打印全文
Processo n.º 700/2017 Data do acórdão: 2018-7-19 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– acto sexual de relevo
– intenção libidinosa
– entrave importante da livre determinação sexual da vítima
– médico
– dentro da clínica
– abuso sexual de pessoa internada
– art.o 160.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal
– julgamento por tribunal colectivo
– art.o 12.o, n.o 1, alínea c), do Código de Processo Penal
– qualificação jurídico-penal dos factos
– coacção sexual
– art.o 158.o do Código Penal
– meio de violência
– uso da força física para vencer a resistência esperada da vítima
S U M Á R I O

1. Não se exige intenção libidinosa (isto é, intenção do agente de despertar ou satisfazer, em si ou em outrem, a excitação sexual) para a verificação de acto sexual de relevo.
2. A conduta do arguido recorrente, descrita na acusação pública, de ter acariciado, com a sua mão, os seios da ofendida tudo por cerca de dois a três minutos preenche cabalmente o conceito de acto sexual de relevo, porque é de entender que essa conduta acarreta entrave, de forma importante, da livre determinação sexual da vítima.
3. Estando em causa a prática pelo arguido, que é um médico, de acto sexual de relevo nos termos acima vistos, contra a ofendida na clínica dele, essa conduta do arguido é subsumível ao tipo legal de abuso sexual de pessoa internada do art.o 160.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal (CP).
4. Sendo o crime de abuso sexual de pessoa internada punível com pena de prisão superior a três anos, a causa penal em questão tem que ser submetida ao conhecimento e julgamento por um tribunal colectivo (por comando do art.o 12.o, n.o 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
5. Portanto, é de manter a decisão, recorrida, de determinação da redistribuição do processo penal em causa como sendo um processo de competência de tribunal colectivo, decisão essa que não fere o direito de defesa ou de contraditório por parte do arguido, já que ele, em sede própria do processo penal colectivo correspondente, poderá exercer o seu direito de defesa, dizendo o que entender quanto à qualificação jurídico-penal dos factos constitutivos do objecto probando.
6. E mesmo que não se entendesse que a conduta do arguido descrita na acusação preencheria o tipo legal de abuso sexual de pessoa internada, sempre se diria que essa conduta dele, se ficasse provada na futura audiência de julgamento, não deixaria de integrar a prática por ele, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de coacção sexual descrito na norma do art.o 158.o do CP.
7. Na verdade, o meio de violência, no contexto desse tipo legal de coacção sexual, deverá ser considerado apenas o uso da força física destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada, sendo, pois, decisiva em princípio a perspectiva da vítima, podendo a violência ocorrer em simultaneidade com o acto sexual.
8. No caso dos autos, o arguido foi acusado pelo Ministério Público de ter ele metido a sua mão direita, de modo súbito, sem consentimento da ofendida, para dentro da roupa superior da ofendida, acariciando o seio direito desta, por diversas vezes, e com força cada vez maior. Assim, essa circunstância fáctica acusada já basta para se considerar que o arguido chegou a usar força física (exercida pela sua mão direita) destinada a vencer a resistência esperada da ofendida.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 700/2017
(Recurso em processo penal)
Recorrente (arguido): B (B)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o despacho proferido pela M.ma Juíza titular do Processo Comum Singular n.o CR4-16-0551-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB) (que veio a gerar depois o Processo Comum Colectivo n.o CR4-17-0229-PCC, actualmente com o n.o CR5-17-0178-PCC) no início da audiência de julgamento, no sentido de determinar que a causa penal em questão fosse redistribuído como um processo a ser julgado em tribunal colectivo, na sequência da admissão do pedido, feito pelo Digno Procurador-Adjunto no início dessa audiência, de alteração, atenta a mesma factualidade descrita na acusação pública então deduzida, do tipo legal de crime imputado nessa acusação, de um crime de ofensa simples à integridade física do art.o 137.o, n.o 1, do Código Penal (CP) para um crime de abuso sexual de pessoa internada, p. e p. pelo art.o 160.o, n.o 1, alínea b), do CP, veio o arguido B recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a revogação do referido despacho de determinação da redistribuição do processo, tendo alegado (no seu essencial) o seguinte na sua motivação de fls. 2 a 17 do presente processado recursório correspondente:
– a alteração da qualificação jurídica da acusação em processo penal não está regulada expressamente no Código de Processo Penal (CPP), sendo entendimento dos tribunais de Macau que a esta problemática deve aplicar-se, por analogia, o disposto no n.o 1 do art.o 339.o do CPP, devendo o juiz comunicar a alteração ao arguido e conceder-lhe o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, sendo certo que quando a alteração implicar a aplicação de penalidade mais elevada, como sucede no caso, o tribunal tem sempre de observar o contraditório, sendo certo que até à data da motivação do recurso, não foi prescrita qualquer decisão judicial expressa nesse sentido;
– a conduta do arguido não preenche, de modo algum, o crime de abuso sexual de pessoa internada do art.o 160.o, n.o 1, alínea b), do CP, mesmo que todos os factos constantes da acusação viessem, porventura, a ser considerados plenamente provados;
– a alteração de qualificação jurídica decidida pelo Tribunal recorrido não acarretou qualquer implicação no quadro fáctico da acusação, o mesmo é dizer que os factos são exactamente os mesmos antes e depois da convolação do crime de ofensa simples à integridade física para o crime de abuso sexual de pessoa internada;
– pelo que tratando-se de dois crimes substancialmente diferentes na sua configuração típica objectiva e subjectiva, é difícil entender o sentido do despacho recorrido;
– não se entende como é que o Ministério Público adopta duas posições praticamente antagónicas quando manda arquivar o processo no que toca à aplicabilidade do art.o 158.o do CP, entendendo não existirem indícios da prática pelo arguido de qualquer acto sexual de relevo e imputando a este a prática do crime de ofensa simples à integridade física, para depois, já em sede de julgamento, requerer a convolação do crime de que o arguido vinha acusado para o crime de abuso sexual de pessoa internada cujo requisito é, precisamente, a prática de um acto com aquela carga sexual;
– o arguido não cometeu qualquer acto sexual de relevo nem tão pouco resulta do elenco fáctico constante da acusação que tivesse praticado qualquer facto dessa natureza;
– no caso em apreço não vem sequer mencionada na acusação qualquer facto ou qualquer menção da chamada intenção libidinosa relativamente à conduta do arguido, inexistindo assim qualquer conotação subjectivista traduzida na intenção do agente de despertar ou satisfazer em si ou em outrem, a excitação sexual, o que não é de todo estranho, se se atentar a que o recorrente, já com 80 anos de idade à data dos factos, é uma pessoa séria, honesta e que pautou a sua vida sempre de acordo com valores éticos e valores morais, o que leva a concluir que, no plano da conotação objectivista, não existem factos descritos na acusação que permitem concluir que o arguido praticou qualquer acto sexual de relevo;
– os factos constantes da acusação na parte em que refere que o arguido acariciou os seios da ofendida, muito embora falsos e que o recorrente refuta frontalmente, seriam apenas, caso fossem verdadeiros, actos de índole sexual que, embora em si significantes por impróprios, desonestos, de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravariam de forma importante a livre determinação sexual da vítima;
– acresce ainda que a questão de a ofendida se encontrar ou não internada é de capital importância de forma a configurar juridicamente o tipo de crime em causa porquanto a génese do art.o 160.o do CP configura precisamente uma situação de aproveitamento, por parte do agente, de uma determinada incapacidade de resistência por parte da pessoa ofendida que esteja, por qualquer razão, internada em qualquer dos estabelecimentos destinados a assistência ou tratamento previstos na referida norma legal;
– no caso, a ofendida não se encontrava internada na clínica do arguido, razão porque, também por esta razão, os factos transcritos na acusação não preenchem a tipicidade do crime de abuso sexual de pessoa internada;
– violou o despacho recorrido o art.o 339.o, n.o 1, do CPP e ainda o art.o 12.o, n.o 1, alínea c), do mesmo CPP.
Ao recurso, respondeu o Ministério Público a fls. 29 a 32 do presente processado, no sentido de manutenção do despacho judicial recorrido.
Subido em separado o recurso, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fls. 54 a 55v, no sentido de não provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos elementos constantes do presente processado recursório, sabe-se que o seguinte:
1. O Digno Delegado do Procurador, autor da acusação pública então deduzida contra o arguido ora recorrente para imputar a este a prática do crime de ofensa simples à integridade física, decidiu arquivar o processo de inquérito correspondente na parte respeitante ao crime de abuso sexual de pessoa internada, por entender não existirem indícios suficientes destes crime.
2. Nessa acusação, encontra-se descrita a seguinte factualidade, inclusivamente:
– o arguido abriu uma clínica médica privada, nela trabalhando só ele, sem apoio de pessoal enfermeiro;
– a ofendida, na noite do dia dos factos, dirigiu-se a essa clínica para pedir consulta médica;
– aproveitando-se dessa situação, o arguido chegou a acariciar, com a sua mão direita, metida de modo súbito, e sem consentimento da ofendida, para dentro da roupa superior da ofendida, primeiro o seio direito da ofendida (acariciando-o por diversas vezes, e com força cada vez maior) e, depois, também o seio esquerdo da ofendida, tudo por cerca de dois a três minutos (cfr. em especial os factos acusados sob os n.os 8, 9 e 13).
3. No início da audiência de julgamento do Processo Comum Singular n.o CR4-16-0551-PCS do TJB, resultante da distribuição inicial do processo de inquérito no âmbito do qual tinha sido deduzida a referida acusação pública, a M.ma Juíza titular do mesmo, apesar da oposição manifestada pela Defesa, deferiu a promoção feita pelo Digno Procurador-Adjunto, no sentido de convolar, ante a mesma factualidade descrita na acusação pública, a qualificação jurídico-penal, daí constante, do crime de ofensa simples à integridade física para o crime de abuso sexual de pessoa internada do art.o 160.o, n.o 1, alínea b), do CP, com determinação da redistribuição do processo para ser julgado em tribunal colectivo, por entender a mesma M.ma Juíza que vista a factualidade descrita na acusação não estaria excluída a possibilidade de essa factualidade preencher o tipo legal de abuso sexual de pessoa internada do art.o 160.o, n.o 1, alínea b), do CP (cfr. o teor do despacho ora recorrido, cujo teor se encontra certificado a fls. 41v a 42 do presente processado recursório).
4. Subsequentemente, o referido processo penal foi redistribuído como sendo Processo Comum Colectivo n.o CR4-17-0229-PCC (actualmente com o n.o CR5-17-0178-PCC, no TJB).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
É nesses parâmetros que vai ser decidida a presente lide recursória.
Desde já, é de afirmar que não se abraça como boa a tese sustentada pelo recorrente, de exigência de intenção libidinosa para a verificação de acto sexual de relevo, dado que se considera irrelevante o motivo da actuação do agente (traduzido na intenção do agente de despertar ou satisfazer, em si ou em outrem, a excitação sexual) (neste sentido, conforme o comentário feito por JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, nomeadamente nas páginas 447 a 448 do Tomo I do COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL, Coimbra Editora, 1999).
Outrossim, realiza o presente Tribunal de recurso que a conduta do recorrente (descrita na acusação pública) de ter acariciado, com a sua mão, os seios da ofendida tudo por cerca de dois a três minutos preenche cabalmente o conceito de acto sexual de relevo, porque é de entender que essa conduta acarreta entrave, de forma importante, da livre determinação sexual da vítima (apud o mesmo Tomo I da Obra citada, na sua página 449, segundo parágrafo).
Assim sendo, estando em causa a prática pelo arguido, que é um médico, de acto sexual de relevo nos termos acima vistos, contra a ofendida na clínica dele, essa conduta do arguido é subsumível ao tipo legal de abuso sexual de pessoa internada do art.o 160.o, n.o 1, alínea b), do CP (cfr. o entendimento já veiculado no acórdão deste TSI de 20 de Julho de 2017, no Processo n.o 1071/2015), daí que bem andou o Tribunal a quo ao deferir o pedido do Ministério Público de alteração do crime imputado ao recorrente para o de abuso sexual de pessoa internada.
Sendo o crime de abuso sexual de pessoa internada punível com pena de prisão superior a três anos, a causa penal em questão tem que ser submetida ao conhecimento e julgamento por um tribunal colectivo (por comando do art.o 12.o, n.o 1, alínea c), do CPP).
Portanto, é de manter a decisão, recorrida, de determinação da redistribuição do processo penal em causa como sendo um processo de competência de tribunal colectivo, decisão de redistribuição de processo essa que não fere o direito de defesa ou de contraditório por parte do arguido, já que ele, em sede própria do processo penal colectivo correspondente, poderá exercer o seu direito de defesa, dizendo o que entender quanto à qualificação jurídico-penal dos factos constitutivos do objecto probando.
E mesmo que não se entendesse que a conduta do arguido descrita na acusação pública preencheria o tipo legal de abuso sexual de pessoa internada, sempre se diria que essa conduta dele, se ficasse provada na futura audiência de julgamento, não deixaria de integrar a prática por ele, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de coacção sexual descrito na norma do art.o 158.o do CP, punível com prisão de dois a oito anos.
Na verdade, o meio de violência, no contexto desse tipo legal de coacção sexual, deverá ser considerado apenas o uso da força física destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada, sendo, pois, decisiva em princípio a perspectiva da vítima, podendo a violência ocorrer em simultaneidade com o acto sexual (cfr. o comentário feito por JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, ibidem, páginas 453 (último pagrágrafo) e 454 (primeiro parágrafo)).
No caso dos autos, o arguido foi acusado pelo Ministério Público de ter ele metido a sua mão direita, de modo súbito, sem consentimento da ofendida, para dentro da roupa superior da ofendida, acariciando o seio direito desta, por diversas vezes, e com força cada vez maior. Assim, essa circunstância fáctica acusada já basta para se considerar que o arguido chegou a usar força física (exercida pela sua mão direita) destinada a vencer a resistência esperada da ofendida.
Em suma, naufraga o recurso, sendo de manter a decisão de determinação da redistribuição do processo, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso, mantendo a decisão recorrida de determinação da redistribuição do processo.
Custas do recurso pelo arguido, com oito UC de taxa de justiça.
Macau, 19 de Julho de 2018.
_______________________
Chan Kuong Seng
(Relator) (com a declaração de que: ante a matéria de facto descrita na acusação pública, a ofendida não pode ser considerada como uma pessoa “internada” na clínica do arguido recorrente (neste sentido, cfr. o comentário feito por JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, ibidem, página 485, linhas 12 a 16, onde pode ler-se inclusivamente o seguinte: “Vítima só poderá ser a pessoa internada (qualquer que seja a sua idade ou o seu sexo) em um daqueles estabelecimentos, não, v. g., […] o frequentador da consulta de um hospital em regime ambulatório […]”); assim sendo, embora esteja em causa, no caso concreto dos autos, a prática de acto sexual de relevo, o crime imputado ao arguido recorrente já não pode ser o de abuso sexual de pessoa internada do art.o 160.o, n.o 1, alínea b), do CP).
_______________________
Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
_______________________ (Subscrevo apenas a decisão).
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)



Processo n.º 700/2017 Pág. 13/13