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Processo n.º 124/2016 Data do acórdão: 2018-5-31 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– julgamento de factos
– art.o 114.o do Código de Processo Penal

S U M Á R I O
Como após vistos em global e de modo crítico todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória do acórdão recorrido, não se vislumbra, para o tribunal de recurso, que seja patente que o tribunal sentenciador, aquando da formação da sua convicção sobre os factos, tenha violado alguma norma jurídica sobre o valor legal da prova, ou violado alguma regra da experiência da vida quotidiana em normalidade de situações, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento de factos, é de respeitar o resultado do julgamento de factos em primeira instância, já empreendido por esse tribunal recorrido nos termos permitidos pelo art.o 114.o do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 124/2016
(Autos de recurso penal)
Arguido recorrente:
A
Demandada civil recorrente:
B, S.A.
(B有限公司)
Demandante civil recorrida:
C





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 235 a 243 do Processo Comum Colectivo n.° CR3-15-0101-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o arguido A ficou condenado como autor material de um crime consumado de ofensa grave à integridade física por negligência, p. e p. pelos art.os 142.o, n.o 3, e 14.o, alínea a), do Código Penal (CP), em conjugação com os art.os 93.o, n.o 1, e 94.o, n.o 1, da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), na pena de um ano e nove meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, com inibição de condução por um ano, e ficou a demandada civil B, S.A., condenada a pagar à ofendida demandante C a quantia indemnizatória total (de danos patrimoniais e não patrimoniais desta) de MOP435.966,00, com juros legais contados desde a data desse acórdão até integral e efectivo pagamento.
Inconformados, vieram recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI) a seguradora e o arguido.
Alegou a seguradora, na sua motivação apresentada a fls. 249 a 255 dos presentes autos correspondentes, na sua essência, que o montante de reparação de danos não patrimoniais, fixado naquele acórdão em MOP400.000,00, era desajustado e elevado, se se atentasse ao prescrito no art.o 489.o do Código Civil (CC), com referência aos art.os 487.o e 488.o do mesmo diploma, à matéria de facto provada e aos valores constantes na jurisprudência da Região Administrativa Especial de Macau para situações semelhantes, pelo que pediu que esse montante indemnizatório fosse reduzido para um valor não superior a MOP250.000,00.
Enquanto o arguido teceu as seguintes conclusões na sua motivação apresentada a fls. 259 a 273 dos autos:
– <<[…]
1. O Recorrente, salvo o devido respeito, recusa ter desrespeitado as regras de trânsito rodoviário ou sequer da condução prudente e não concorda com a matéria de facto tida por provada, nem com a decisão constante da douta sentença, ora recorrida, pois apenas um facto se imputa ao recorrido: ter ultrapassado a ofendida o que, por si só, não justifica a sua queda ou a imputação dos resultados desta - os danos - à actuação do Recorrente.
2. O que é facto é que o Recorrente cumpriu o estatuído no artigo 40.°, n.º 1, não tendo resultado dessa manobra qualquer choque ou embate, nem a ofendida foi obrigada a sair da estrada, tendo caído dentro da sua faixa de rodagem.
3. Contudo, o douto Tribunal assenta a sua convicção no facto conclusivo de que após a ultrapassagem, o Recorrente voltou para o lado esquerdo, causando receio à ofendida de vir a bater no veículo que aquele conduzia e que, assim, perdeu o controlo do motociclo e caiu.
4. Certo é que se deu por provado que o Recorrente apitou várias vezes antes e durante a ultrapassagem para esta se afastar ou acelerar, sem que a ofendida o tenha feito, violando, esta sim, o disposto no artigo 41.° da Lei do Trânsito Rodoviário.
5. Nem aceita o Recorrente ter agido de forma livre, representando como possível a queda da ofendida nas circunstâncias descritas, sem se conformar com as consequências, nomeadamente com o resultado dos danos daí advenientes para a ofendida, concretamente verificados.
6. O Recorrente não podia prever que a ofendida se assustasse com uma ultrapassagem que foi sinalizada e efectuada a uma velocidade normal.
7. Acontece que a ofendida efectuou o teste de alcoolemia e acusou uma taxa de 0,13 g/l, conforme se encontra reproduzido a fls. 2 dos autos, e que, ainda que tal resultado esteja abaixo do mínimo legal que define condução sob a influência do álcool, fixado em 0,5 g/l, a verdade é que a própria ofendida admitiu na audiência de julgamento que, na sua opinião, a ingerência de qualquer quantidade de álcool pode prejudicar a condução de um motociclo que depende do equilíbrio do seu condutor.
8. Apesar disso, o mui douto Tribunal entendeu não valorar a supra referida prova ou as declarações da própria ofendida, incorrendo, salvo melhor opinião, em erro notório da apreciação da prova, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 400.° do Código de Processo Penal.
9. A sentença ora recorrida assenta numa convicção que deriva da violação de regras da experiência comum e da errada utilização de presunções recusando uma convicção imperativa e que corresponde aos factos efectivamente provados: o Recorrente efectuou uma ultrapassagem que assinalou, apitando várias vezes, a ofendida caiu sem que na causa de tal queda tenha estado qualquer embate ou contacto entre o motociclo que conduzia e o veículo conduzido pelo Recorrente. Mais, a ofendida caiu para o lado, sem sair da sua faixa de rodagem, sem se ter desviado do veículo conduzido pelo Recorrente que já se encontrava à sua frente no momento da queda.
10. Por fim, a mui douta sentença ora em crise, dá simultaneamente como facto provado que a ofendida se assustou, confirmando como provada a declaração da testemunha D, que afirmou ser possível que a vítima tenha perdido o controlo por ter tido receio e como não provado o facto de a sua queda ter sido provocada por receio, incorrendo numa contradição insanável da fundamentação, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 400.° do Código de Processo Penal.
11. A este respeito, o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância n.º 100/2003, de 29 de Maio, que convoca o julgamento de “qualquer cidadão comum do tipo de homem médio colocado na situação concreta (...) [do] recorrente que leia com razoável atenção o texto da mesma decisão impugnada, não passe despercebido de que o Tribunal autor da mesma tenha ficado “auto-contraditório” na fundamentaçãoda sua convicção” [...] “Como se sabe, a contradição insanável da fundamentação como vício possibilitador da reapreciação da matéria de facto julgada pela Instância a quo, pode ocorrer entre a matéria de facto dada como provada, ou entre a dada como provada e a não provada, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto, desde que se apresente insanável ou irredutível, ou seja, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e às regras da experiência comum.”
12. Em virtude desta contradição insanável, fica pois por responder qual foi afinal a causa da queda?
13. Repita-se que ao Recorrente apenas é imputado um facto e é o de ter efectuado uma ultrapassagem que terá (ou não) assustado a condutora levando à sua queda>>.
Ao recurso da seguradora, respondeu a ofendida demandante a fls. 280 a 286, no sentido de manutenção da quantia fixada no aresto recorrido para reparação de seus danos não patrimoniais.
Ao recurso do arguido, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 301 a 303, no sentido da improcedência do mesmo.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer de fls. 334 a 335, pugnando pela rejeição do recurso do arguido por manifesta improcedência do mesmo.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o arguido não apresentou qualquer contestação e que o acórdão ora recorrido foi proferido a fls. 235 a 243 dos autos, cujo teor integral se dá por aqui inteiramente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O arguido invocou principalmente que houve erro notório, por parte do Tribunal a quo, na apreciação da prova, a fim de pedir a sua absolvição.
Entretanto, após vistos em global e de modo crítico todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória do acórdão recorrido, não se vislumbra, para o presente Tribunal de recurso, que seja patente que o Tribunal sentenciador ora recorrido, aquando da formação da sua convicção sobre os factos, tenha violado alguma norma jurídica sobre o valor legal da prova, ou violado alguma regra da experiência da vida quotidiana em normalidade de situações, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento de factos, pelo que é de respeitar o resultado do julgamento de factos em primeira instância, já empreendido pelo Tribunal recorrido nos termos permitidos pelo art.o 114.o do CPP.
Aliás, o Tribunal recorrido explicou, na parte da fundamentação probatória do seu acórdão (nas páginas 8 a 9 do respectivo texto, a fls. 238v a 239), o processo de formação da sua livre convicção sobre os factos, e a súmula, aí feita, do conteúdo do depoimento da testemunha (identificada na motivação do recurso do arguido e que foi o condutor da camioneta na faixa de rodagem direita da via pública em causa no momento da ocorrência do acidente) e do conteúdo das declarações prestadas também na audiência de julgamento pela ofendida suporta a razoabilidade do resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal recorrido.
Da factualidade já provada em primeira instância, vê-se que o arguido violou, tal como concluiu justamente o Tribunal recorrido, o disposto no art.o 40.o, n.o 1, da LTR, e causou assim o acidente de viação dos autos.
E nem se diga que o arguido, antes de fazer a manobra de ultrapassagem do ciclomotor então conduzido pela ofendida, já apitou algumas vezes para demonstrar a intenção de feitura dessa manobra. É que o art.o 40.o, n.o 1, da LTR é claro ao determinar que o condutor de veículo não deve iniciar a ultrapassagem sem se certificar de que a pode realizar sem perigo de colidir com outro veículo que transite no mesmo sentido ou em sentido contrário. No caso, provou-se que o automóvel ligeiro conduzido pelo arguido, que estava inicialmente por detrás do ciclomotor conduzido pela ofendida, depois de ultrapassar o ciclomotor da ofendida, se aproximou rapidamente da esquerda e afectou assim a circulação para frente desse ciclomotor que se encontrava na mesma faixa de rodagem esquerda. É tudo isso que basta para se considerar violado, pelo arguido, o disposto no n.o 1 do art.o 40.o da LTR, já que a sua manobra de ultrapassagem foi feita de modo tal que afectou a circulação para frente do ciclomotor da ofendida, e essa circunstância fáctica de ter afectado a circulação para frente do ciclomotor equivaleu à existência de perigo de colisão do veículo dele com o ciclomotor, mesmo que não tenha havido algum embate entre os dois veículos, pelo que não deve o arguido ter feito tal manobra de ultrapassagem, por se tratar de uma ultrapassagem ilegal (por ser violadora do art.o 40.o, n.o 1, da LTR).
Segundo a matéria de facto provada, e repita-se: o arguido, depois de apitar algumas vezes, foi fazer a manobra de ultrapassagem pela direita do ciclomotor da ofendida, dentro da mesma faixa de rodagem esquerda, e depois de ultrapassar esse ciclomotor aproximou-se rapidamente da esquerda e afectou assim a circulação para frente do ciclomotor. Perante este circunstancialismo provado, não se pode imputar à ofendida a violação do art.o 41.o da LTR.
Por aí se vê que a decisão condenatória penal recorrida não pode padecer da contradição insanável da fundamentação, também assacada na motivação do recurso do arguido.
Nota-se que quanto à tese de influência da taxa (de 0,13 grama por litro) de álcool detectada no sangue da ofendida sobre a capacidade de controlo dela do ciclomotor conduzido aquando da ocorrência do acidente de viação, como o arguido não chegou a apresentar qualquer contestação, tal taxa de álcool no sangue da ofendida não pôde fazer parte do objecto probando dos autos, pelo que não pôde o arguido fazer questão, na sua motivação, de tal taxa de álcool no sangue da ofendida.
Pretendeu, subsidiariamente, o arguido a suspensão da execução da inibição da condução, mas para o presente Tribunal de recurso, em vão, porquanto a manobra de ultrapassagem dele causou grave ofensa à integridade física da ofendida, com perigo de vida para esta, pelo que se afigura que a simples censura dos factos e a ameaça da execução dessa pena acessória não bastem para realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição através da imposição dessa pena acessória.
Naufraga, pois, o recurso do arguido, sem mais indagação por ociosa ou prejudicada.
Veio pedir a seguradora a redução do montante de MOP400.000,00 fixado no acórdão recorrido para reparação de danos não patrimoniais da demandante ofendida.
Cabe frisar, desde já, na esteira de diversos acórdãos proferidos neste TSI, de entre os quais se conta o de 30 de Maio de 2013 do Processo n.o 874/2012, que na matéria de fixação de quantia indemnizatória de danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, não há nenhuma fórmula sacramental a observar, por cada caso ser um caso, a ser decidido de modo equitativo, necessariamente em função de quais os ingredientes fácticos concretos em causa.
Assim, tudo ponderando para os efeitos a relevar do disposto no art.o 489.o, n.os 1 e 3 (primeira parte), do CC, tendo em conta, para este efeito, sobretudo, o hematoma cerebral sofrido pela ofendida demandante com perigo de vida então causado, o seu sofrimento da dificuldade para adormecer, o seu sentimento de cansaço permantente e o período de quase um ano para convalescença, com sujeição a diversos tratamentos, o referido montante de MOP400.000,00 já não admite mais margem para redução.
Improcede também o recurso da seguradora, sem mais abordagem por desnecessária.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento aos recursos do arguido e da seguradora.
Pagará o arguido as custas do seu recurso, com quatro UC de taxa de justiça e duas mil patacas de honorários a favor da sua Ex.ma Defensora Oficiosa.
Pagará a demandada seguradora as custas do seu recurso.
Macau, 31 de Maio de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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