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Processo n.º 768/2015 Data do acórdão: 2018-7-12 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– objecto do inquérito
– anterior participação criminal à Polícia Judiciária
– notificação da acusação
– falta de inquérito
– art.o 106.o, alínea e), do Código de Processo Penal
– art.o 40.o, n.o 1, da Lei n.o 8/2005
– art.o 312.o, n.o 1, do Código Penal
– cominação da punição da desobediência
S U M Á R I O
1. Como o assunto de difamação reportado por um dos recorrentes à Polícia Judiciária aquando da sua inquirição no âmbito do presente processo penal na fase de inquérito já foi objecto da anterior participação criminal feita por ele à mesma Polícia, e não havendo notícia no presente processo de que tal assunto tenha sido objecto de apensação ao presente processo, é assim legal a não feitura, pelo Ministério Público, de notificação daquele indivíduo na qualidade de ofendido queixoso, do libelo acusatório deduzido no presente processo contra o outro ora recorrente pela prática do crime de incumprimento de obrigações relativas a dados e do crime de desobediência qualificada.
2. E como aquele assunto de difamação já foi objecto da anterior participação criminal à Polícia Judiciária, o mesmo assunto iria ser objecto de investigação em sede respectiva própria, e não no seio do presente processo penal, instaurado na sequência do ofício do Gabinete para a Protecção de Dados Pessoais então dirigido à Polícia Judiciária, daí que não é possível falar, processualmente, nos presentes autos, de alguma falta de inquérito (referida na alínea e) do art.o 106.o do Código de Processo Penal) sobre tal assunto de difamação, visto que o objecto do presente processo nunca foi constituído pelo dito assunto de difamação.
3. É a norma do n.o 1 do art.o 40.o da Lei n.o 8/2005 que dita que “Quem, depois de notificado para o efeito, não interromper, cessar ou bloquear o tratamento de dados pessoais é punido com a pena correspondente ao crime de desobediência qualificada”, o que equivale a dizer que é essa disposição legal que comina, no caso, a punição da desobediência qualificada, pelo que já não é necessário que o funcionário representante do Gabinete para a Protecção de Dados Pessoais faça a correspondente cominação na notificação da ordem em questão à pessoa visada. Para constatar isto, basta ver as duas condições legais alternativas vertidas no n.o 1 do art.o 312.o do Código Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 768/2015
(Autos de recurso penal)
Recorrentes: A e B







ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 403 a 409 (com lapso de escrita rectificado por despacho judicial de fl. 523) dos autos de Processo Comum Singular n.° CR3-14-0546-PCS do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor material, na forma consumada, de um crime de não cumprimento de obrigações relativas a protecção de dados, p. e p. pelos art.os 21.o, n.o 1, 22.o, n.o 1, alínea 2), e 37.o, n.o 1, alínea 1), da Lei n.o 8/2005 (Lei de Protecção de Dados Pessoais), na pena de três meses de prisão, e de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art.o 40.o, n.o 1, da mesma Lei, conjugado com o art.o 312.o, n.o 2, do Código Penal (CP), na pena de cinco meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas, finalmente na pena única de seis meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, veio o arguido B, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando ao Tribunal sentenciador, a título principal, o cometimento de erro notório na apreciação da prova (como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP)) relativa ao julgamento dos primeiros dois “factos provados” (já que no entender do próprio recorrente, apesar de ser ele o Presidente da Administração da “XXX Limitada”, nem ele nem essa sociedade comercial, conforme o que se poderia resultar das provas nos autos, tinham qualquer relação com o sítio “XXX” em causa nos autos, não sendo, pois, ele e essa sociedade o fundador nem titular registado desse sítio na internet), para pedir a sua absolvição total, sem ter deixado de apontar, subsidiariamente, a esse Tribunal o erro de aplicação do tipo legal de desobediência qualificada do art.o 40.o, n.o 1, da referida Lei (porquanto, no seu alegado no essencial, aquando da feitura da notificação em questão nessa norma, a pessoa representante do Gabinete para a Protecção de Dados Pessoais não tinha chegado a advertir o ora recorrente de que o não cumprimento da ordem constante dessa notificação iria constituir a prática de crime), para rogar a absolvição, pelo menos, do crime de desobediência qualificada (cfr. em detalhes, a motivação do recurso apresentada a fls. 494 a 507 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso do arguido, respondeu o Ministério Público no sentido de manutenção do julgado (cfr. a resposta de fls. 519 a 521v).
Entrementes, no âmbito dos presentes autos, foi interposto também um recurso pelo senhor A, do despacho proferido (a fls. 375 a 375v) pela M.ma Juíza titular do processo em primeira instância, por força do qual lhe tinha indeferido o pedido (então formulado a fl. 372 a 373) de declaração da nulidade insanável prevista na alínea d) do art.o 106.o do CPP e de consequente anulação de todo o processado depois de proferida a acusação, e de remessa do processo novamente ao Ministério Público para os efeitos dos art.os 265.o, n.o 5, e 259.o, n.o 3, do CPP.
Alegou esse senhor (na sua motivação de fls. 474 a 490), no seu essencial, o seguinte:
– ele, nos presentes autos, apresentou uma participação criminal assim que teve conhecimento de que o arguido publicou no site da internet “XXX”, explorado por este, o documento de identificação do próprio recorrente e bem assim deixou escritas nesse site afirmações difamatórias do bom nome, da reputação e do direito que o recorrente tinha à reserva da sua vida privada, cometendo o arguido assim um crime de violação da privacidade do recorrente;
– mas, a referida participação criminal não teve qualquer desenvolvimento investigativo e ou processual;
– o recorrente nunca foi notificado do rumo que foi dado à sua participação criminal, nunca foi informado dos seus direitos e das suas obrigações processuais enquanto ofendido do crime perpetrado pelo arguido e pelo site por ele explorado;
– por não ter tido conhecimento de nada do que se passou entre a participação criminal que apresentou enquanto ofendido e a sua notificação como mera testemunha, o recorrente foi invocar a nulidade insanável prevista na alínea d) do art.o 106.o do CPP, e requerer que fosse oficiosamente anulado todo o processado depois de proferida a acusação devendo para os devidos efeitos ser remetidos os presentes autos novamente ao Ministério Público para efeitos do cumprimento do disposto nos art.os 265.o, n.o 5, 259.o, n.o 3, e 267.o, n.o 2, do CPP;
– requerimento esse que veio a ser indeferido por despacho judicial ora recorrido;
– sucede que o recorrente é pessoa ofendida dos factos practicados e deverá ter acesso aos direitos consagrados nos termos conjugados dos art.os 265.o, n.o 5, 259.o, n.o 3, e 267.o, n.o 2, do CPP;
– pelo que deve ser deferido o seu requerimento então indeferido pelo despacho judicial recorrido.
Sobre o recurso desse senhor, respondeu também o Ministério Público (a fls. 515 a 518) no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 537 a 539v), pugnando pela não procedência dos dois recursos.
Em sede de exame preliminar dos autos, por despacho do relator (de fl. 550 a 550v), foi decidido que este TSI não iria tomar conhecimento do recurso então interposto pelo senhor A.
Desse despacho do relator, reclamou esse senhor para conferência (através do petitório de fls. 554 a 557).
Sobre essa reclamação, opinou a Digna Procuradora-Adjunta (a fls. 561 a 562v) pela necessidade do conhecimento do recurso do reclamante.
Por subsequente despacho do relator (de fl. 563), foi relegada, para final, a decisão dessa reclamação.
Completados os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O presente processo penal nasceu na sequência de um ofício subscrito pelo Gabinete para a Protecção de Dados Pessoais, dirigido à Polícia Judiciária, comunicando a esta que esse Gabinete tomou conhecimento, através dos massmedia, que um indivíduo chamado B, então dedicador às actividades de jogos, tinha aberto na internet um sítio “XXX”, a publicitar gratuitamente dados pessoais de devedores de dívidas de jogos como tal fornecidos pelo sector, a fim de tentar obrigar os devedores a comparecer para pagar dívidas, pelo que considerando que isso podia envolver actos ilegais criminais, foi comunicar por escrito esse assunto à Polícia Judiciária para efeitos de investigação (cfr. o teor desse ofício a fl. 4).
2. O senhor A, na fase de inquérito do presente processo, inquirido pela Polícia Judiciária (cfr. o auto de inquirição de fl. 171 a 171v), declarou que os dados postos pelo arguido contra ele (no sentido de que ele devia HKD180.000,00 a outrem) no sítio na internet em causa afectaram gravemente a sua imagem tanto pessoal como comerciante, e que em Novembro de 2013 já participou o caso à Polícia Judiciária.
3. A acusação pública deduzida no presente processo (a fls. 317 a 319) contra o arguido pela prática do crime de não cumprimento de obrigações relativas a protecção de dados e do crime de desobediência qualificada não foi objecto de notificação ao senhor A.
4. Do processado do presente processo penal até ao momento de dedução da acusação pública, não consta qualquer notícia de que o processo pelo referido assunto de difamação tenha sido apensado ao presente processo para efeitos de investigação em conjunto.
5. Depois de ter tomado conhecimento de que tinha sido arrolado como testemunha pelo Ministério Público para efeitos de julgamento em audiência dos factos acusados por esse Órgão Judiciário ao arguido (assunto esse que foi objecto da carta de notificação a si dirigida e aludida na fl. 341), o senhor A formulou, a fl. 372 a 373 do presente processo penal, o pedido, dirigido ao Tribunal titular do mesmo processo em primeira instância, de declaração da nulidade insanável prevista na alínea d) do art.o 106.o do CPP, de consequente anulação de todo o processado depois de proferida a acusação, e de remessa do processo novamente ao Ministério Público para os efeitos dos art.os 265.o, n.o 5, e 259.o, n.o 3, do CPP, alegando ele que encerrado o inquérito deveria o Ministério Público ter notificado ele como ofendido nos termos conjugados do n.o 5 do art.o 265.o, e no n.o 3 do art.o 259.o, ambos do CPP, para que ele tivesse a oportunidade de vir aos autos dizer o que tivesse por conveniente e exercer os direitos, designadamente, de vir requerer a sua constituição como assistente, deduzir pedido de indemnização cível ou até deduzir acusação particular.
6. Esse pedido acabou por ser indeferido (a fls. 375 a 375v) pela M.ma Juíza titular do processo em primeira instância (cujo despacho se dá por aqui integralmente reproduzido).
7. A sentença ora recorrida consta de fls. 58 a 61v, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
É de apreciar primeiro a reclamação, deduzida pelo senhor A, do despacho do relator que decidiu pelo não conhecimento do seu recurso.
Pois bem, como observou a Digna Procuradora-Adjunta (a fls. 561 a 562v), tem realmente esse senhor o interesse em agir para interpor o seu recurso, daí que a decisão, ora sob reclamação, do relator não pode ser mantida.
E agora quanto ao mérito do recurso desse senhor:
Ante os elementos coligidos dos autos já referidos na parte II do presente acórdão de recurso, como o assunto de difamação reportado por esse senhor à Polícia Judiciária aquando da sua inquirição no âmbito do presente processo penal na fase de inquérito já foi objecto da anterior participação criminal feita por ele à mesma Polícia, e não havendo notícia no presente processo de que tal assunto de difamação tenha sido objecto de apensação ao presente processo, é assim legal a não feitura, pelo Ministério Público, de notificação dele na qualidade de ofendido queixoso, do libelo acusatório deduzido no presente processo contra o arguido pela prática do crime de incumprimento de obrigações relativas a dados e do crime de desobediência qualificada.
E como aquele assunto de difamação já foi objecto da anterior participação criminal à Polícia Judiciária, o mesmo assunto iria ser objecto de investigação em sede respectiva própria, e não no seio do presente processo penal, instaurado na sequência do ofício do Gabinete para a Protecção de Dados Pessoais então dirigido à Polícia Judiciária e referido no ponto 1 da parte II do presente acórdão de recurso, daí que não é possível falar, processualmente, nos presentes autos, de alguma falta de inquérito (referida na alínea e) do art.o 106.o do CPP) sobre tal assunto de difamação, visto que o objecto do presente processo nunca foi constituído pelo dito assunto de difamação.
Improcede, pois, o recurso do senhor A, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
Por outra banda, o arguido B recorreu da decisão condenatória penal da Primeira Instância.
Entendeu ele que o Tribunal sentenciador errou notoriamente na apreciação da prova dos autos sobre os primeiros dois “factos provados”, os quais, na opinião dele próprio, não deveriam ter sido dados como provados.
Entretando, para o presente Tribunal de recurso, depois de vistos todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória da decisão penal final recorrida, não se mostra patente a violação, por parte do Tribunal recorrido, de quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal das provas, de quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou de quaisquer leges artis a observar no julgamento de factos, pelo que não pode ter ocorrido algum vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP. Aliás, o Tribunal recorrido já explicou, nos últimos três parágrafos da página 7 e nos dois primeiros parágrafos da página 8, ambas do texto da sentença recorrida (a fl. 406 a 406v), o processo da formação da sua livre convicção sobre os factos, tendo explicado, congruentemente, por quê é que considerou iógica a tese fáctica defendida pelo arguido.
Quanto à questão posta subsidiariamente no recurso do arguido, a resposta não pode deixar de ficar também a descontento dele.
É que como é a norma do n.o 1 do art.o 40.o da Lei n.o 8/2005 que dita que “Quem, depois de notificado para o efeito, não interromper, cessar ou bloquear o tratamento de dados pessoais é punido com a pena correspondente ao crime de desobediência qualificada”, o que equivale a dizer que é essa disposição legal que comina, no caso, a punição da desobediência qualificada, então já não é necessário que o funcionário representante do Gabinete para a Protecção de Dados Pessoais faça a correspondente cominação na notificação da ordem em questão.
Para constatar isto, basta ver as duas condições legais alternativas seguintes vertidas no n.o 1 do art.o 312.o do CP: “se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência (…); ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação”.
Há, assim, que naufragar o recurso do arguido, sem mais abordagem, por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso do senhor A e julgar improcedente também o recurso do arguido B.
Custas do recurso do senhor A a cargo deste, com duas UC de taxa de justiça.
Custas do recurso do arguido a cargo deste, com quatro UC de taxa de justiça.
Macau, 12 de Julho de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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