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Processo n.º 53/2018. Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência em processo penal.
Recorrentes: A e B.
Recorrido: Ministério Público.
Assunto: Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência em processo penal. Oposição de acórdãos. Questão fundamental.
Data do Acórdão: 31 de Julho de 2018.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I - Quando, em processo penal, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Segunda Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
II - As decisões devem ter sido proferidas no domínio da mesma legislação; o acórdão fundamento deve ser anterior ao acórdão recorrido e ter transitado em julgado; o acórdão recorrido não deve admitir recurso ordinário; o recurso para uniformização de jurisprudência tem de ser interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
III – Para que se possa considerar haver oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito é necessário que:
- A oposição entre as decisões seja expressa e não meramente implícita;
- A questão decidida pelos dois acórdãos seja idêntica e não apenas análoga. Os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões, ou seja, os factos nucleares e necessários à resolução do problema jurídico, devem ser idênticos;
- A questão sobre a qual se verifica a oposição deve ser fundamental. Ou seja, a questão de direito deve ter sido determinante para a decisão do caso concreto.
IV - Existe oposição entre os acórdãos de 8 de Março de 2018, no Processo n.º 486/2017, e de 31 de Janeiro de 2002, no Processo n.º 131/2001, ambos do Tribunal de Segunda Instância, na qualificação do vício processual relativamente à omissão da audição do arguido quando o Tribunal de 1.ª Instância procede a alteração da qualificação jurídica do crime pelo qual se opera a condenação, por aplicação analógica do disposto no n.º 1 do artigo 339.º do Código de Processo Penal.
V - No acórdão de 31 de Janeiro de 2002 considerou-se que o vício mencionado em IV- é o da nulidade da sentença, prevista na alínea b) do artigo 360.º do Código de Processo Penal, na redacção vigente ao tempo, que corresponde integralmente à alínea b) do n.º 1 do artigo 360.º do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 9/2013.
VI - No acórdão de 8 de Março de 2018 entendeu-se que o vício é o da irregularidade, previsto no n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Penal.
VII – Não obstante a oposição expressa dos dois acórdãos sobre a mesma questão de direito, a questão sobre a qual se verifica a oposição não foi fundamental, para o acórdão de 31 de Janeiro de 2002. Ou seja, a questão de direito não foi determinante para a decisão do caso concreto deste último acórdão, dado que, apesar de se considerar que a sentença recorrida cometeu a nulidade prevista na alínea b) do artigo 360.º do Código de Processo Penal, não declarou a nulidade, por ter considerado que, ao contrário do entendido na mesma sentença, os factos dados como provados não integravam o crime pelo qual o arguido foi condenado e acabou por absolvê-lo do mesmo crime. Ou seja, o entendimento do acórdão de 31 de Janeiro de 2002, de que a sentença recorrida cometeu a nulidade prevista na alínea b) do artigo 360.º do Código de Processo Penal, foi completamente inócuo, dado que não retirou nenhuma conclusão desse entendimento, sendo totalmente irrelevante para a decisão a que chegou.
O Relator
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A e B, interpõem recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do Acórdão de 8 de Março de 2018, no Processo n.º 486/2017, do Tribunal de Segunda Instância (TSI), no qual foram arguidos, com fundamento em que o mesmo se encontra em oposição com o Acórdão do mesmo TSI, de 31 de Janeiro de 2002, no Processo n.º 131/2001.
De acordo com os recorrentes, a oposição entre os dois acórdãos está na qualificação do vício processual relativamente à omissão da audição do arguido quando o Tribunal procede a alteração da qualificação jurídica do crime pelo qual se opera a condenação, por aplicação analógica do disposto no n.º 1 do artigo 339.º do Código de Processo Penal.
Entendem os recorrentes que no acórdão fundamento se considerou que o vício mencionado é o da nulidade da sentença, prevista na alínea b) do artigo 360.º do Código de Processo Penal, na redacção vigente ao tempo, que corresponde integralmente à alínea b) do n.º 1 do artigo 360.º do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 9/2013.
Para os mesmos recorrentes, no acórdão recorrido entendeu-se que o vício é o da irregularidade, previsto no artigo 110.º do Código de Processo Penal.
O Ex.mo Procurador-Adjunto, na resposta à motivação, pronuncia-se pela inexistência de oposição entre os dois acórdãos referidos, já que ambos entenderam que a sentença recorrida violou o disposto no artigo 339.º do Código de Processo Penal.
No seu parecer, o Ex.mo Procurador-Adjunto manteve a posição já assumida na resposta à motivação.

II - Direito
1. Requisitos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, em processo penal.
Cabe proferir a decisão a que se refere o n.º 1 do artigo 423.º do Código de Processo Penal, isto é, decidir se o recurso deve prosseguir ou se deve ser rejeitado, por ocorrer motivo de inadmissibilidade ou por não existir oposição de julgados.
Seguimos aqui o que dissemos no acórdão de 23 de Setembro de 2015, no Processo n.º 59/2015.
Dispõe o artigo 419.º do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pelo artigo 73.º da Lei n.º 9/1999, de 20.12:
“Artigo 419 º
Fundamento do recurso

1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado”.

Face a esta norma, trata-se de saber:
- Se foram proferidos dois acórdãos que, relativamente, à mesma questão de direito, assentam em soluções opostas;
- Se as decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação;
- Se o acórdão fundamento é anterior ao acórdão recorrido e se transitou em julgado;
- Se do acórdão recorrido não era admissível recurso ordinário;
- Se o recurso foi interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, ou seja do acórdão recorrido (n.º 1 do artigo 420.º do Código de Processo Penal).

2. Existência de dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas
Relativamente ao pressuposto fundamental em questão – existência de dois acórdãos que, relativamente, à mesma questão de direito, assentam em soluções opostas - tem-se considerado (por exemplo, no acórdão do TUI, de 11 de Março de 2009, no Processo n.º 6/2009) que:
As decisões devem ser diversas, opostas, não necessariamente contraditórias.
A oposição entre as decisões deve ser expressa e não meramente implícita. Não basta que numa das decisões possa ver-se aceitação tácita de doutrina contrária a outra decisão.
A questão decidida pelos dois acórdãos deve ser idêntica e não apenas análoga. A este respeito tem-se entendido que os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões, ou seja, os factos nucleares e necessários à resolução do problema jurídico, devem ser idênticos.
A questão sobre a qual se verifica a oposição deve ser fundamental. Ou seja, a questão de direito deve ter sido determinante para a decisão do caso concreto.
A questão sobre a qual há oposição tem de ser uma questão de direito. Não pode ser uma questão de facto, até porque o TUI não aprecia, normalmente, matéria de facto.
Se uma referência, de um Acórdão, sobre uma questão jurídica, não se consubstancia numa decisão, nunca pode haver oposição de acórdãos conducente a uma decisão uniformizadora de jurisprudência por parte do TUI (acórdão do TUI, de 31 de Março de 2009, no Processo n.º 6/2009).
A parte preceptiva da decisão judicial é apenas a ratio decidendi, ou seja, a razão de decidir, a regra de direito considerada necessária pelo juiz para chegar à sua conclusão. Os obiter dicta (regras de direito que não são fundamentais para decidir, aquilo que é dito sem necessidade absoluta para tomar a decisão) não vinculam (acórdão do TUI, de 31 de Março de 2009, no Processo n.º 6/2009).

3. O caso dos autos
Há, efectivamente, divergência entre os dois acórdãos sobre a mesma questão de direito.
Ambos os acórdãos convergem no sentido de que existe violação do disposto no n.º 1 do artigo 339.º do Código de Processo Penal, quando a sentença condenatória opera uma alteração da qualificação jurídica do crime da condenação, sem que o juiz que preside ao julgamento dê cumprimento ao comando estabelecido na parte final da norma: comunicação da alteração ao arguido e concessão, se ele o requerer, do tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
A divergência está em que no acórdão fundamento se considerou que o vício da falta de comunicação é o da nulidade da sentença, prevista na alínea b) do artigo 360.º do Código de Processo Penal, na redacção vigente ao tempo, que corresponde integralmente à alínea b) do n.º 1 do artigo 360.º do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 9/2013. Enquanto no acórdão recorrido se entendeu que o vício é o da irregularidade, previsto no n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Penal.
Há, assim, manifesta oposição expressa entre os dois acórdãos, que consagram soluções jurídicas distintas.
Mas, como dissemos atrás, a questão sobre a qual se verifica a oposição tem de ser fundamental, isto é, determinante para a decisão do caso concreto.
Porém, afigura-se-nos que, se bem que a questão sobre a qual se verifica a oposição foi fundamental, isto é, foi determinante para a decisão do caso concreto do acórdão recorrido, já não o foi na decisão do acórdão fundamento.
Na verdade, o acórdão recorrido, ao ter optado pela solução da irregularidade, considerou intempestiva a arguição do vício, já que o prazo desta arguição é menor que o prazo do recurso, sendo que a arguição se deu neste prazo, quando já tinha passado o prazo para a arguição de irregularidade, pelo que entendeu que esta se sanou.
Já no acórdão fundamento não foi assim. Neste acórdão, apesar de se considerar que a sentença recorrida cometeu a nulidade prevista na alínea b) do artigo 360.º do Código de Processo Penal, não declarou a nulidade, por ter considerado que, ao contrário do entendido na mesma sentença, os factos dados como provados não integravam o crime pelo qual o arguido foi condenado e acabou por absolvê-lo do mesmo crime. Isto é, o acórdão fundamento não declarou a nulidade da sentença, provavelmente por considerar mais vantajosa, para a posição processual do recorrente, a sua absolvição. Ou seja, o entendimento do acórdão fundamento, de que a sentença recorrida cometeu a nulidade prevista na alínea b) do artigo 360.º do Código de Processo Penal, foi completamente inócuo, dado que não retirou nenhuma conclusão desse entendimento, sendo totalmente irrelevante para a decisão a que chegou.
Deste modo, a oposição entre os dois acórdãos não releva para efeitos de emissão de acórdão uniformizador de jurisprudência.

III - Decisão
Face ao expendido, rejeita-se o recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando a taxa de justiça em 4 UC.

Macau, 31 de Julho de 2018.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai


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