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Processo n.º 461/2015 Data do acórdão: 2018-7-26 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– detenção indevida de utensílio
– art.o 15.o da Lei n.o 17/2009
– objectos de uso comum na vida quotidiana
S U M Á R I O

Os papéis de estanho e a garrafa plástica com dois tubos plásticos nela inseridos em causa nos presentes autos, como são de uso comum na vida quotidiana, não podem ser considerados como utensílio especificadamente destinado ao consumo de droga, e como tal não podem suportar a condenação do recorrente em sede do tipo legal de detenção indevida de utensílio, daí que há que absolver o arguido deste crime p. e p. pelo art.º 15.º da Lei n.º 17/2009.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 461/2015
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 160 a 165 do Processo Comum Colectivo n.o CR3-14-0157-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), ficou o arguido A, aí já melhor identificado, condenado como autor material, na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupefaciente, p. e p. pelo art.o 14.o da Lei n.º 17/2009, de 10 de Agosto, em dois meses de prisão, e de um crime de detenção indevida de utensílio, p. e p. pelo art.º 15.º da mesma Lei, também em dois meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas parcelares, na pena única de três meses de prisão, suspensa na execução por um ano.
Inconformado, veio o arguido recorrer desse acórdão para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, no seu essencial, e rogando o seguinte (na sua motivação de recurso apresentada a fls. 170 a 186 dos presentes autos correspondentes):
– o Tribunal recorrido cometeu erro notório na apreciação da prova como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), com simultânea violação do princípio de in dubio pro reo, porquanto não havia provas nos autos a demonstrar que desde início até ao momento da descoberta do caso pela Polícia Judiciária, só o arguido recorrente é que usou os dois quartos de hotel em causa (ligados contiguamente entre si), pelo que os objectos encontrados com vestígios de consumo de droga nesses quartos poderiam pertencer a outrem e não ao recorrente, devendo o recorrente ser absolvido do crime de consumo ilícito de estupefaciente;
– e mesmo que assim não se entendesse, sempre o crime de detenção indevida de utensilagem deveria ser absolvido, por estar já absorvido pela punição do crime de consumo de estupefaciente, devido à existência de concurso aparente entre esses dois tipos legais de crime.
Ao recurso final do arguido respondeu a Digna Delegada do Procurador no sentido de manutenção do julgado (cfr. a resposta de fls. 188 a 191 dos autos).
Entrementes, chegou o recorrente a interpor dois recursos intercalares, respectivamente:
– do despacho exarado a fl. 103v pelo M.mo Juiz titular do presente processo penal em primeira instância, por força do qual foi indeferido o pedido do próprio arguido, formulado a fls. 100 a 102, de investigação sobre o registo de “check-in” do quarto n.o 1421 do hotel em causa nos autos (cfr. a motivação do recurso desse despacho, apresentado a fls. 108 a 115, na qual alegou o arguido, no seu essencial, que esse despacho violou materialmente o disposto nos art.os 111.o, n.o 1, e 321.o do CPP);
– e do indeferimento, ditado pela M.ma Juíza Presidente do Tribunal Colectivo recorrido, para a acta da audiência de julgamento de fls. 139 a 140v, das duas objecções manifestadas de modo consecutivo pelo seu Ex.mo Defensor nessa audiência a propósito do teor dos depoimentos aí prestados sucessivamente pelos dois investigadores da Polícia Judiciária na parte em que essas duas testemunhas de acusação depuseram no sentido de que aquando da feitura da investigação no local dos factos o arguido e uma outra senhora tinham confessado nomeadamente o consumo de droga (cfr. a motivação desse recurso intercalar apresentada a fls. 146 a 150, na qual alegou o arguido, no seu essencial, que a M.ma Juíza Presidente do Tribunal Colectivo recorrido violou o disposto nos art.os 337.o, n.os 6 e 7, e 112.o do CPP).
A esses dois recursos intercalares do arguido, respondeu a Digna Delegada do Procurador, respectivamente a fls. 120 a 122v e a fls. 155 a 157, no sentido de improcedência dos mesmos.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 199 a 202v), pronunciando-se no sentido de improcedência de todos os recursos do arguido.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
– consta a fls. 100 a 102 o pedido formulado pelo arguido para a investigação do registo de “check-in” do quarto n.o 1421 do hotel em causa no presente processo penal, pedido esse que ficou indeferido por despacho judicial exarado a fl. 103v (cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido);
– a acta da audiência de julgamento então realizada perante o Tribunal Colectivo recorrido ficou lavrada a fls. 139 a 140v, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido;
– o acórdão ora recorrido encontrou-se proferido a fls. 160 a 165, cujo teor (que inclui a respectiva fundamentação fáctica e jurídica) se dá por aqui inteiramente reproduzido;
– são papéis de estanho e uma garrafa plástica com dois tubos plásticos nela inseridos (cfr. sobretudo a fotografia colada na parte inferior da fl. 29, em anexo ao auto de busca e apreensão de fls. 24 a 25) que estão em causa na incriminação do arguido em sede do crime de detenção indevida de utensílio (cfr. o teor dos factos provados 2 e 5 descritos na fundamentação fáctica do acórdão recorrido), papéis de estanho, garrafa plástica e tubos plásticos esses que são de uso comum na vida quotidiana das pessoas.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
No seu recurso final, invocou o arguido que cometeu o Tribunal recorrido erro notório na apreciação da prova, com violação do princípio de in dubio pro reo.
E para decidir disso, é de decidir primeiro dos dois recursos intercalares então interpostos pelo mesmo arguido.
No seu primeiro recurso intercalar, o recorrente alegou que o M.mo Juiz titular do presente processo em primeira instância não devia ter indeferido o seu pedido de investigação sobre o registo de “check-in” do quarto n.o 1421 do hotel em causa nos autos, no período de 8 a 10 de Setembro de 2012.
Contudo, não pode proceder este recurso intercalar, porquanto é de louvar (nos termos permitidos pelo art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP) a fundamentação do despacho judicial recorrido de fls. 103v nos seus precisos termos, como decisão concreta desse recurso, não podendo, pois, esse despacho ter violado as normas processuais penais materialmente em mira na motivação do mesmo recurso.
E no restante recurso intercalar, o arguido invocou que não poderia o Tribunal Colectivo recorrido valorar os depoimentos dos dois polícias judiciários na parte em que tinham deposto nomeadamente que aquando da investigação no local dos factos o arguido e uma outra senhora tinham confessado o consumo de droga.
Sobre a questão de possibilidade legal de valoração deste tipo de depoimentos policiais, já se pronunciou o Venerando Tribunal de Última Instância no seu douto Acórdão de 8 de Junho de 2016 do Processo n.o 17/2016, no sentido de que: as afirmações de arguido aos agentes policiais aquando da detenção ou da reconstituição dos factos, admitindo a prática do crime, ou revelando o modus operandi ou o local onde escondeu objectos do crime ou o corpo da vítima, podem ser objecto de depoimento daqueles agentes policiais em audiência e valorados pelo Tribunal.
Daí que sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada, improcede também o recurso intercalar em questão.
É de voltar agora à análise do recurso final do arguido.
Pois bem, vistos todos os elementos de prova referidos na fundamentação probatória do acórdão recorrido, não se mostra ao presente Tribunal de recurso que o Tribunal recorrido, aquando da formação da sua livre convicção sobre os factos, tenha violado, de modo patente, quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal das provas, ou ainda quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos, pelo que não pode ter o mesmo Tribunal sentenciador cometido o vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, nem violado o princípio de in dubio pro reo. Aliás, esse Tribunal já explicou, minuciosa e congruentemente, nas páginas 5 e 6 do seu acórdão (a fl. 162 a 162v), a sua livre apreciação feita sobre as provas produzidas.
Pediu o arguido, subsidiariamente, no seu recurso final, a sua absolvição do imputado crime de detenção indevida de utensílio, alegando haver concurso aparente entre este crime e o crime de consumo ilícito de estupafaciente.
Para o presente Tribunal ad quem, os papéis de estanho e a garrafa plástica com dois tubos plásticos nela inseridos em causa nos presentes autos, como são de uso comum na vida quotidiana, não podem ser considerados como utensílio especificadamente destinado ao consumo de droga, e como tal não podem suportar a condenação do recorrente em sede do tipo legal de detenção indevida de utensílio, daí que há que absolver o arguido do crime de detenção indevida de utensílio, ainda que com fundamentação diversa da alegada pelo recorrente.
Em conclusão, naufragam os recursos intercalares do arguido, e procede apenas o pedido de absolvição do crime de detenção indevida de utensílio formulado também no recurso final interposto por ele do acórdão final da Primeira Instância, com o que fica mantida só a condenação dele, pela autoria material, na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupafaciente, p. e p. pelo art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, na pena, já aplicada nesse acórdão, de dois meses de prisão, com manutenção do juízo de valor já emitido pelo Tribunal recorrido, acerca da suspensão da execução dessa pena de prisão, sendo de tomar como necessário o prazo de um ano de suspensão da execução da mesma pena (visto que independentemente do demais, um ano já é o mínimo legal do possível período de suspensão da execução da pena – cfr. o art.o 48.o, n.o 5, do Código Penal).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não providos todos os recursos intercalares do arguido, e provido o recurso final do arguido apenas no pedido de absolvição do crime de detenção indevida de utensílio do art.o 15.o da Lei n.o 17/2009 (ainda que por fundamentação diversa da alegada pelo arguido), com o que passa o arguido a ser condenado somente pela autoria material, na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupefaciente do art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, na pena de dois meses de prisão, suspensa na execução por um ano.
Custas dos dois recursos intercalares pelo arguido, com duas UC de taxa de justiça para cada um desses recursos. E pagará o arguido metade das custas do seu recurso final, e duas UC de taxa de justiça em correspondência a esse decaimento parcial no recurso.
Macau, 26 de Julho de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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