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 Despacho de sustentação ou reparação
Requer Sou Ka Hou que os autos baixem ao Tribunal de Segunda Instância para que seja proferido despacho de sustentação ou reparação, nos termos do n.º 2 do artigo 617.º do Código de Processo Civil.
É certo que aplicando a mera letra da lei aparentaria ter razão o recorrente, já que o n.º 1 do artigo 149.º do Código de Processo Administrativo Contencioso manda aplicar as normas do recurso para o Tribunal de Segunda Instância ao recurso jurisdicional comum e o n.º 2 do artigo 617.º do Código de Processo Civil prevê a prolação de tal despacho.
Porém, não é assim.
No Direito de Macau e português, sempre se entendeu que no recurso de agravo interposto na 2.ª instância não tinha lugar tal despacho1.
No Código de Processo Civil de Macau no recurso de decisões do Tribunal de Segunda Instância, manda-se aplicar várias normas do recurso de decisões de 1.ª instância, mas omite-se a aplicação do disposto no artigo 617.º (cf. os artigos 645.º e 648.º), o que significa claramente que nestes recursos não tem lugar a decisão de sustentação ou reparação. Porventura, o legislador entendeu que não seria curial determinar a aplicação do preceito em questão a um tribunal superior, que funciona colegialmente, já que das decisões do juiz singular destes tribunais não cabe recurso, como se sabe.
Manifestamente que o n.º 1 do artigo 149.º do Código de Processo Administrativo Contencioso tem de ser aplicado com cautelas, porventura aqui restritivamente, como aliás, sucede com outras normas do Código de Processo Civil relativas ao recurso de decisões do Tribunal de Segunda Instância, como as dos artigos 649.º e 650.º, que se aplicam, não obstante não estarem integradas nas normas dos recursos para o Tribunal de Segunda Instância2.
Assim, no recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância, regido pelo Código de Processo Administrativo Contencioso não se aplica o disposto no artigo 617.º do Código de Processo Civil, pela mesma ordem de razões que não se aplica em processo civil.
Pelo que se indefere o requerido.
Custas do incidente pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 2 UC.

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Da autoria das alegações subscritas pelo Presidente da Assembleia Legislativa
Tendo em conta que foi decidido nos autos que os actos praticados pelo Presidente da Assembleia Legislativa e pela Mesa não têm autonomia impugnatória relativamente à deliberação do Plenário que decidiu a suspensão de mandato de Deputado, considera-se que o Presidente da Assembleia Legislativa, quando afirma nas alegações de recurso jurisdicional, que o faz “na qualidade de representante da Entidade Requerida”, está-se a referir ao Plenário da Assembleia Legislativa.

Perda do direito de recorrer
Entende-se que o recorrente não tinha o ónus de reclamar para a conferência. Recorrendo indevidamente, incumbe ao juiz do processo, no caso, o relator, o dever de convolar o requerimento de interposição de recurso em reclamação para a conferência, dado que o erro na escolha do meio processual é de conhecimento oficioso, devendo o tribunal mandar seguir a forma de processo ou o meio processual adequados, como resulta do disposto no n.º 2 do artigo 595.º, no n.º 3 do artigo 394.º e n.º 1 do artigo 145.º, todos do Código de Processo Civil.
Improcede a questão suscitada.

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Inutilidade superveniente da lide
1. Relatório e factos pertinentes
Sou Ka Hou, Deputado à Assembleia Legislativa, interpôs recurso contencioso dos seguintes actos:
a) Da Deliberação do Plenário da AL nº 21/2017/Plenário, de 04/12/2017, que determinou a suspensão do mandato de Deputado do Recorrente, publicada no Boletim Oficial da RAEM nº 49, de 05/12/2017, com fundamento em ter sido deduzida acusação, em processo penal, contra o Deputado;
b) Da Deliberação da Mesa da AL nº 35/2017, de 22/11/2017, que determinou estar o Deputado Recorrente em conflito de interesses, com a consequente perda do direito de uso autónomo da palavra durante o debate e exercício do direito de voto do Deputado;
c) Da Decisão do Presidente da AL de 30/11/2017 de convocação do Plenário da AL, sem que tivesse sido proferido parecer (no sentido material e legal do termo) da Comissão de Regimento e Mandatos;
d) Da Decisão do Presidente da AL de 04/12/2017 de não conceder direito de defesa ao Deputado Recorrente (acto oral);
e) Da Decisão do Presidente da AL de 04/12/2017 determinando estar o Plenário da AL impossibilitado de limitar temporalmente o período de suspensão do mandato de Deputado do Recorrente (acto oral).
A petição inicial foi liminarmente indeferida pelo Exmo. Relator do Tribunal de Segunda Instância (TSI), a quem o processo foi distribuído por incompetência dos Tribunais de Macau para apreciar a causa.3
A Conferência do TSI indeferiu a reclamação apresentada pelo ora recorrente, por acórdão de 19 de Abril de 2018.
Sou Ka Hou interpôs recurso jurisdicional deste acórdão para o Tribunal de Última Instância (TUI).
Por comunicação do Presidente da Assembleia Legislativa, de 3 de Julho de 2018, aos Deputados, informou ter o Tribunal Judicial de Base comunicado à Assembleia que transitou em julgado a sentença proferida no processo penal em que este era arguido, bem como que o mesmo pagou a multa em que foi condenado.
A partir de 3 de Julho de 2018, o Deputado Sou Ka Hou voltou a exercer estas funções.
Resulta também dos autos que o mencionado Deputado continuou a receber o seu vencimento mensal durante o período em que esteve suspenso do exercício de funções.

2. Fundamentação
Uma das causas da extinção da instância é a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 84.º Código de Processo Administrativo Contencioso e da alínea e) do artigo 229.º do Código de Processo Civil.
Como explicam JOSÉ LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA e RUI PINTO4, a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide “dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio”.
De acordo com o disposto nos artigos 79.º, 80.º, 87.º e 88.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, há lugar à extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide quando o acto administrativo recorrido foi revogado com efeitos retroactivos, sem nova regulamentação da situação. Quando a revogação do acto não tenha efeitos retroactivos, o recurso prossegue tendo em vista a obtenção de decisão anulatória dos efeitos produzidos.
Não há que tomar posição aqui sobre a natureza do acto que suspendeu o mandato de Deputado. Mesmo não se tratando de acto administrativo, e não tendo ocorrido revogação, mas, ao que parece, caducidade do acto5, as normas mencionadas terão aplicação por analogia (n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil). Na verdade, se um acto impugnado judicialmente desaparece da Ordem Jurídica a lide torna-se inútil superveniente, se a extinção tem efeitos retroactivos. Se não tem estes efeitos, o recurso prossegue para serem anulados os efeitos produzidos medio tempore.
Como bem refere o recorrente na sua alegação, “Aqueles que, apesar de virem6 as leis serem violadas, ainda assim não tiverem os seus direitos afectados, não podem recorrer aos tribunais, pois os tribunais não são uma conferência académica onde se discutem ilegalidades fora de um contexto de danos e consequências jurídicas”.
Da mesma maneira se os direitos afectados tiverem deixado de o ser, não faz sentido a continuação da causa para os restaurar, sem prejuízo do ressarcimento do lesado, que não está em causa no processo.
Sendo certo que a caducidade não tem efeitos retroactivos, vejamos se existem efeitos da suspensão do mandato que perduraram. Como se disse, o recorrente continuou a receber o seu vencimento. Aqui não existiram efeitos negativos para o recorrente da suspensão do mandado de Deputado.
Alega o recorrente que há um efeito pessoal que o afecta: o direito previsto no n.º 3 do artigo 43.º do Estatuto dos Deputados (os Deputados que sejam membros de comissões têm direito a uma senha de presença, por cada reunião a que compareçam, de montante correspondente a 2,5% do seu vencimento mensal).
Afigura-se que o recorrente não teria direito a esta remuneração se o acto de suspensão fosse anulado ou declarado nulo, porque não é possível voltar ao passado. Não se sabe se o recorrente compareceria a reuniões de comissões entre 5 de Dezembro de 2017 e 3 de Julho de 2018 e, a ser o caso, a quantas compareceria.
Acresce que a apreciação da legalidade dos actos não constitui um fim em si mesmo. A vocação dos tribunais é, na área cível e administrativa, dirimirem litígios e não resolverem questões académicas, como, aliás, notou o recorrente na sua alegação.
Alega, ainda, o recorrente que, se ocorresse anulação do acto, teria havido violação do direito do recorrente na participação nas reuniões e debates em Plenário e nas Comissões.
Isso é certo. Mas como referi, o passado não pode ser refeito. E, a não ser a possibilidade de o recorrente ser ressarcido, o que nunca poderia ter lugar neste processo, não se vislumbra a relevância da anulação relativamente às violações em causa.
Por fim, segundo o recorrente, “a declaração de nulidade ou anulação do acto de suspensão teria efeitos retroactivos, o que implicaria a análise das consequências da retirada do direito de voto (nesse caso ilegitimamente negado) a um Deputado, competindo ao(s) órgão(s) competente(s) da Assembleia Legislativa apreciar(em) da relevância jurídica que tal terá relativamente a propostas e projectos de lei apresentados, discutidos e aprovados, alterados ou reprovados, pelo Plenário da AL”.
Decerto que caberia à Assembleia Legislativa apreciar tais questões, mas cabendo ao signatário, exclusivamente, ponderar se a causa perdeu utilidade, não pode pedir a outra entidade que conheça da questão.
No período em causa, nenhuma votação do Plenário da Assembleia dependeu do voto de um Deputado no período em causa, para a sua aprovação ou rejeição. Ou seja, ainda que o ora recorrente tivesse participado em todas as votações, nunca o seu voto teria alterado o sentido das votações.
Ora, diz-nos o princípio da prova da resistência, aplicável à votação de órgãos colegiais, que uma deliberação não é anulada, mesmo que tenha havido violação da lei traduzida no facto de participar na votação quem para tanto não possuía direito, “na hipótese em que, submetido à prova da resistência – ou seja, descontados os votos que foram atribuídos ao sujeito ou sujeitos admitidos indevidamente – não venha a faltar a maioria legal ou estatuariamente necessária para a sua aprovação”7, princípio este consagrado no nosso direito, por via do n.º 2 do artigo 164.º do Código Civil, segundo o qual as deliberações tomadas com voto de associado viciado não são anuláveis se o voto do associado impedido não for essencial à existência da maioria necessária.
Já a situação semelhante à dos autos – suposta a ilegalidade do acto, bem entendido - em que há indevida exclusão de pessoa no processo de votação ou falta de convocação de associado para a reunião, a maioria da doutrina e da jurisprudência inclina-se para a invalidade da deliberação, ainda que o voto em causa não alterasse o sentido da votação8. Estamos a falar do direito associativo e societário.
Só que, no caso dos autos, estão em causa a aprovação de leis, entradas em vigor, entretanto, que bulem com direitos de terceiros, pelo que entendemos que a solução teria de passar pela não anulação das deliberações em causa, em que poderia ter sido excluído, indevidamente, das votações um Deputado.
Estando em causa um evidente interesse público na conservação de deliberações que foram aprovadas, em muitos casos constituindo a aprovação de leis, parece que terá de se formar um juízo de proporcionalidade, que pressuponha uma ponderação de valores, entre o relevo do vício (eventual) e o relevo da conservação da deliberação em termos de tutela daquele interesse.
Ora, atendendo a que o voto do recorrente não teria sido decisivo em nenhuma deliberação tomada pela Assembleia Legislativa, no mencionado período, afigura-se-nos poder dizer que o eventual vício - a existir – teria de se considerar sanado.
Daí que, também, quanto a este aspecto, não se vislumbrem efeitos produzidos pela deliberação de suspensão do mandato de Deputado.
Ocorre, pois, inutilidade superveniente da lide.

3. Decisão
Face ao expendido, decreta-se a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
Sem custas.
Macau, 10 de Setembro de 2018.
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

     1 ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Volume VI, p. 225 e LEBRE DE FREITAS e RIBEIRO MENDES, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora Volume 3.º, 2003 p. 189.
     2 VIRIATO LIMA e ÁLVARO DANTAS, Código de Processo Administrativo Contencioso Anotado, Macau, CFJJ, 2015, p. 399.
     3 Face à posição tomada, parece que quadraria melhor ao vício detectado a falta de jurisdição dos tribunais de Macau, visto que o termo competência é geralmente utlizado para significar a fracção dos poderes de cada Tribunal em concreto, “a medida de jurisdição atribuída a cada tribunal” (CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, Lisboa, AAFDL, 1.º vol., p. 346 e ANTUNES VARELA e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1985, p. 196).
     4 JOSÉ LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA e RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1.º volume, p. 512.
     5 Sobre esta figura no domínio do negócio jurídico, CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, Lisboa, AAFDL, 1995, 2.º vol., p. 393, LUÍS CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, Universidade Católica Editora, 3.ªe dição, 2001, II Volume, p. 452 e INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Manual dos Contratos em Geral, Coimbra Editora, 4.ª edição, 2002, p. 381.
     6 Parece haver lapso de escrita, pois deveria querer dizer “verem” e não “virem”.
     7 VASCO DA GAMA LOBO XAVIER, Anulação de Deliberação Social e Deliberações Conexas, Almedina, Coimbra, p. 47, nota 20. Com desenvolvimentos, na mesma nota, p. 47 a 55 e p. 56, nota 21.
     8 VASCO DA GAMA LOBO XAVIER, Anulação…, local citado.
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Processo n.º 61/2018