não é por mero capricho – ou falta de melhor conselho – que, desde cedo, somos todos ensinados a “parar e olhar”, (para ambos os lados), antes de atravessarmos uma faixa de rodagem…

Como é óbvio e evidente, tal apresenta-se perfeitamente adequado e justificado.

A vida em sociedade é cada vez mais acelerada.

Existe a tendência geral de se “maximizar e rentabilizar o tempo”.

E, infelizmente, com o stress que esta pressa provoca em alguns – e também a quotidiana e gritante falta de civismo, de observância de normas de cortesia e até de solidariedade – cria-se o “condicionalismo próprio” para os “acidentes de viação” a que todos assistimos (por este mundo fora), e que para além de constituírem um problema de segurança e de criminalidade, constitui, como a Organização Mundial de Saúde reconheceu em 2004, um problema de “saúde pública”.

Os peões, (até por serem os mais vulneráveis utentes da via pública), para além de deverem escolher os locais devidamente assinalados para atravessar a faixa de rodagem, (quando existam), devem, certificar-se que tem condições de segurança para o fazer.

E, ainda que numa “passadeira”, não podem para ela se lançar de forma repentina, súbita e inopinada, sem ponderar a “proximidade” e “velocidade” do veículo que da mesma se aproxima, obrigando este a fazer uma travagem brusca, (se resultado pior não suceder).

Se (é verdade que) o condutor deve moderar a sua velocidade sempre que se aproxima de uma passadeira, prevendo a possibilidade de um transeunte querer passar, quem circula a pé tem também o dever de não avançar se a distância e velocidade a que se encontram os carros inviabilizar uma travagem segura.

“Conduzir uma viatura” (especialmente, movida a motor), não é – como se apresenta evidente – a mesma coisa que “andar a pé”.

E “parar” um veículo em movimento não é simplesmente “travar”, (accionar o travão).

É verdade que nos termos do art. 30°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007: “O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias especiais, possa, em condições de segurança, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente e evitar qualquer obstáculo que lhe surja em condições normalmente previsíveis”.

Porém, o “espaço livre e visível” é a secção de estrada isenta de obstáculos que se inclui no campo visual do condutor, sendo certo que podendo os obstáculos, anteriormente inexistentes, surgir, repentinamente, inegável se tem que constitui esta uma “circunstância” com aptidão para excluir a sua previsibilidade e, portanto, a culpa do condutor.

Por sua vez, a regra segundo a qual o condutor deve adoptar a velocidade que lhe permita fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, (em nossa opinião, mais vocacionada para as situações do veículo que circula atrás de um outro veículo), pressupõe, na sua observância, e como nos parece natural, que não se verifiquem “situações anormais” ou factos que, de forma súbita, alteram a situação; (repare-se que a norma do art. 30°, n.° 1 se refere a “condições normalmente previsíveis”).

Por sua vez, não é de esquecer também que, em matéria como a ora em questão nos presentes autos, adequado é ponderar no chamado “princípio da confiança” que, (e tanto quanto se julga saber, teve origem na jurisprudência dos Tribunais superiores alemães em decisões dos anos 50), surge cada vez mais como um dos eixos estruturais da sociedade contemporânea por todos reconhecida como uma “sociedade de risco”.

E, afigurando-se-nos que não há, ou pelo menos difícil é, haver sociedade de risco, sem confiança, o dito princípio ganha destaque, especialmente, nos casos em que há uma “divisão de tarefas”. (v.g., equipas médicas e de trabalho, como sucede entre o cirurgião e o anestesista, o piloto e o controlador, e em fábricas e no tráfego rodoviário), e onde, de modo constante, existe uma exposição a riscos. Nestas situações atribui-se a cada indivíduo uma determinada função ou responsabilidade, que deve ser exercida e observada de acordo com as normas estabelecidas, afim de se evitar a criação de um risco, bem como uma possível concretização desse risco em resultado. E, nesta conformidade, o princípio da confiança surge como uma forma de delimitar a imputação do resultado, pois que de acordo com o mesmo, adequado e razoável é que se confie que cada agente desempenhou o seu papel da forma correta, necessário não sendo verificar se o que teve intervenção anterior agiu de acordo com a norma, e na hipótese da superveniência de um resultado lesivo, o mesmo deverá ser atribuído àquele que não observou a norma e os cuidados próprios da sua função e actividade.

Por esse princípio, todo aquele que se comporta dentro dos limites do cuidado objectivamente exigido ou do risco permitido, pode confiar que os demais coparticipantes da mesma actividade também actuarão cuidadosamente, seguindo as regras de experiência, (id quod plerumque accidit), de sorte que sua aplicação exclui a responsabilidade dos agentes quanto aos fatos que se situam fora do dever concreto que lhes é exigido no momento da acção; (cfr., v.g., “El principio de confianza en derecho penal. Un studio sobre la aplicacion de principio de autorresponsabilidad en la teoria de la imputación objetiva. Navarra: Thomson-Civitas”, 2009, pág. 35-36).

Como no Ac. de 23.02.2017, Proc. n.° 118/2017, e abordando também um acidente de viação tivemos oportunidade de consignar:

“(…)
Com efeito, temos como adequados os entendimentos no sentido de que nenhum condutor pode ser censurado pelo facto de, inopinadamente, lhe surgir um obstáculo impeditivo da sua livre circulação, isto é, é de exigir aos condutores que cumpram, estritamente, as disposições legais reguladoras do trânsito, mas não se lhes pode exigir que devam prever que os outros condutores infrinjam essas mesmas disposições legais, já que o condutor de um veículo não é obrigado a prever (ou contar) com a falta de prudência dos restantes utentes da via – veículos, peões ou transeuntes – antes devendo, razoavelmente, partir do princípio de que todos cumprem os preceitos regulamentares do trânsito e observam os deveres de cuidado inerentes.
Na verdade, não é de exigir a um condutor razoável ou medianamente prudente uma previsibilidade para além do que é normal, pois que tal implicaria que acabasse por ser responsabilizado pela imprudência alheia.
É, aliás, nesta sede que se invoca o que se tem apelidado de “princípio da confiança (rodoviária)”, “(…) segundo o qual, comportando-se um determinado utente da via de acordo com as normas de cuidado impostas na concreta situação, (…), deve poder confiar que o mesmo sucederá com os restantes utentes da via, partindo do princípio que as outras pessoas são seres igualmente responsáveis. Com efeito, o princípio da confiança encontra o seu fundamento material no princípio da auto-responsabilidade de terceiros: se as outras pessoas são também seres responsáveis; se se comportam descuidadamente, tal só poderá afectar, antes de tudo, a sua própria responsabilidade”; (cfr., v.g., o Ac. do S.T.J. de 03.12.2015, Proc. n.° 3969/07, in “www.dgsi.pt”)”.

In casu, e voltando a reflectir sobre a questão, afigura-se-nos que o assim ponderado tem plena aplicação ao caso dos autos.

Também perante situação similar, decidiu o Vdo T.U.I. que “O peão tem a obrigação de atravessar a faixa de rodagem … tendo em conta a distância e a velocidade dos veículos que se aproximam”, e ponderando que no caso em apreciação se tinha provado que o peão atravessou a via de forma súbita e inopinada, não deixando tempo para o arguido reagir, de modo a reduzir a velocidade a fim de evitar o embate, atribuiu 90% de culpa do acidente ao dito peão; (cfr., o Ac. de 15.11.2017, Proc. n.° 48/2017).

De facto, – e sob pena de se ter de aceitar que comum e vulgar é possuir “intuitos suicidas” – há que ter em conta que “normal” não é que as pessoas se “atirem” para a estrada, de forma súbita e inopinada, a poucos metros de distância de um veículo que circula em sua direcção.

E, a se considerar tal situação “normal”, então circular na via púbica seria o caos, pois que a cada metro, necessário seria certificar, préviamente, que absolutamente nada iria acontecer, (porque ninguém se encontrava por perto).

Nem mesmo ao se passar por baixo de um viaduto ou ponte com nível superior.

Nesta conformidade, face ao que se deixou exposto e ao que provado está, mostra-se-nos de concluir pois que à ora recorrente assiste razão no pedido que deduziu, e, em consequência, concede-se provimento ao seu recurso, rectificando-se a “percentagem de culpa” em relação ao acidente de viação dos presentes autos nos termos que peticionado vem, fixando-se 80% desta ao ofendido, e os restantes 20% para ao arguido, segurado pela ora recorrente.

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(Não se deixa de consignar ainda que a “provada”, “falta de cuidado” do arguido, sem outra matéria que a concretize, e, assim, apresentando-se-nos constituir um “juízo (puramente) conclusivo”, permitiria, até, uma outra solução.
Porém, certo sendo que o recurso tem como objecto o segmento decisório em relação ao “pedido civil” enxertado nos autos, e sendo tão só recorrentes as “partes (civis)” deste mesmo pedido, mais não se mostra de consignar).

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–– Com a nova “repartição de culpas”, impõe-se agora projectar os seus efeitos nos montantes indemnizatórios arbitrados.

Pois bem, o Colectivo do T.J.B. fixou em MOP$740.776,90 o total da indemnização a arbitrar ao ofendido/demandante dos autos, e, em resultado da sua percentagem de culpa de 50%, acabou por lhe fixar o quantum de MOP$370.388,50.

Ora, considerando-se que naquela quantia de MOP$740.776,90 se incluía a de MOP$257.402,90, fixada a título da sua “perda de capacidade de ganho”, agora fixada em MOP$600.000,00, e que a percentagem de culpa do arguido deve ser de (apenas) 20%, constata-se que a título de indemnização, deve a ora demandada seguradora pagar ao demandante ofendido a quantia total de MOP$216.674,80.

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso do demandante, concedendo-se provimento ao recurso da demandada seguradora.

Custas nas proporções dos respectivos vencimentos.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 31 de Maio de 2018
José Maria Dias Azedo
Tam Hio Wa
Chan Kuong Seng (vencido na parte referente à repartição de culpas pela produção do acidente de viação, porque entendo que deve ser mantida a decisão recorrida nesta matéria de repartição de culpas).

Proc. 418/2018 Pág. 36

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