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Processo n.º 65/2018 Data do acórdão: 2018-6-7 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– julgamento de factos
– art.o 114.o do Código de Processo Penal
– crime de falsificação de documento
– art.o 18.o, n.o 2, da Lei n.o 6/2004
– pedido de autorização de residência temporária em Macau
– investimento imobiliário
– falsas declarações sobre o estado civil
– ex-marido da requerente como beneficiário do pedido
– renovação de residência temporária em Macau
– consumação do crime



S U M Á R I O
1. Como após vistos os elementos de prova referidos na fundamentação probatória da decisão penal condenatória recorrida, não se vislumbra que o tribunal sentenciador tenha, aquando da formação da sua convicção sobre os factos, violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quaisquer leges artis a observar na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto, não pode vir a arguida aproveitar a sede de recurso para tentar fazer impor, ao arrepio do art.o 114.o do Código de Processo Penal, o seu ponto de vista pessoal sobre o resultado do julgamento de factos feito por esse tribunal recorrido.
2. A conduta da arguida de prestação de falsas declarações sobre o seu estado civil em documentos relativos a pedido de renovação da autorização de residência temporária em Macau e no acto de outorga de escritura de compra e venda de imóvel perante notário não deixa de ser susceptível de suportar o tipo-de-ilícito previsto no n.o 2 do art.o 18.o da Lei n.o 6/2004, porquanto segundo a letra desta norma incriminatória, a pena de dois a oito anos de prisão aplicável ao tipo-de-ilícito do n.o 1 do mesmo artigo também é aplicada “às falsas declarações sobre elementos de identificação do agente ou de terceiro, com intenção de obter qualquer dos documentos legalmente exigidos para a […] autorização de residência na RAEM”.
3. A subsistência da relação matrimonial inicial da arguida era requisito para autorização de residência em Macau do seu marido, porque do seu pedido inicial de autorização de residência temporária (com fundamento no investimento imobiliário em Macau) constava que ela pretendia que esse pedido beneficiasse inclusivamente o seu marido.
4. Como a norma incriminatória do n.o 2 desse art.o 18.o não distingue entre residência temporária e residência permanente em Macau, a questão de residência temporária também está sob a alçada do tipo-de-ilícito deste n.o 2 do art.o 18.o em causa.
5. Daí que a despeito de a arguida ter acabado por declarar o seu estado civil de divorciada no pedido da 3.a renovação da autorização de residência temporária dela e da sua filha em Macau, as suas falsas declarações sobre o estado civil de casada com o seu ex-marido prestadas para efeitos de apresentação do pedido da 2.a renovação de residência temporária inclusivamente do seu ex-marido não deixaram de ter relevância penal no sentido de já consumação, por ela, da conduta tipificada no n.o 2 do referido art.o 18.o.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 65/2018
(Autos de recurso em processo penal)
(Reclamação para conferência da decisão sumária do recurso)
Recorrente/reclamante: Arguida A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 473 a 477v dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR2-17-0232-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), que a condenou como autora material de três crimes de “falsificação de documentos” p. e p. pelo art.o 18.o, n.o 2, da Lei n.o 6/2004, em dois anos e seis meses de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico dessas três penas parcelares, finalmente em três anos de prisão única, suspensa na sua execução por três anos, sob condição de prestação, dentro de um mês contado do trânsito em julgado da condenação, de dez mil patacas de contribuição pecuniária a favor da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), veio a arguida A, aí já melhor identificada, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar a sua absolvição, tendo para o efeito apontado à decisão condenatória recorrida as seguintes questões na sua motivação apresentada a fls. 486 a 509 dos presentes autos correspondentes:
– erro notório na apreciação da prova (por o Tribunal senteciador ter sobretudo baseado a sua livre convicção sobre os factos nos documentos juntos aos autos, através de cujo teor não se poderia, porém, concluir pela verificação do dolo, nem tão-pouco do estado de espírito, da arguida na prática dos delitos imputados, sendo certo que o depoimento da única testemunha ouvida na audiência também não dava para este efeito);
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (por a mera conduta de prestação de declarações pessoais em documentos relativos a pedido de renovação da autorização de residência temporária em Macau ou no acto de outorga de escritura de compra e venda de imóvel perante notário não ser reconduzível a documentos ou meios referidos no art.o 244.o, n.o 1, alíneas a) ou b) do Código Penal, para os quais se remete o art.o 18.o da Lei n.o 6/2004);
– erro na aplicação do direito (por a arguida ter fundado o pedido de autorização de residência em Macau então apresentado no motivo de aquisição de bem imóvel em Macau, e não no motivo de junção familiar com o seu marido de então, pelo que a subsistência ou não da sua relação matrimonial não era requisito para autorização da residência);
– desconsideração, pelo Tribunal sentenciador, da já verificada desistência de crime por parte da arguida (por ela ter revelado o seu estado de divorciada no pedido da 3.a renovação da autorização de residência em Macau, e ter desistido do pedido da renovação da autorização do direito de residência permanente em Macau do seu ex-marido).
Ao recurso respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 515 a 522 dos autos, no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 531 a 533), pronunciando-se no sentido de manutenção do julgado.
Por decisão sumária do relator, exarada em 10 de Maio de 2018 (a fls. 537 a 540), foi decidido rejeitar o recurso, com fundamento na sua manifesta improcedência.
Veio agora a recorrente reclamar dessa decisão para conferência, através do correspondente pedido (apresentado a fls. 545 a 547), nele reiterando o já alegado na sua motivação do recurso, insistindo na rectidão do seu alegado sobretudo nas questões, aí postas, de inverificação do tipo legal de falsificação de documento e de desistência de crime.
A Digna Procuradora-Adjunta opinou (a fl. 549 a 549v) pela improcedência da reclamação.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
A decisão sumária do recurso (de fls. 537 a 540) tem o seguinte teor essencial:
– <<[…]
2. Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontrou proferido a fls. 473 a 477v, cujo teor (que inclui a respectiva fundamentação fáctica, probatória e jurídica) se dá por aqui inteiramente reproduzido.
3. De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, conhecendo:
A arguida recorrente assaca primeiro à decisão recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do CPP.
Entretanto, depois de vistos os elementos de prova referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha, aquando da formação da sua convicção sobre os factos, violado quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quaisquer leges artis a observar na tarefa jurisdicional de julgamento da matéria de facto, pelo que não pode vir a arguida aproveitar a sede de recurso para tentar fazer impor, ao arrepio do art.o 114.o do CPP, o seu ponto de vista pessoal sobre o resultado do julgamento de factos feito pelo Tribunal recorrido. E julgou bem o Tribunal recorrido ao considerar que a arguida agiu com dolo, havendo que decair naturalmente, perante o teor do facto provado 2 descrito no texto decisório recorrido (no último parágrafo da fl. 474v e no primeiro parágrafo da fl. 475), a tese da arguida da sua falta de consciência sobre a ilicitude dos factos ou falta de conhecimento sobre a lei de Macau.
Outrossim, alega a recorrente que a decisão recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Contudo, os argumentos concretamente tecidos por ela para sustentar a verificação desse vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do CPP não têm nada a ver com esse vício, mas sim já propriamente com a questão de alegada não verificação cabal do tipo de crime por que vinha acusada, questão essa a ver vista imediatamente em seguida.
Como já se concluiu acima que não houve erro notório na apreciação da prova, então há que decidir do recurso com base no acervo de factos já dados por provados no acórdão recorrido.
Assim, diversamente do alegado pela recorrente, a sua conduta de prestação de falsas declarações sobre o seu estado civil em documentos relativos a pedido de renovação da autorização de residência temporária em Macau e no acto de outorga de escritura de compra e venda de imóvel perante notário não deixa de ser susceptível de suportar o tipo-de-ilícito previsto no n.o 2 do art.o 18.o da Lei n.o 6/2004, porquanto segundo a letra desta norma incriminatória, a pena de dois a oito anos de prisão aplicável ao tipo-de-ilícito do n.o 1 do mesmo artigo também é aplicada “às falsas declarações sobre elementos de identificação do agente ou de terceiro, com intenção de obter qualquer dos documentos legalmente exigidos para a […] autorização de residência na RAEM”, sendo de frisar que a arguida ficou condenada em primeira instância no tipo-de-ilícito do n.o 2 desse art.o 18.o, pelo que são realmente descabidos os argumentos tecidos por ela a propósito do tipo legal do n.o 1 do mesmo preceito.
Por outra banda, é incorrecta a afirmação da arguida de que a subsistência ou não da sua relação matrimonial inicial não era requisito para autorização de residência na RAEM. É que ela se esqueceu deveras de que do seu pedido inicial de autorização de residência temporária em Macau, constava que ela pretendia que esse seu pedido beneficiasse inclusivamente o seu marido (cfr. o conteúdo do facto provado 1, na página 4 do texto do acórdão recorrido, a fl. 474v), pelo que a manutenção da sua relação matrimonial era requisito legal também para a autorização de residência temporária do seu marido de então. Nota-se que o Legislador foi clarividente na redacção do n.o 2 do referido art.o 18.o, ao fazer incluir nesta norma incriminatória também a expressão “de terceiro”.
Sobre a questão de desistência de crime:
Como a norma incriminatória do n.o 2 desse art.o 18.o não distingue entre residência temporária e residência permanente na RAEM, a questão de residência temporária também está sob a alçada do tipo-de-ilícito deste n.o 2 do art.o 18.o em causa. Daí que a despeito de a arguida ter acabado por declarar o seu estado civil de divorciada no pedido da 3.a renovação da autorização de residência temporária dela e da sua filha em Macau (cfr. o conteúdo do facto provado 17, na página 6 do texto decisório recorrido, a fl. 475v), as suas falsas declarações sobre o estado civil de casada com o seu ex-marido prestadas para efeitos de apresentação do pedido da 2.a renovação de residência temporária inclusivamente do seu ex-marido não deixaram de ter relevância penal no sentido de já consumação, por ela, da conduta tipificada no n.o 2 do referido art.o 18.o.
Em suma, estão reunidos, efectivamente, todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo-de-ilícito do n.o 2 do art.o 18.o mencionado.
Do exposto decorre que improcede evidentemente o recurso, sendo de rejeitá-lo, nos termos dos art.os 407.º, n.º 6, alínea b), e 410.º, n.º 1, do CPP, sem mais indagação por desnecessária, devido ao espírito do n.º 2 desse art.º 410.º.
4. Dest’arte, decide-se em rejeitar o recurso.
Custas do recurso pela arguida, com quatro UC de taxa de justiça e seis UC de sanção pecuniária (pela rejeição do recurso).
Comunique a presente decisão ao Senhor Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, para os efeitos tidos por convenientes.
Macau, 10 de Maio de 2018.
[…]>>.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Pois bem, da leitura do petitório da reclamação sub judice, vê-se que a arguida pretendeu que sobre as questões colocadas na sua motivação do recurso se pronunciasse este TSI em tribunal colectivo.
Entretanto, vista fundamentação da decisão sumária do recurso, há que manter, nos seus precisos termos, essa decisão ora sob reclamação, por ela estar conforme com os elementos factuais aí referidos e o direito aplicável aí aplicado.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente a reclamação da recorrente.
Para além das custas e montantes referidos no ponto 4 do texto da decisão sumária, pagará ainda a recorrente as custas do presente processado da reclamação (com duas UC de taxa de justiça).
Macau, 7 de Junho de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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