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Processo n.º 75/2018. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: A.
Recorrida: Secretária para a Administração e Justiça.
Assunto: Suspensão da eficácia do acto administrativo. Grave lesão do interesse público. Ónus da prova. Notário privado. Desproporção dos prejuízos que a imediata execução do acto cause ao requerente relativamente aos prejuízos relativos à não execução imediata do acto.
Data da Sessão: 14 de Setembro de 2018.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – O ónus da alegação e da prova da existência do requisito da grave lesão do interesse público para a suspensão da eficácia do acto administrativo cabe à entidade requerida, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal.
II – A suspensão da eficácia do acto que pune notário privado com a pena de suspensão de funções durante dois anos, por desaparecimento acidental de documentos do cartório, não acarreta grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo mesmo acto.
III - Ainda que o tribunal não dê como verificado o requisito da grave lesão do interesse público, a suspensão de eficácia pode ser concedida quando, preenchidos os restantes requisitos, sejam desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto cause ao requerente, o que pode acontecer se se prefigura a perda irreversível de clientela de notário.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A (doravante também designado por ora recorrente) requereu a suspensão da eficácia do despacho da Secretária para a Administração e Justiça, de 5 de Junho de 2018, que lhe aplicou a pena disciplinar de suspensão por dois anos das funções de notário privado.
O Tribunal de Segunda Instância, (TSI) indeferiu o requerido, por Acórdão de 12 de Julho de 2018, por ter considerado que a suspensão da eficácia do acto acarretaria grave lesão do interesse público prosseguido pelo mesmo acto, além de que se não demonstram a existência de prejuízos para o exercício da advocacia, inviabilizando-se a prova da desproporção de prejuízos para o requerente relativamente à lesão do interesse público.
Inconformado, interpõe A recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), sustentando:
- Que a suspensão da eficácia do acto não acarretaria grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo mesmo acto;
- Ainda que assim não fosse, são desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto causa ao recorrente.
O Ex.mo Procurador-Adjunto emitiu parecer em que se pronuncia pela improcedência do recurso.

II – Os factos
Estão provados os seguintes factos:
  O despacho, cuja eficácia se requer suspender, tem o seguinte teor:
  DESPACHO
  Assunto: Procedimento Disciplinar n.º XXXXX/2018
  Arguido: A
  Conforme resulta do processado - Procedimento Disciplinar n.º XX/XX/2018, o arguido A, Notário Privado, melhor identificado nos autos, incorreu na violação dos deveres de dignificação do cartório notarial e de obediência às circulares e determinações genéricas emitidas pela DSAJ, previstos nos n.ºs 1 e 3 do artigo 8° e n° 2 do artigo 12° do Estatuto dos Notários Privados (doravante ENP), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/99/M, de 1 de Novembro, alterado e republicado pela Lei n.º 7/2016, mostrando-se também verificada a previsão da alínea c) do n° 1 do artigo 18° do mesmo complexo legal.
  Com efeito, incumbindo àquele a obrigação de assegurar a conservação dos instrumentos e suportes documentais de actos praticados no exercício das suas funções notariais e, bem assim, salvaguardar, acautelar e guardar os livros, documentos e ficheiros do cartório, verificou-se que estavam em falta 62 maços de documentos (estando um causa mais de mil documentos) respeitantes aos actos lavrados nos livros de notas para escrituras diversas n.ºs 78 a 140, correspondentes a instrumentos notariais realizados entre os anos de 2007 e 2010. (Destaque nosso)
  Tal verificação ocorreu no decurso de inspecção específica levada a efeito entre Novembro de 2017 e Fevereiro de 2018, no cartório notarial do arguido A.
  Este comportamento pode ser sancionado com a medida disciplinar de cassação de licença, por força do estatuído no artigo 18°, n° 1 do ENP.
  Verifica-se, no entanto, que militam a favor do arguido diversas circunstâncias atenuantes - num total de seis - que importa ponderar e que, nessa medida, possibilitam o recurso à imposição de sanção de menor dimensão, por via do recurso do instituto da atenuação especial expresso no artigo 316°, n.º 2 do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública (doravante ETAPM), aplicável ex vi do artigo 21° do ENP.
  Com efeito, mostram-se preenchidas as circunstâncias referidas nas alíneas a), b), c), f), g) e h) do artigo 282° do ETAPM, entendendo-se por isso ser adequado, proporcional e ponderado o recurso à sanção proposta pelo Exmo. Senhor Instrutor, a qual mereceu a concordância do Exmo. Senhor Director da DSAJ.
  Nestes termos, face ao exposto, e atendendo ao invocado no Relatório do Exmo. Senhor Instrutor e bem assim à fundamentação constante do parecer elaborado neste Gabinete, cujos conteúdos se dão por inteiramente reproduzidos, no uso das competências conferidas pelo disposto nos artigos 19° do ENP, 2°, n.º 1, alíneas 4) e 6) do Regulamento Administrativo n.º 6/1999 e 1 ° da Ordem Executiva n° 109/2014 decido aplicar ao arguido A, Notário Privado pelos factos em causa - a pena disciplinar de suspensão administrativa graduada em 2 (dois) anos, ao abrigo dos normativos combinados dos artigos 8°, n.ºs 1 e 3, 12°, n.º 2, 18°, n° 1 alínea c) do ENP e 316°, nºs 1 e 2 do ETAPM.
  À DSAJ para notificação do arguido, entregando cópias deste despacho, da informação / proposta da DSAJ - XX/XXXX/XXXX/2018 de 28 de Maio de 2018 - e do parecer deste Gabinete.
  No acto de notificação deve ser o arguido informado de que desta decisão pode, no prazo de 30 (trinta) dias interpor recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância - artigos 21° do ENP, 340°, 342° do ETAPM, 25°, n° 2 alínea a) do CPAC e 36°, n.º 8 alínea (2) da Lei n.º 9/1999, alterada em último pela Lei n.º 9/2009 (LBOJ).
  Gabinete da Secretária para a Administração e Justiça, aos 5 de Junho de 2018.
  A Secretária para a Administração e Justiça

III – O Direito
1. As questões a apreciar
O Acórdão recorrido entendeu que do processo não resultavam fortes indícios de ilegalidade do recurso contencioso [requisito da alínea c) do n.º 1 do artigo 121.º do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC)] e que se aplicava ao caso o disposto no artigo 121.º, n.º 3, do mesmo diploma, segundo o qual não é exigível a verificação do requisito previsto na alínea a) do n.º 1 (que a execução do acto cause previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso) para que seja concedida a suspensão de eficácia de acto com a natureza de sanção disciplinar.
A decisão quanto a estes fundamentos não foi impugnada por quem o poderia fazer, pelo que está adquirido no processo, tanto a verificação do requisito da alínea c) do n.º 1 do artigo 121.º do CPAC, como de que não é exigível a verificação do requisito previsto na alínea a) do n.º 1 do mesmo artigo.
Por conseguinte, as questões a apreciar são as suscitadas pelo ora recorrente:
- Se a suspensão da eficácia do acto não acarreta grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo mesmo acto;
- E, se assim não se entender, se são desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto causa ao ora recorrente.

3. Grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto administrativo
Seguindo, de muito perto, o nosso acórdão de 30 de Julho de 2014, no Processo n.º 66/2014, diremos:
Nos termos do artigo 121.º, n.º 1, do CPAC, o tribunal concede a providência cautelar de suspensão de eficácia de actos administrativos quando, além do mais que agora não importa, se verifique o seguinte requisito:
- A suspensão não determine grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto.
Nos termos do n.º 1 do artigo 129.º do CPAC, quando não haja contestação do órgão administrativo ou alegação de que a suspensão de eficácia do acto causa grave lesão do interesse público, o tribunal, excepto quando, perante as circunstâncias do caso, seja manifesta ou ostensiva essa grave lesão, considera verificado o requisito previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º.
Daí que se possa dizer que o requisito negativo de que a suspensão não determine grave lesão do interesse público funciona como facto impeditivo da pretensão do requerente, com o sentido que a doutrina processual lhe dá [artigo 407.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil], na medida em que o ónus da alegação e da prova da sua existência (grave lesão do interesse público) cabe à entidade requerida (artigo 335.º, n.º 2, do Código Civil), sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal (artigo 415.º do Código de Processo Civil) quando, perante as circunstâncias do caso, seja manifesta ou ostensiva essa grave lesão.
Como referem HANS J. WOLFF, OTTO BACHOF e ROLF STOBER1, no estado de direito a vinculação aos fins das funções da Administração Pública significa a salvaguarda e a promoção do interesse público ou do bem comum. Trata-se de um princípio estrutural, não escrito, de toda a forma de manifestação da Administração. Por isso, a actuação no interesse público faz parte dos elementos conceptuais e funcionais mais marcantes da Administração Pública e constitui o fundamento de toda a execução administrativa.
Mas com razão afirma MARIA FERNANDA MAÇÃS 2 que “não se pode argumentar que, prosseguindo o acto administrativo, pelo seu próprio conceito, um fim de interesse público, a sua não execução origine sempre dano para a concretização desse interesse público. É que no âmbito da suspensão da eficácia exige-se a verificação de «grave» lesão do interesse público e não a simples existência deste interesse que é pressuposto de toda a intervenção da Administração”.
Por outro lado, não é qualquer lesão de interesse público que obsta à suspensão da eficácia do acto, mas apenas aquele interesse público concretamente prosseguido pelo acto.
Vejamos, pois, qual o interesse público concretamente prosseguido pelo acto e seguidamente, se existe lesão de interesse público que obsta à suspensão da eficácia do acto.
O interesse público prosseguido pela punição disciplinar está, como ensina MARCELLO CAETANO, “na necessidade de assegurar a coesão e a prossecução dos interesses próprios de certo grupo social, seja comunidade, associação ou resultante da organização de um departamento ou serviço administrativo.
A razão por que se tem de reprimir a infracção encontra-se no interesse peculiar do grupo e o fundamento da sujeição ao poder punitivo está no laço particular que liga ao grupo o indivíduo que faltou a algum dos deveres que a sua especial condição lhe impunha”3.
Que há lesão do interesse público com a suspensão da execução é certo. Que essa lesão seja grave, não nos parece.
Diz-se no acórdão recorrido que no caso dos autos existe grave lesão do interesse público porque a suspensão da eficácia do acto “contende com a dignidade ou com o prestígio que o serviço deve manter perante o público em geral e, também contende com a fé pública e a feição legal dos actos jurídicos extrajudiciais, pondo-se em causa a fé pública do notariado e o prestígio desta função”.
Estas considerações do acórdão recorrido provam de mais, já que a punição foi apenas a suspensão de funções durante dois anos. Mesmo que o acto não venha a ser anulado, decorridos os dois anos de suspensão, o ora recorrente voltará tranquilamente a exercer as funções de notário privado, pelo que não se vislumbra como é que a mera suspensão temporária de funções põe em causa a fé pública do notariado e o prestígio desta função, já que o acto punitivo não consistiu na cassação da licença de notário.
Também não se pode dizer – como o faz o acórdão recorrido, citando o Exmo. Magistrado do Ministério Público - que a permanência do requerente em funções e o protelar da execução do acto punitivo seriam dificilmente compreensíveis, quer pelos profissionais ligados ao notariado, quer pela comunidade em geral e que a imagem e o prestígio da função notarial sairiam irrefragavelmente molestados.
Por um lado, não se demonstra que o acto punitivo seja do conhecimento do público. Por outro lado, relativamente ao conhecimento por parte dos profissionais do sector, certamente estes compreenderiam que o acto punitivo está a ser impugnado nos tribunais, pelo que é razoável que só seja executado quando for indiscutível que é legal, sobretudo porque não se detectam, no caso, razões prementes para a imediata execução do acto.
Em suma, a suspensão não determina grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto, o que tanto bastaria para a procedência deste recurso jurisdicional, com o decretamento da suspensão da eficácia do acto.

4. Falta de proporcionalidade entre os prejuízos para o recorrente da imediata execução do acto e o prejuízo para o interesse público resultante da não execução
Ainda que a suspensão da eficácia do acto que determinou a suspensão preventiva implicasse grave lesão para o interesse público concretamente prosseguido pelo acto, indicia-se serem desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto causa ao ora recorrente.
É provável que a suspensão de funções, que se pode prolongar por vários meses, se não anos, até haver decisão final transitada no recurso contencioso, possa levar a perda irreversível de clientela do recorrente, que, entretanto, é desviada para outros notários. Que não pode ser revertida ou que dificilmente o será na totalidade, ainda que o recorrente acabe por ver anulada a sanção disciplinar. Tal perda representa não só danos patrimoniais – teoricamente ressarcíveis – mas também danos não patrimoniais.
Acresce, ainda, a perda de réditos para o recorrente, que resultam da suspensão preventiva, que serão de reparação mais que duvidosa (acção contra a Administração?), ainda que acabe por lhe ser dada razão. Os notários privados não são remunerados enquanto tal, mas certamente que o são como advogados, a título de assessoria daquela actividade.
Ora, de acordo com o n.º 4 do artigo 121.º do CPAC, ainda que o tribunal não dê como verificado o requisito previsto na alínea b) do n.º 1, a suspensão de eficácia pode ser concedida quando, preenchidos os restantes requisitos, sejam desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto cause ao requerente.
O que se afigura ser o caso.
Procede, deste modo, o recurso.

III – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso e suspendem a eficácia do acto administrativo requerido.
Sem custas nas duas instâncias.
Macau, 14 de Setembro de 2018.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Mai Man Ieng



     1 HANS J. WOLFF, OTTO BACHOF e ROLF STOBER, Direito Administrativo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, tradução da 11.ª revista, vol. 1, 1999, p. 424.
     2 MARIA FERNANDA MAÇÃS, A Suspensão Judicial da Eficácia dos Actos Administrativos e a Garantia Constitucional da Tutela Judicial Efectiva, Coimbra Editora, 1996, p. 212.

     3 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, 9.ª edição, 1980, p. 801 e 802.
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