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Recurso nº 977/2017
Data:14 de Junho de 2018

Assunto: - Erro notório na apreciação da prova


SUMÁRIO
1. O erro notório na apreciação da prova existe quando for evidente, perceptível, para um cidadão comum, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
2. Este vício tem de resultar dos próprios elementos constante dos autos, por si só ou com apelo às regras da experiência comum, e releva-se essencialmente na violação das regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios ou desrespeitou as regras sobre o valor da prova vinculada ou as leges artis.
3. Está provado que os 3 jogadores camuflados ou fingidos, cuja identificação não se apurou, usaram, para jogarem, as fichas retiradas da conta nº 230 (aberta à ordem do 1º arguido e sobre a qual o 2º arguido assinou o acordo de 《隱名合作協議》com a sala de casino), o Tribunal não consignou factos que possam consubstanciar qualquer acto ilícito, nomeadamente para efeito de concluir pela astúcia, elemento constitutivo do crime de burla. Quer isto dizer dos factos provados e não provados, tira-se uma conclusão logicamente inaceitável.
        O Relator,
        Choi Mou Pan

Recurso nº 977/2017
Recorrente: A





Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.:
   Os arguidos B, C e D responderam nos autos do Processo Comum Colectivo nº CR3-16-0171-PCC perante o Tribunal Judicial de Base, pela prática em co-autoria e na forma consumada de um crime de burla (da quantia consideravelmente elevada) p. e . p. pelo artigo 211, n.ºs 1,3 e 4 al. a do Código Penal.
   A deduziu o pedido de indemnização cível contra os três arguidos nos termos do seu pedido constante dos autos das fls. 772 a 775, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, pedindo que se condena os três demandados a pagar solidariamente à ofendida no montante de HKD$1,156,500.00. com o pagamento da juros, à taxa legal, até ao total e integral pagamento.
   
   Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Colectivo proferiu o Acórdão decidindo absolver todos os arguidos tantos dos crimes acusados como dos pedidos cíveis deduzidos.
   
   Inconformados com as decisões, recorreu a demandante para este Tribunal, alegando, em síntese, o seguinte:
1. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão proferido pelo Tribunal de Primeira Instância, datado de 19 de Julho de 2017, o qual absolveu os Demandados Cíveis, melhor identificados nos autos, do pedido de indemnização cível devido à prática em co-autoria de um crime de burla qualificada em casino, previsto e punível pelo artigo 211º do Código Penal.
2. Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu um erro notório de apreciação da prova.
3. Na audiência de julgamento, como ademais se pode constatar pela auscultação da gravação de audiência, é certo, com o devido respeito, que a decisão ora recorrida não contempla toda a prova que ali foi produzida.
4. A testemunha E, funcionário do casino considerou “estranho existir uma diferença de HKD2,000,000.00 na mesa de jogo”, pelo que “foi chamado pelos colegas para investigar” e “fez a contagem das fichas e verificou que o casino não tinha falta de fichas na mesa de jogo”.
5. A testemunha司警偵查員, investigador da Polícia Judiciária e o qual procedeu à investigação criminal da queixa crime in casu, disse ao minuto 53:40 que “há indícios da prática do crime de burla pelos Arguidos”. Mais disse a testemunha que um colega seu informou que através das filmagens das câmaras de vigilância que se encontravam colocadas em cima da mesa de jogo foi visível que um dos Arguidos retirou fichas de jogo de um bolso e colocou na mesa de jogo. A mesma testemunha afirmou que “a porta que dava acesso à sala de jogo encontrava-se encerrada” e que resultou da investigação que “o casino ganhou a aposta”, pelo que “é confirmado a prática do crime de burla”.
6. O erro notório na apreciação da prova existe quando foi evidente, perceptível, para um cidadão comum, o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou.
7. O Tribunal a quo incorreu em erro notório da apreciação da prova, sendo certo que, como se pode ler no acórdão proferido, os factos mencionados pelas testemunhas, ora aqui transcritos e que foram produzidos em sede de audiência, não foram valorados, nem tão pouco considerados, pois o acórdão nem os menciona, não se compreendendo assim como é que o Tribunal a quo formulou a sua convicção.
8. Com o devido respeito, a convicção dos julgadores a quo sobre a matéria de facto, não teve em conta as egras da experiência da vida, nos termos do disposto no artigo 400º nº 2 al c) do CPP.
9. A aludida convicção do Tribunal a quo apenas assentou em partes dos depoimentos de algumas testemunhas, não tendo sido considerado na sua totalidade os depoimentos de todas as testemunhas em sintonia com as regras de experiência da vida na normalidade de situações.
10. Auscultando a gravação da audiência de julgamento, verifica-se, para além da dúvida razoável, que ocorreu um crime de burla praticado contra a Recorrente e que a mesma deve ser devidamente indemnizada, devendo o seu pedido de indemnização cível ser procedente.
11. Fundar uma absolvição unicamente em partes proferidas pelas testemunhas, sem que tenham sido considerados todos os factos relatados pelas mesmas, ultrapassa os limites do princípio de livre apreciação das provas consagrado no artigo 114º do CPP.
12. Do exposto, provado que fica a prática do crime de burla em co-autoria pelos Demandados Cíveis, verifica-se que estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil atendendo ao pedido de indemnização cível: o facto ilícito; a imputação do facto ao lesante (culpa); o dano; e um nexo de causalidade entre o facto e o dano, nos termos do artigo 477º e seguintes do Código Civil, devendo assim o pedido de indemnização cível da ora Recorrente proceder.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Ex.as doutamente suprirão, requer-se que seja declarado o presente recurso procedente, devendo ser ordenado o REENVIO para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo nos termos e para efeitos do disposto no artigo 418º do CPP por o douto acórdão padecer do vício de erro notório na apreciação da prova nos termos do artigo 400º nº 2, alínea c), com se fará a habitual e costumada Justiça.
   
   Ao recurso do arguido, o Ministério Público não respondeu nem deu parecer nesta instância.
   
   Cumpre conhecer.
   Foram colhidos os vistos dos juizes-adjuntos.
   
   À matéria de facto, foi dada por assente a seguinte factualidade constante dos factos provados e não provados nos autos das fls. 934 a 936, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.1

   Conhecendo.
   Sendo parte cível, a demandante recorreu da decisão da absolvição do pedido de indemnização cujo requisito constitutivo fundou no crime de burla, entendendo a recorrente que, auscultando a gravação da audiência de julgamento, verifica-se, para além da dúvida razoável, que ocorreu um crime de burla praticado contra a Recorrente e que a mesma deve ser devidamente indemnizada, devendo o seu pedido de indemnização cível ser procedente, pelo que, fundando uma absolvição unicamente em partes proferidas pelas testemunhas, sem que tenham sido considerados todos os factos relatados pelas mesmas, ultrapassa os limites do princípio de livre apreciação das provas consagrado no artigo 114º do CPP, na medida em que o Tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova, pois, para a recorrente, ficando provada a prática do crime de burla em co-autoria pelos Demandados Cíveis, verifica-se que estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil atendendo ao pedido de indemnização cível: o facto ilícito; a imputação do facto ao lesante (culpa); o dano; e um nexo de causalidade entre o facto e o dano, nos termos do artigo 477º e seguintes do Código Civil, devendo assim o pedido de indemnização cível da ora Recorrente proceder.
   Vejamos.
   Como se sabe e como se tem vindo a afirmar nos acórdãos deste Tribunal, o erro notório na apreciação da prova existe quando for evidente, perceptível, para um cidadão comum, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável.2
   Por outro lado, este alegado vício tem de resultar dos próprios elementos constante dos autos, por si só ou com apelo às regras da experiência comum (2ª parte do nº 2 do artº 400ºdo CPPM), e releva-se essencialmente na violação das regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios ou desrespeitou as regras sobre o valor da prova vinculada ou as leges artis.
   Não se pode confundir as provas com os factos dados como provados e não provados, ou confundir a desconformidade entre provas com a desconformidade entre os factos dados por provados e/ou não provados e algumas provas, assim como não se pode impugnar a decisão da matéria de facto por o tribunal ter escolhido algumas provas para dar assente um facto e não escolhido outra(s).
   Sendo embora importante que os julgadores, perante um conjunto de provas legalmente admissíveis, têm uma liberdade na sua apreciação, e tal liberdade não é sindicável nos termos do artigo 114º do Código de Processo Penal, estaria incorrer no vício de julgamento de matéria de facto quando se verificasse a situação em que as conclusões tiradas dos factos provados e não provados é logicamente inaceitável para um cidadão comum, mesmo a decisão da matéria de factos fundassem em números de prova.
   Esse erro verificou-se efectivamente nos presentes autos.
   Está provado que os 3 jogadores camuflados ou fingidos, cuja identificação não se apurou, usaram, para jogarem, as fichas retiradas da conta nº 230 (aberta à ordem do 1º arguido e sobre a qual o 2º arguido assinou o acordo de 《隱名合作協議》com a sala de casino), o Tribunal não consignou factos que possam consubstanciar qualquer acto ilícito, nomeadamente para efeito de concluir pela astúcia, elemento constitutivo do crime de burla. Quer isto dizer dos factos provados e não provados, tira-se uma conclusão logicamente inaceitável.
   Sendo certo que não seria importante saber se a sala de casino proíbe ou não a entrada das pessoas, inclusive a ofendida, enquanto o Tribunal julgou por inexistência das provas materialmente suficientes comprovativas do conluio entre os arguidos e os três jogadores camuflados, incorreu notória e efectivamente no erro ora sindicados pela recorrente.
   Pois este facto é essencial para concluir pela prática do crime com base do qual se consubstancia um dos elementos constitutivos da indemnização cível, a que o recorrente tem legitimidade para invocar.
   Procede-se o presente recurso, e, por este Tribunal não tem condição de proceder um novo julgamento, impõe-se o reenvio nos termos do disposto no artigo 418º do Código de Processo Penal, a proceder pelo colectivo a constituir pelos juízes que não tinham intervenção no julgamento da primeira instância.
   Ponderado, resta decidir.
   
   Pelo exposto, acordam neste Tribunal de Segunda Instância em conceder provimento ao recurso interposto pela demandante cível A, ordenando o reenvio do processo nos termos acima consignados.
   Custas nesta instância pelos recorridos, solidariamente e com a taxa de justiça, cada um, 5 UC’s.
Macau, RAE, aos 14 de Junho de 2018
Choi Mou Pan
José Maria Dias Azedo (Votei a decisão)
Chan Kuong Seng
1 A sua versão chinesa é o seguinte:
案件經庭審辯論後查明以下已證事實:
- 2014年8月2日晚F致電A(被害人)表示其朋友會介紹一個帶貳佰萬港元到法老王娛樂場海皇神殿貴賓會進行賭博的賭客,然後詢問被害人有無興趣與該貴賓會以“分成廳”方式進行合作,也就是由被害人和海皇神殿貴賓會按48%和52%的比例承擔賭客輸贏風險的方式進行合作。被害人在徵求其朋友G意見後向F表示接納其提議。
- 次日(2014年8月3日)凌晨零時四十八分第二嫌犯與海神皇殿貴賓會按前述協議簽署了載於卷宗18頁的《隱名合作協議》(此處視為全文轉載)並按第一嫌犯指示將港幣貳佰萬元現金籌碼存入230號兌碼戶口,再由該戶口中提出貳佰萬港幣的分成廳賭博專用籌碼。
- 230號兌碼戶口是第一嫌犯要求其私人司機H於2013年11月所開設的。
- 被害人於是按約定內容作為押金的港幣貳佰萬元存入其在海皇神殿貴賓會所開設的1483號戶口中。
- 當日凌晨約一時四十三分,假扮為賭客的三名身份不明男子到達海皇神殿貴賓會坐在LC-309號賭檯使用由第二嫌犯所提供的港幣貳佰萬元專用籌碼進行賭博。
- 前述三名男子在賭博期間不斷將由第二嫌犯所提供的額外專用籌碼添加到賭檯上所擺放的籌碼中。該等專用籌碼全由第二嫌犯依照第一嫌犯指示,預先以第一嫌犯所提供的現金籌碼購買得來。經點算,到同日凌晨三時該三名男子表示結束賭博時賭檯上共有專用籌碼港幣肆佰叁拾萬元,即表示該等男子贏得了港幣貳佰叁拾萬元。
- 隨後第三嫌犯到達帳房,表示被授權處理上述分成賭博的餘款。經帳房職員I向H核實後,第三嫌犯將賭博餘款合共港幣叁佰壹拾萬柴仟伍佰陸拾元提走。
- 被害人因相信有關結果,在計算其應收取的“碼糧”以及J事先承諾承擔的部份後,同意按風險承擔比例從其1483號戶口中扣減港幣壹佰零陸萬伍佰元,並按F指示將該筆款項轉入230號戶口中。
- 當日凌晨五時三十九分第一嫌犯從230號戶口中將被害人所轉入的款項全部提出拿走。
- 另外,證明下列事實:
- 根據刑事紀錄證明,第一嫌犯具犯罪記錄:
1) 在CR2-13-0195-PSM案件中,2013年10月18日初級法院判決裁定第一嫌犯觸犯一項受痲醉品或精神科物質影響下駕駛罪,判處四個月徒刑,暫緩執行為期十八個月,另附加刑為停牌一年。於2015年11月3日,嫌犯的緩刑期延長一年,合共緩刑二年六個月;
2) 在CR3-15-0191-PCS案件中,2015年7月16日初級法院判決裁定第一嫌犯觸犯一項不法吸食麻醉藥品及精神藥物罪,判處兩個月徒刑,緩期一年執行,緩刑期間須附隨考驗制度及接受社工跟進,該案刑罰已被下列CR4-15-0297-PCS號卷宗競合;
3) 在CR4-15-0297-PCS案件中,2015年7月27日初級法院判決裁定第一嫌犯觸犯一項不法吸食麻醉藥品及精神藥物罪,判處兩個月十五日徒刑,緩期二年執行,緩刑期間須附隨考驗制度及接受戒毒的義務,且須於判決確定後一個月內向本特區支付澳門幣50,000元的捐獻。於2016午5月3日,該案與第CR3-15-0191-PCS 號卷宗競合,共判處三個月十五日徒刑的單一刑罰,有關刑罰准予暫緩三年執行(由本競合批示確定起之日計算);另外,緩刑期間繼續維持本案原有的緩刑義務(包括維持向本特區政府支付澳門幣50,000元的捐獻,已繳納的金額仍繼續作相應的扣除),但改為被判刑人須每週進行兩次尿液檢驗。於2017年2月14日,被判刑人在本案中的暫緩執行徒刑期間延長多一年,並繼續原有的緩刑義務(包括繳付當初判處的餘下捐獻、之前已決定的附隨考驗制度的戒毒義務),現緩刑期未過。
- 根據獲證明的事實,第二嫌犯和第三嫌犯沒有犯罪記錄。
- 第一嫌犯聲稱為司機,月收入為澳門幣8,000元,需供養父母及弟弟,嫌犯受教育程度為大學一年級程度。
- 第二嫌犯聲稱無業,靠儲蓄生活,需供養母親,嫌犯受教育程度為高中畢業程度。
- 第三嫌犯聲稱為司機,月收入為澳門幣7,000元需供養母親,嫌犯受教育程度為初中一年級程度。
未獲證明之事實:
- 控訴書、各民事損害賠償請求裝中其他與上述獲證事實不符之事實未獲證明屬實,特別是:
- 未獲證明:當日凌晨約一時四十三分,三名身份不明男子是由第一、二、三嫌犯所安排的假扮為賭客的。
- 未獲證明:在賭博期間被害人一直未獲容許進入貴賓會包房內觀看賭局進展情況。
- 未獲證明:但事實上根據賭廳資料紀錄,該三名男子在當日賭博中並未贏取款項,反而是輸掉了港幣貳拾萬元,因此賭檯上的專用籌碼被人偷偷添加擺放了港幣貳佰伍拾萬元。
- 未獲證明:第一、二、三嫌犯在明知和有意識的情況下,與他人分工合作,乘人不備,在賭博時偷偷添加特定種類的籌碼,造成贏得賭博的假象,其行為直接導致被害人遭受到相當巨大的財產損失;
- 未獲證明:第一、二、三嫌犯清楚知道其行為是法律所禁止,會受到法律之相應制裁。
2 Acs. do TSJ de 11.06.98, Proc. n.º 847; de 24.09.98, Proc. n.º 895 e de 29.09/99, proc. 1111/99, de 3/2/2000. Do proc. nº 1263 e 1267 etc.
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