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Processo n.º 423/2015 Data do acórdão: 2018-7-26 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– arbitramento oficioso da indemnização
– art.o 74.o do Código de Processo Penal
– art.o 390.o, n.o 2, do Código de Processo Penal
– metade da alçada do tribunal recorrido
– inadmissibilidade do recurso
S U M Á R I O

1. Da letra do art.o 74.o do Código de Processo Penal (CPP), resulta que mesmo no caso da absolvição penal, pode haver ainda arbitramento oficioso da indemnização, com vista a arbitrar indemnização a favor do ofendido “segundo os critérios da lei civil”.
2. Daí que materialmente falando, a decisão oficiosa de arbitramento da indemnização não deixa de ser autónoma em relação à decidão penal.
3. O art.o 390.o, n.o 2, do CPP consagra uma regra sobre a recorribilidade da decisão tomada na sentença penal na parte “relativa à indemnização civil”, segundo a qual esta parte da decisão só é recorrível se ela for desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido.
4. No caso, estando a quantia indemnizatória arbitrada oficiosamente na decisão penal ora recorrida inferior à metade da alçada do tribunal recorrido, não é admissível o recurso nesta parte decisória materialmente civil.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 423/2015
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
– 1.o arguido A
– 2.o arguido B
– Advogado Sr. Dr. C
Não recorrente:
– 3.a arguida D





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 186 a 193v do Processo Comum Colectivo n.o CR3-14-0141-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB):
– o 1.o arguido A ficou condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de ofensa simples à integridade física, p. e p. pelo art.o 137.o, n.o 1, do Código Penal (CP), em noventa dias de multa, à quantia diária de cem patacas, no total, pois, de nove mil patacas de multa, convertível, no caso de não ser paga nem substituída por trabalho, em sessenta dias de prisão, com obrigação de pagar três mil patacas de indemnização cível, arbitrada oficiosamente, a favor do ofendido (2.o arguido) B, para reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais por este sofridos;
– o 2.o arguido B ficou condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de ofensa simples à integridade física, p. e p. pelo art.o 137.o, n.o 1, do CP, em noventa dias de multa, à quantia diária de cem patacas, no total, pois, de nove mil patacas de multa, convertível, no caso de não ser paga nem substituída por trabalho, em sessenta dias de prisão, com obrigação de pagar três mil patacas de indemnização cível, arbitrada oficiosamente, a favor do ofendido (1.o arguido) A, para reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais por este sofridos;
– o 1.o arguido A ficou absolvido da acusada prática de um crime de ofensa simples à integridade física contra a 3.a arguida D;
– e a 3.a arguida D ficou absolvida da acusada prática de um crime de ofensa simples à integridade física contra o 1.o arguido;
– foram fixados em mil e trezentas patacas os honorários do Advogado Sr. Dr. C pela defesa oficiosa do 2.o arguido;
– e foram fixados igualmente em mil e trezentas patacas os honorários do mesmo Advogado pela defesa oficiosa da 3.a arguida.
Inconformados, vieram recorrer desse acórdão os 1.o e 2.o arguidos para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
O 1.o arguido, na sua motivação apresentada a fls. 222 a 228 dos presentes autos correspondentes, assacou ao Tribunal sentenciador o cometimento de erro notório na apreciação da prova como vício previsto na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), com simultânea violação do princípio de in dubio pro reo, a fim de pedir a sua absolvição penal, alegando, no seu essencial, que:
– “empurrar” e “levantar soco” são actos muito diferentes;
– não há provas nos autos a comprovar cabalmente que ele (como 1.o arguido) tenha levantado soco para bater na cara do 2.o arguido;
– ao invés, do teor das imagens gravadas, não resulta que ele tenha praticado qualquer acto de agressão contra o 2.o arguido;
– a livre convicção do Tribunal recorrido excedeu, assim, manifestamente, os limites da própria livre convicção;
– deve ser ele absolvido do seu acusado crime de ofensa simples à integridade física do 2.o arguido.
Enquanto o 2.o arguido, na sua motivação apresentada a fls. 209 a 215 dos autos, imputou à decisão condenatória recorrida:
– o vício de contradição insanável da fundamentação referido na alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, porquanto o Tribunal sentenciador se esqueceu de que havia, para além das três “situações”, diferentes entre si, de factos faladas pelas testemunhas ouvidas na audiência de julgamento, uma outra “situação” (a quarta “situação”) deduzível do teor de alguns depoimentos das testemunhas ouvidas, qual seja, a de o próprio 2.o arguido querer bater no 1.o arguido, mas finalmente sem êxito por ter sido impedido por outrem, daí que o facto de o Tribunal recorrido não ter referido essa quarta “situação” na fundamentação probatória do seu acórdão, quarta “situação” essa que era mais provável do que as outras três “situações” referidas na mesma fundamentação probatória, faz inquinar a recorrida decisão da condenação do próprio 2.o arguido do vício de contradição insanável da fundamentação, pelo que deve ele ser absolvido do acusado crime consumado de ofensa simples à integridade física contra o 1.o arguido, por esse crime não poder ser punido a título de crime tentado, com consequente absolvição da quantia indemnizatória arbitrada oficiosamente a favor do 1.o arguido;
– e subsidiariamente falando, a violação do princípio de in dubio pro reo, por ante os depoimentos de algumas testemunhas ouvidas na audiência, haver realmente dúvida razoável se o próprio 2.o arguido tenha agredido efectivamente no 1.o arguido, devendo, pois, o próprio 2.o arguido ser absolvido de tudo, quer penal quer civilmente;
– e ainda subsidiariamente falando, a violação dos pressupostos de aplicação do art.o 74.o do CPP.
O Advogado Sr. Dr. C, que actuou no presente processo penal como Defensor Oficioso dos 2.o e 3.a arguidos, veio recorrer (mediante a motivação apresentada a fls. 217 a 218) da decisão, feita no mesmo acórdão final da Primeira Instância, de fixação de seus honorários, alegando que os honorários devidos por defesa oficiosa de cada um dos 2.o e 3.a arguidos devem ser não inferiores a duas mil e cem patacas, atenta a tabela de honorários anexa ao Despacho do Chefe do Executivo n.o 59/2013.
Ao recurso do 1.o arguido, a Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal recorrido respondeu (a fls. 231 a 233v) no sentido de improcedência da argumentação desse recorrente.
Ao recurso do 2.o arguido, a mesma Digna Delegada do Procurador respondeu (a fls. 236 a 239) no sentido de manutenção do julgado.
E sobre o recurso do Ex.mo Defensor Oficioso dos 2.o e 3.a arguidos, pronunciou-se a mesma Digna Delegada do Procurador (a fls. 234 a 235v) no sentido de provimento do recurso, com consequente revisão dos montantes de honorários oficiosos fixados no acórdão recorrido.
Subidos os autos, a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, emitiu parecer (a fls. 251 a 253v), pugnando pelo não provimento dos recursos dos 1.o e 2.o arguidos e pelo provimento do recurso do Ex.mo Defensor Oficioso dos 2.o e 3.a arguidos.
Feito o exame preliminar (em sede do qual chegou a ser determinada, por despacho de fl. 254, a notificação do 2.o arguido, na pessoa do seu Ex.mo Defensor, para se pronunciar sobre o eventual não conhecimento do recurso desse arguido na parte respeitante à decisão de arbitramento oficioso de indemnização cível, por o respectivo montante nem ultrapassar a metade da alçada do TJB em matéria civil (cfr. o art.o 390.o, n.o 2, do CPP), tendo o Ex.mo Defensor desse arguido respondido a fls 257 a 262, no sentido de dever o TSI conhecer de todos os fundamentos motivados no recurso ou conhecer oficiosamente da irregularidade do arbitramento oficioso de reperação) e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido encontrou-se proferido a fls. 186 a 193v, cujo teor (incluindo a sua fundamentação fáctica, probatória e jurídica) se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. O Advogado Sr. Dr. C foi nomeado (por despacho judicial de fl. 80) defensor oficioso dos 2.o e 3.a arguidos, para cuja defesa chegou a apresentar contestação una escrita de fl. 100 (a oferecer o merecimento dos autos e a arrolar todas as testemunhas da acusação como sendo testemunhas de defesa), a pedir (a fl. 118, com deferimento a fl. 119), para efeitos de preparação da defesa, a reprodução integral dos discos compactos remetidos ao Tribunal recorrido a título de apreendidos, e a assistir às duas sessões de audiência de julgamento, realizadas em dois dias diferentes, em defesa oficiosa desses dois arguidos, tendo durado a primeira das sessões por cerca de uma hora e trinta e sete minutos, e a segunda sessão por cerca de uma hora e trinta e um minutos (cfr. as respectivas actas lavradas a fls. 139 a 140v e a fls. 184 a 185v).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Cumpre decidir logo da questão suscitada no despacho do relator de fl. 254, relegada para final por despacho de fl. 264.
Da letra do art.o 74.o do CPP, resulta que mesmo no caso da absolvição penal, pode haver ainda arbitramento oficioso da indemnização, com vista a arbitrar indemnização a favor do ofendido “segundo os critérios da lei civil”.
Daí que materialmente falando, a decisão oficiosa de arbitramento da indemnização não deixa de ser autónoma em relação à decidão penal. Por isso, o art.o 390.o, n.o 2, do CPP consagra uma regra sobre a recorribilidade da decisão tomada na sentença penal na parte “relativa à indemnização civil”, segundo a qual esta parte da decisão só é recorrível se ela for desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido.
No caso, estando a quantia indemnizatória arbitrada oficiosamente na decisão penal ora recorrida inferior à metade da alçada do tribunal recorrido, não é realmente admissível o recurso do 2.o arguido nesta parte decisória materialmente civil.
Quanto à decisão penal proferida em primeira instância, o 2.o arguido começou por imputar à mesma o vício de contradição insanável da fundamentação previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea b), do CPP, e depois, também o vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 deste artigo, enquanto o 1.o arguido assacou ao mesmo acórdão o vício de erro notório na apreciação da prova.
Por uma questão de método, é de decidir para já do igualmente esgrimido erro notório na apreciação da prova alegadamente cometido pelo Tribunal recorrido.
Pois bem, para o presente Tribunal ad quem, depois de vistos todos os elementos de prova referidos na fundamentação probatória do acórdão recorrido, não se mostra que o Tribunal recorrido, aquando da formação da sua livre convicção sobre os factos, tenha violado, de modo patente, quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal das provas, ou ainda quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos, pelo que não pode ter o mesmo Tribunal sentenciador cometido o vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, nem violado o princípio de in dubio pro reo.
Aliás, esse Tribunal já explicou, minuciosa e congruentemente, nas páginas 6 (a partir da 13.a linha) a 10 (até ao 2.o parágrafo) do texto do seu acórdão (a fls. 188v a 190v), a sua livre apreciação feita sobre as provas produzidas, tendo sido escrito, aí, e em súmula, o teor das declarações dos três arguidos e dos depoimentos prestados por diversas testemunhas ouvidas na audiência de julgamento.
Sendo de salientar que o Tribunal recorrido já afirmou, logo nas 17.a a 18.a linhas da página 6 do acórdão (a fl. 188v), que o conteúdo do videograma visionado na audiência de julgamento, por respeitar apenas a alguma parte do decurso dos factos, não demonstra, manifestamente, todo o decurso dos factos, mas sim se limita a opor-se directamente ao 2.o arguido. Daí que há que decair a tese fáctica das coisas sustentada veementemente pelo 1.o arguido na sua motivação do recurso, com base no teor das imagens gravadas.
Outrossim, é certo que no penúltimo parágrafo da página 9 do texto do acórdão (a fl. 190), o Tribunal recorrido afirmou, em chinês, em sede de fundamentação probatória da decisão sobre a matéria de facto, o seguinte: “O que foi visto pelas testemunhas do presente processo divide-se em três situações, a primeira é não terem prestado atenção ou visto todo o decurso das coisas, a segunda é apenas terem visto o 1.o arguido a bater no 2.o arguido e depois terem deixado o local por motivo de confusão, etc., e a terceira é não terem prestado atenção ao começo das coisas e após terem ouvido confusão irem olhar ou irem para persuadir os agressores e apenas terem visto o 2.o arguido a bater no 1.o arguido”. Mas, esta divisão em três situações não passa de ser uma sintetização, feita pelo Tribunal recorrido, do teor dos depoimentos das testemunhas ouvidas na audiência de julgamento. Daí que mesmo que houvesse uma “quarta” situação a resultar do teor dos depoimentos das testemunhas ouvidas, isto não representaria uma contradição insanável da fundamentação na decisão proferida no acórdão recorrido. É que o que importa é que o Tribunal recorrido já afirmou na fundamentação probatória do seu acórdão que o próprio Tribunal já apreciou criticamente, e em global, todas as provas produzidas (tendo feito até, súmula, inclusivamente, dos depoimentos de diversas testemunhas ouvidas), e que o resultado do julgamento dos factos feito pelo mesmo Tribunal nos termos permitidos pelo art.o 114.o do CPP não se mostra patentemente desrazoável nos termos acima vistos. Assim, cai por terra a tese de existência de contradição insanável da fundamentação sustentada pelo 2.o arguido na sua motivação do recurso.
Em suma, naufragam os recursos dos 1.o e 2.o arguidos na parte penal, não sendo de admitir o recurso do 2.o arguido na parte respeitante à decisão de arbitramento oficioso.
Quanto ao recurso do Ex.mo Defensor Oficioso em matéria de honorários, este recurso passa a ser decidido como sendo uma questão do foro próprio da reforma do acórdão recorrido em matéria das custas.
Pois bem, tratando-se de um processo penal comum colectivo, e vistos os trabalhos feitos por esse Ex.mo Defensor em defesa oficiosa dos 2.o e 3.a arguidos, julga-se, por justo e legal, em passar a fixar os seus honorários de defesa de cada um desses dois arguidos em duas mil e quinhentas patacas, atento o estatuído sobretudo nos pontos 5.1 e 10 e a nota 6 da “Tabela de honorários no âmbito do apoio judiciário”, aprovada pelo Despacho do Chefe do Executivo n.o 59/2013, na redacção finalmente dada pelo Despacho do Chefeo do Executivo n.o 10/2014.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em:
– julgar não providos os recursos dos 1.o e 2.o arguidos interpostos da decisão penal condenatória tomada no acórdão final da Primeira Instância;
– não admitir o recurso do 2.o arguido sobre a decisão de arbitramento oficioso da indemnização nesse acórdão;
– e passar a fixar os honorários oficiosos do Ex.mo Advogado Dr. C em duas mil e quinhentas patacas por defesa oficiosa de cada um dos 2.o e 3.a arguida, a pagar pelos 2.o e 3.a arguidos, respectivamente.
Custas dos recursos na parte penal pelos respectivos 1.o e 2.o arguidos recorrentes, com duas UC de taxa de justiça para o 1.o arguido e três UC de taxa de justiça para o 2.o arguido.
Pagará o 2.o arguido ainda uma UC de taxa de justiça pela não admissão do seu recurso na parte respeitante ao arbitramento oficioso da indemnização.
Fixam em duas mil e oitocentas patacas os honorários do Ex.mo Defensor Oficioso do 2.o arguido, a cargo deste arguido, devidos por causa do recurso deste.
Macau, 26 de Julho de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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