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Processo n.º 52/2018. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorrido: B.
Assunto: Usucapião. Constituto possessório. Inversão do título da posse. Alínea c) do artigo 1163.º e artigo 1164.º do Código Civil de 1966. Alínea d) do artigo 1263.º do Código Civil de 1966 e alínea e) do artigo 1187.º do Código Civil de Macau.

Data do Acórdão: 31 de Julho de 2018.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
  I – Se o proprietário e possuidor de um imóvel o vende validamente a uma sociedade comercial por quotas, de que é o sócio maioritário e gerente, não obstante continuar a praticar os mesmos actos que consubstanciam o corpus da posse, esta transmitiu-se à sociedade por força do constituto possessório, passando aquele a ser um mero detentor.
II – Para que o detentor do imóvel mencionado na conclusão anterior volte a ser possuidor é necessário ocorrer a inversão do título da posse.

O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A intentou acção de reivindicação (declarativa com processo comum ordinário) contra C e ocupantes desconhecidos das fracções A Quatro e A Cinco, correspondendo actualmente a AA Três e AA Quatro, respectivamente, dos 3.º e 4.º andares do prédio com o [Endereço (1)] e [Endereço (2)], descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau, sob o n.º XXXX, a fls. 10 v. do Livro X-XX.
Foi entretanto, chamado a intervir como réu B, que contestou e reconveio pedindo a declaração de usucapião do direito de propriedade das fracções.
Por sentença do Ex.mo Presidente do Tribunal Colectivo, foi a acção julgada improcedente quanto à ré e absolvida do pedido e procedente quanto ao réu, que foi condenado a reconhecer o autor como proprietário das fracções e a restitui-las ao autor. E julgou improcedente a reconvenção, absolvendo o autor do pedido.
Recorreu o réu B para o Tribunal de Segunda Instância (TSI) que, por Acórdão de 1 de Março de 2018, julgou parcialmente procedente o recurso e:
A) Alterou a matéria de facto provada (quesitos 5.º, 16.º, 19.º e 25.º);
B) Julgou improcedente a acção, absolvendo o réu do pedido;
C) Julgou procedente a reconvenção e, em consequência, declarou o réu B como único proprietário das fracções.
Recorre, agora, para este Tribunal de Última Instância (TUI) o autor A, suscitando duas questões:
- A alienação das fracções a favor da “D” – facto assente na alínea f) da matéria apurada – teve como consequência jurídica a transferência da posse sobre as fracções para esta sociedade.
- Face a esta conclusão, o interveniente e recorrido B, mero detentor das fracções dos autos, a partir de Abril de 1983, terá utilizado as mesmas ao abrigo de um eventual direito de uso e habitação, eventualmente “acordado” com a sociedade possuidora das fracções, a “D” – que, ele, o B controlaria, logo dispondo das fracções a seu bel-prazer.
- O recorrido B não formulou o pedido de cancelamento dos registos, sucessivamente, primeiro, a favor de E, e último, a favor de A. E, agora, também já não o poderá fazer, devendo entender-se que tal falta conduz à absolvição da instância do pedido reconvencional, no caso, do ora recorrente.

II – Os factos
Estão provados os seguintes factos:
Pela Apresentação n.º 3 de 19 de Agosto de 1970, inscrição n.º XXXXX, foi registada a aquisição do imóvel aludido em a) a favor de F ou F1, por sucessão hereditária [Alínea c) dos factos assentes].
Em 1979, B constituiu uma sociedade por quotas denominada “Empresa de Construção Civil e Investimento Predial D, Limitada”, da qual era sócio maioritário e gerente-geral, em conformidade com o teor da certidão de matrícula junta a fls. 185 a 204 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido [Alínea d) dos factos assentes].
Pela Apresentação n.º 58 de 13 de Abril de 1983, inscrição n.º XXXXX, foi registada a aquisição do imóvel aludido em a) a favor da “Empresa de Construção Civil e Investimento Predial D, Limitada”, por aquisição [Alínea e) dos factos assentes].
Em Janeiro de 2002, G, sócio da “Empresa de Construção Civil e Investimento Predial D, Limitada”, faleceu [Alínea f) dos factos assentes].
Em Janeiro de 2005 foi registada junto da competente Conservatória uma acta da “Empresa de Construção Civil e Investimento Predial D Limitada”, datada de 29 de Julho de 1998, em conformidade com o teor do documento junto a fls. 164 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido [Alínea g) dos factos assentes].
Encontram-se inscritas a favor do Autor, pela AP n.º127 de 18.06.2007, inscrição n.º XXXXXXX, as fracções autónomas «A QUATRO» do terceiro andar (correspondência actual AA TRÊS) e «A CINCO» do quarto andar (correspondência actual AA QUATRO), sitas em Macau, ambas para habitação, com entrada pelo [Endereço (2)], do prédio com o [Endereço (1)] e [Endereço (2)], inscrito na matriz predial da freguesia da Sé, Concelho de Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial n.º XXXX, a fls. 10v, do livro X-XX e, em conformidade com o teor da certidão junta a fls. 7 a 12 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido [Alínea a) dos factos assentes].
A inscrição das fracções em nome do Autor foi feita com base na escritura pública de compra e venda, celebrada em 11 de Junho de 2007, lavrada a fls. 4, do livro XXX do Notário Privado H, em conformidade com o teor da certidão junta a fls. 13 a 15 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido [Alínea b) dos factos assentes].
No local onde foi edificado o prédio onde fazem parte as fracções dos autos existia um imóvel que tinha pertencido aos avós paternos do B (Resposta ao quesito 3.º da base instrutória).
B viveu em Moçambique (Resposta ao quesito 4.º da base instrutória).
Em 1961, B, a mãe e os três irmãos regressaram a Macau e foram viver no imóvel referido na resposta dada ao item 3.º) (Resposta ao quesito 5.º da base instrutória).
O imóvel referido na resposta ao quesito 3.º da base instrutória era velho (Resposta ao quesito 6.º da base instrutória).
B chegou a um acordo com um empreiteiro, nos termos do qual aquele se comprometia a demolir o prédio quase em ruínas e a construir um novo em seu lugar (Resposta ao quesito 9.º da base instrutória).
O referido no item anterior aconteceu em 1974 (Resposta ao quesito 10.º da base instrutória).
Como contrapartida, o prédio seria dividido, ficando a família do B com as fracções do 3.° e 4.° andares e o empreiteiro com as demais (Resposta ao quesito 11.º da base instrutória).
B e a sua mulher I, também conhecida por I1, escolheram as fracções dos autos como a sua casa de morada de família (Resposta ao quesito 12.º da base instrutória).
É nesse local onde, ainda hoje, se encontram todos os seus bens móveis desde mobiliário a artigos de decoração, roupa sua e da sua falecida mulher I (Resposta ao quesito 13.º da base instrutória).
Era nas fracções que o B e seus familiares se reuniam para celebração das ocasiões festivas (Resposta ao quesito 14.º da base instrutória).
B usa as fracções autónomas como verdadeiro dono e com conhecimento de toda a gente, há cerca de 30 anos (Resposta ao quesito 16.º da base instrutória).
A Ré é familiar da falecida mulher de B (Resposta ao quesito 17.º da base instrutória).
Em 2000 quando B se ausentou de Macau para os Estados Unidos da América, incumbiu a ora Ré, de fazer as limpezas, tratar dos pagamentos das despesas de água, electricidade (Resposta ao quesito 19.º da base instrutória).
Também incumbiu a Ré de manter as fracções em bom estado de utilização e conservação fazendo as obras necessárias (Resposta ao quesito 20.º da base instrutória).
Para o efeito entregou-lhe as chaves das fracções e autorizou que a Ré aí continuasse a viver (Resposta ao quesito 21.º da base instrutória).
No dia 27 de Junho de 2008, B autorizou que duas das suas filhas passassem a residir no 4.º andar, do aludido imóvel (Resposta ao quesito 22.º da base instrutória).
G, era sócio da sociedade aludida em d) (Resposta ao quesito 23.º da base instrutória).
G era a pessoa em quem B depositava confiança para o ajudar a cuidar dos negócios, na sua eventual ausência (Resposta ao quesito 25.º da base instrutória).
B usou as fracções como sua casa de morada de família (Resposta ao quesito 26.º da base instrutória).
A acta aludida em g) foi feita numa folha timbrada com a informação pessoal do B (Resposta ao quesito 30.º da base instrutória).
A acta aludida em g) foi levada ao Cartório Privado do J para que este reconhecesse a sua assinatura em 30 de Julho de 1998, o que este fez por confronto com o original do respectivo documento de identificação (Resposta ao quesito 37.º da base instrutória).

III – O Direito

1. Questões a apreciar
Há que conhecer das questões suscitadas pelo recorrente.


2. Constituto possessório
O imóvel dos autos pertencia ao pai do réu e a sua aquisição foi registada a seu favor em 1970, sendo já falecido (documentos juntos aos autos).
Em 1961, o réu, a mãe e os três irmãos regressaram a Macau e foram viver no prédio dos autos, que era velho.
Em 1974 o réu chegou a um acordo com um empreiteiro, nos termos do qual este se comprometia a demolir o prédio quase em ruínas e a construir um novo em seu lugar. Como contrapartida, o prédio seria dividido, ficando a família do réu com as fracções do 3.º e 4.º andares e o empreiteiro com as demais (rés-do-chão, 1.º e 2.º andares, segundo consta da descrição predial). Como resulta da certidão de fls. 73, já em 1974 estava registada a constituição da propriedade horizontal do novo prédio.
Porém, em 1979, o réu constituiu uma sociedade comercial por quotas denominada “Empresa de Construção Civil e Investimento Predial D, Limitada”, da qual era sócio maioritário e gerente-geral e em 1983 as duas fracções do prédio foram adquiridas pela mencionada sociedade.
Quer isto dizer que a sociedade não foi constituída para adquirir as duas fracções, já que o réu no artigo 30.º da sua contestação alega que a sociedade desenvolvia actividade comercial, o que também se poderia inferir tendo em atenção as datas da constituição da sociedade (1979) e a data em que a sociedade adquiriu as duas fracções (1983).
Não está em causa que o prédio pertencesse à família do réu e que este ou a sua família exercesse a posse sobre o mesmo pelo menos desde 1961, quando regressou de Moçambique.
Contudo, as duas fracções dos autos foram vendidas em 8 de Março de 1983 a uma sociedade comercial (fls. 77), de que o réu era o sócio maioritário e gerente. Não foi invocado qualquer vício da vontade nas vendas.
Assim sendo, os actos consubstanciadores de posse que o réu exerceu nas fracções a partir de 1983 têm de considerar-se em nome da sociedade comercial, face ao disposto na alínea c) do artigo 1163.º e do artigo 1164.º do Código Civil de 1966, vigente ao tempo, ou seja, por força do constituto possessório.
Na verdade, dispõe a alínea c) do artigo 1163.º do Código Civil de 1966 que a posse se adquire por constituto possessório. E estatui o artigo 1164.º do mesmo Código Civil:
Artigo 1164.º
(Constituto possessório)
1. Se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa.
2. Se o detentor da coisa, à data do negócio translativo do direito, for um terceiro, não deixa de considerar-se igualmente transferida a posse, ainda que essa detenção haja de continuar.


Ou seja, a partir do momento em que se fez a transmissão das fracções para a sociedade comercial de que o réu era o sócio maioritário, este detinha as fracções, mas a posse passou a ser da sociedade comercial. Isto é, quando o proprietário de um imóvel o vende a outrem, continuando a viver no prédio, de possuidor passou a detentor, ainda que os actos materiais anteriores persistam.
Ora, sem haver posse não pode haver aquisição do direito de propriedade por usucapião (artigo 1212.º do Código Civil de Macau e artigo 1287.º do Código Civil de 1966).

3. Inversão do título da posse
Por outro lado, a partir de 1983, de mero detentor, o réu só poderia passar a possuidor das fracções se tivesse havido inversão do título da posse.
A inversão do título da posse consiste na substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio1.
Como dispunha o artigo 1165.º do Código Civil de 1966, vigente ao tempo2:
Artigo 1265.º
(Inversão do título da posse)
 A inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.
 
Ora, no caso dos autos, não se provou qualquer acto de oposição do réu contra a sociedade comercial em nome da qual possuía, de modo a adquirir a posse, nos termos da alínea d) do artigo 1263.º do Código Civil de 1966 ou da alínea e) do artigo 1187.º do Código Civil de Macau.

Tanto basta para improceder a reconvenção.

4. Procedência da acção com fundamento em presunção derivada do registo de aquisição das fracções
Sendo improcedente a reconvenção, subsistem os fundamentos da sentença de 1.ª instância para a procedência da acção relativamente ao réu, ou seja, com base em registo de aquisição do direito de propriedade das fracções a favor do autor, que faz presumir a existência do direito, nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial, presunção não ilidida pelos réus. Efectivamente, o réu alega que a transmissão das fracções não foi legítima, mas que não se pôde deslocar a Macau para ser ouvido em inquérito pela Polícia Judiciária, que acabou por ser arquivado. Ainda que isso se tivesse passado como o réu alega, sempre estaria por explicar por que é que o réu não utilizou os meios cíveis para reverter a transmissão das fracções, para o que não necessitava de se deslocar a Macau.
Em conclusão, procede a acção quanto ao réu e improcede a reconvenção.
Está prejudicado conhecimento do 2.º fundamento do recurso.

IV – Decisão
Face ao expendido, concede-se provimento ao recurso, julga-se procedente a acção quanto ao réu B, nos termos decididos na sentença de 1.ª instância e improcedente a reconvenção, absolvendo-se o autor do pedido.
Custas pelo réu B nas duas instâncias de recurso.

Macau, 31 de Julho de 2018.
  
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

     1 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, volume III, 2.ª edição, reimpressão de 1987, p. 30, em anotação ao artigo 1265.º.
     2 A que corresponde o artigo 1190.º do Código Civil de Macau, com uma redacção um pouco diferente na parte da transferência de terceiro, mas sem modificação substancial do sentido do preceito anterior.
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