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Processo n.º 493/2016 Data do acórdão: 2018-7-26 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– art.o 60.o do Código de Processo Penal
– admissibilidade do enxerto cível na acção penal
– tutela penal de conflitos também possivelmente civis
– crime de abuso de confiança
S U M Á R I O

1. O pedido cível enxertado na presente acção penal, apesar de ter a ver com um conflito civil travado entre o ofendido demandante, por um lado, e, por outro, o arguido demandado e uma loja de venda de veículos também demandada, não deixa de estar relacionado com um dos delitos penais então acusados ao arguido, qual seja, um crime de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado alegadamente praticado contra o ofendido, pelo que é admissível o enxerto desse pedido cível, nos termos do art.o 60.o do Código de Processo Penal.
2. E isto explica-se pelo facto de determinados conflitos civis se encontrarem também sancionados por lei penal, se preenchidos todos os requisitos previstos nas normas incriminatórias respectivamente aplicáveis, sendo exemplos desse fenómeno de tutela penal de conflitos também possivelmente civis os casos de burla, abuso de confiança e de indefelidade, previstos respectivamente nos art.os 211.o, 199.o e 217.o do Código Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 493/2016
(Recurso em processo penal)
Recorrente (demandante civil): A
Recorrido (demandado civil): B





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por despacho judicial proferido a fl. 326 do subjacente Processo Comum Colectivo n.o CR4-15-0407-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), decidiu-se em não admitir o pedido cível de indemnização deduzido pelo ofendido A contra o arguido B, acusado pelo Ministério Público pela prática, em autoria material, na forma consumada, e inclusivamente, de um crime de abuso de confiança do qual teria sido ofendido o próprio senhor A.
Inconformado, veio o demandante A recorrer desse despacho judicial para este Tribunal de Segunda Instância, tendo alegado, no essencial, e rogado o seguinte, na sua motivação de fls. 1 a 7 do presente processado recursório, emergente daquele processo penal:
– a alegada responsabilidade contratual (contrato de promessa celebrado entre o recorrente com a loja de venda de veículos “XX”) tem por objecto exigir responsabilidade meramente civil contra esta, por ter constituído com o arguido uma relação de comissão, um mandato com representação que confiou ao arguido a angariação e o tratamento de todas as formalidades da venda ou promessa de venda de automóveis em nome, por conta e no interesse da “XX”;
– tal pedido tem por fundamento legal o n.o 2 do art.o 62.o do Código de Processo Penal (CPP) que consagra que o pedido de indemnização civil pode ser deduzido contra pessoa com responsabilidade meramente civil e esta pode intervir voluntariamente no processo penal;
– violou assim o despacho recorrido sobretudo esta norma processual penal;
– por outro lado, o pedido subsidiário formulado na petição cível em causa tem por base factualidade não incompatível com a descrita na acusação pública;
– deve ser sempre admitido o pedido cível do recorrente.
Subido o recurso, afirmou a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista aberta a fl. 33, que o Ministério Público não tinha legitimidade para emitir parecer, por estar em causa matéria meramente de foro civil.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame do presente processado recursório, sabe-se o seguinte:
1. Na acusação n.o 3373/2015 então deduzida pelo Ministério Público contra o arguido B, acusação essa que gerou ulteriormente o Processo Comum Colectivo n.o CR4-15-0407-PCC do 4.o Juízo Criminal do TJB (processo esse subjacente à presente lide recursória), esse arguido ficou acusado da prática, em autoria material, na forma consumada, de três crimes de burla em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.os 211.o, n.os 1 e 4, alínea a), e 196.o, alínea b), do Código Penal (CP), e de dois crimes de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.os 199.o, n.os 1 e 4, alínea b), e 196.o, alínea b), do CP.
2. Da matéria de facto descrita nessa acusação (cujo teor se encontra certificado a fls. 12 a 16v do presente processado recursório), resulta que um dos ditos dois crimes de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado tinha por ofendido o senhor A (cfr. os factos acusados n.os 1 a 10, 37 e 39), o qual, segundo a lógica fáctica acusada, pagou o sinal de HKD200.000,00 ao arguido como representante de venda de uma loja de venda de veículos automóveis, para compra de um veículo automóvel, e o arguido, depois de ter recebido esse sinal, não o entregou ao responsável da gestão da mesma loja nem comunicou a transacção em causa a esse responsável, mas fez seu o mesmo sinal.
3. Depois de deduzida essa acusação contra o arguido, o ofendido A formulou pedido cível de indemnização contra o arguido e a loja de venda de veículos em causa no âmbito do processo penal em questão, para reclamar o dobro do sinal pago, na quantia global de HKD400.000,00, com juros legais, ou, mas subsidiariamente, o pagamento de HKD200.000,00, com juros legais.
4. Pedido cível esse (cujo teor se encontra certificado a fls. 17 a 26 do presente processado recursório) que acabou por não ser admitido pelo Tribunal a quem ficou distribuída a acusação pública para efeitos de julgamento (cfr. o despacho judicial a que alude a fl. 27 a 27v do presente processado recursório), com invocado fundamento em que como no pedido cível em causa tinha sido alegada uma responsabilidade civil contratual como fundamento do pedido, isto entraria em conflito com a relação jurídica configurada pela matéria fáctica descrita na acusação pública como susceptivel de constituir, antes, uma responsabilidade civil extracontratual.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
No caso dos autos, o Tribunal a quo autor do despacho ora recorrido decidiu em não admitir o enxerto cível de indemnização deduzido pelo ofendido A, por entender materialmente que o pedido de indemnização civil enxertado na acção penal só o poder ser se for fundado na prática de um crime nos termos do art.o 60.o do CPP.
Entretanto, para o presente Tribunal ad quem, na esteira do já veiculado juridicamente no acórdão de 3 de Maio de 2018 no Processo (recursório penal) n.o 484/204, o pedido cível enxertado na subjacente acção penal, apesar de ter a ver também com um conflito civil travado entre o ofendido demandante A, por um lado, e, por outro, o arguido demandado e a acima referida loja de venda de veículos, não deixa de estar relacionado com um dos delitos penais então acusados ao demandado (qual seja, um crime de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado alegadamente praticado contra o mesmo ofendido ora demandante civil), pelo que é admissível o enxerto do pedido cível desse demandante, nos termos do art.o 60.o do CPP. E isto explica-se pelo facto de determinados conflitos civis se encontrarem também sancionados por lei penal, se preenchidos todos os requisitos previstos nas normas incriminatórias respectivamente aplicáveis, sendo exemplos desse fenómeno de tutela penal de conflitos também possivelmente civis os casos de burla, abuso de confiança e de indefelidade, previstos respectivamente nos art.os 211.o, 199.o e 217.o do CP.
Procede, pois, o recurso, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso, passando a determinar a admissão do pedido cível do ofendido A no subjacente processo penal.
Sem custas.
Macau, 26 de Julho de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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