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Processo n.º 539/2018 Data do acórdão: 2018-7-30 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– detenção indevida de utensílio
– art.o 15.o da Lei n.o 17/2009
– quantidade de referência de uso diário
– art.o 14.o, n.o 3, da Lei n.o 17/2009
– art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009
– Lei n.o 10/2016
S U M Á R I O

1. Como os “instrumentos” apreendidos ao 1.o arguido nos autos foram uma garrafa plástica de água com dois tubos de ingestão nela inseridos e papéis de estanho, objectos esses que são de uso corrente na vida quotidiana das pessoas, e como tal não devem relevar para a incriminação do tipo legal de detenção indevida de utensílio, deve esse arguido ser absolvido deste crime p. e p. pelo art.o 15.o da Lei n.o 17/2009.
2. Como depois de vistos em conjunto e de modo crítico todos os elementos de prova já referidos na fundamentação probatória do acórdão recorrido, não se vislumbra, ao tribunal de recurso, que seja patente que o tribunal recorrido, aquando da formação da sua livre convicção sobre os factos sob aval do art.o 114.o do Código de Processo Penal, tenha violado quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal das provas, ou quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos, não pôde o tribunal recorrido ter cometido o vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do mesmo Código.
3. Tendo entrado em vigor, à data dos factos em causa, a nova redacção dada à Lei n.o 17/2009 pela Lei n.o 10/2016, já não pode fazer mais questão o facto de não se ter especificado na factualidade descrita como provada no acórdão recorrido qual a quantidade concreta da metanfetamina detida pelos dois arguidos recorrentes em co-autoria material é que seria destinada por eles ao consumo próprio deles e qual a quantidade concreta da mesma substância é que seria destinada por eles à venda a outrem.
4. É que o n.o 3 do art.o 14.o da Lei n.o 17/2009 nessa redacção nova, prevê que são contabilizadas as substâncias que se destinem a consumo pessoal na sua totalidade, ou aquelas que, em parte, sejam para consumo pessoal e, em parte, se destinem a outros fins ilegais. Daí que como a quantidade líquida total de metanfetamina detida em co-autoria material pelos dois recorrentes excede o quíntuplo da quantidade de referência de uso diário da mesma substância, eles dois devem ser punidos nos termos do art.o 8.o, n.o 1, por força nomeadamente do n.o 2 do art.o 14.o da mesma Lei (tudo na dita redacção nova).
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 539/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
1.o arguido B (B)
2.a arguida C (C)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 547 a 557v do Processo Comum Colectivo n.° CR5-18-0007-PCC do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficaram nomeadamente condenados:
– o 1.o arguido B, como co-autor material de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016, de 28 de Dezembro), na pena de sete anos e seis meses de prisão, como autor material de um crime de consumo ilícito de estupefaciente, p. e p. pelo art.o 14.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009 (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016), na pena de quatro meses de prisão, e como autor material de um crime consumado de detenção indevida de utensílio, p. e p. pelo art.o 15.o da Lei n.o 17/2009 (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016), na pena de quatro meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas três penas, finalmente na pena única de sete anos e dez meses de prisão;
– a 2.a arguida C, como co-autora material de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009 (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016), na pena de sete anos de prisão, e como autora material de um crime de consumo ilícito de estupefaciente, p. e p. pelo art.o 14.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009 (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016), na pena de quatro meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas, finalmente na pena única de sete anos e dois meses de prisão.
Inconformados, vieram os 1.o e 2.a arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Alegou o 1.o arguido (no seu essencial) e rogou o seguinte na sua motivação de recurso apresentada a fls. 570 a 599 dos presentes autos correspondentes:
– o acórdão recorrido padeceu da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (como vício referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP)), porquanto na matéria de facto aí dada por provada, não se especificou qual a quantidade de estupefaciente referida no ponto 10-a da acusação pública (e dado por provado sob o ponto n.o 10-a na fundamentação fáctica do acórdão) é que o próprio 1.o arguido destinou ao fornecimento a terceiros, e qual a quantidade para o seu consumo próprio, o que impossibilitou a rigorosa subsunção dos factos provados no tipo legal do art.o 8.o, n.o 1, da Lei 17/2009 (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016), ou, antes, no tipo legal do art.o 11.o dessa Lei (na redacção dada por esta), pelo que por força do princípio de in dubio pro reo, o crime de tráfico do n.o 1 do art.o 8.o deveria ser convolado para o crime de tráfico de menor gravidade do art.o 11.o;
– houve, no acórdão recorrido, erro de aplicação da norma incriminadora do art.o 15.o da Lei n.o 17/2009, dado que os objectos apreendidos ao próprio 1.o arguido, que foram garrafa de água, tubos de ingestão e papéis de estanho, eram de uso corrente na vida das pessoas, pelo que deveria ser absolvido o crime dele de detenção indevida de utensílio;
– e, fosse como fosse, houve sempre excesso na medida da pena, devendo ele passar a ser condenado em penas mínimas dentro das molduras penais aplicáveis.
Enquanto invocou a 2.a arguida (no seu essencial) e pretendeu o seguinte na sua motivação de recurso apresentada a fls. 602 a 635 dos autos:
– cometeu o Tribunal recorrido erro notório na apreciação da prova como vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, porque dos autos não houve prova concreta nem objectiva para demonstrar a participação dela na actividade de tráfico de estupefacientes do 1.o arguido (nomeadamente porque o conteúdo dos telefonemas objecto de escuta telefónica aludido nas fls. 87 a 88 e 96 a 97 do apenso dos presentes autos penais, à falta, por exemplo, de realização de diligências de investigação por pessoal da Polícia Judiciária sobre a actividade de tráfico de droga aí noticiada, não daria, por si só, para se julgar como absolutamente certo que ela própria, após ter recebido telefonemas feitos pelo 1.o arguido, tenha efectivamente levado, a pedido deste, a droga ou instrumento de consumo de droga para local determinado, por um lado, e, por outro, o conteúdo de fls. 154 a 161 do mesmo apenso nem daria para provar qualquer intervenção dela na transacção de droga entre o 1.o arguido e o 3.o arguido), devendo, pois, ela ser absolvida do crime de tráfico do n.o 1 do art.o 8.o;
– o acórdão recorrido padeceu do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos homologamente alegados na motivação do 1.o arguido, devendo o crime de tráfico do n.o 1 do art.o 8.o da própria arguida ser, pelo menos, convolado para o crime de tráfico de menor gravidade do n.o 1 do art.o 11.o (devido à impossibilidade de comprovação de qual a quantidade concreta de droga é que ela destinou ao seu consumo próprio e qual a quantidade concreta de droga para fornecimento a outrem);
– e fosse como fosse, houve excesso na medida da pena no aresto recorrido.
Aos recursos respondeu a Digna Delegada do Procurador no sentido de improcedência dos mesmos (cfr. a resposta una de fls. 638 a 644).
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 655 a 658v), pugnando apenas pela absolvição do 1.o arguido do crime de detenção indevida de utensílio (por os objectos a ele apreendidos em questão não terem carácter específico ou duradoiro para o consumo de estupefaciente), com nova medida da pena a ser feita para esse arguido.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão recorrido consta de fls. 547 a 557v, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Os “instrumentos” então apreendidos (e referidos no facto provado 6 no acórdão recorrido, e identificados também no auto de busca e apreensão de fl. 126 a 126v, e fotografados a fl. 127 a 130) são uma garrafa plástica de água com dois tubos de ingestão nela inseridos e papéis de estanho. Dessas fotografias, vê-se que esses objectos são de uso comum na vida quotidiana das pessoas.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Desde já procede o pedido do 1.o arguido de absolvição do seu crime de detenção indevida de utensílio, uma vez que os “instrumentos” a ele apreendidos nos autos foram uma garrafa plástica de água com dois tubos de ingestão nela inseridos e papéis de estanho, objectos esses que são de uso corrente na vida quotidiana das pessoas, e como tal não devem relevar para a incriminação do tipo legal de detenção indevida de utensílio, devendo, pois, o 1.o arguido ser absolvido deste crime.
No tocante ao vício de erro notório na apreciação da prova esgrimido pela 2.a arguida:
Depois de vistos em conjunto e de modo crítico todos os elementos de prova já referidos na fundamentação probatória do acórdão recorrido, não se vislumbra, ao presente Tribunal de recurso, que seja patente que o Tribunal recorrido, aquando da formação da sua livre convicção sobre os factos sob aval do art.o 114.o do CPP, tenha violado quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal das provas, ou quaisquer leges artis a observar no julgamento dos factos, pelo que não pôde o Tribunal recorrido ter cometido o vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP. Aliás, esse Tribunal já explicou minuciosa e congruentemente, nas páginas 10 e seguintes do texto do seu acórdão, o processo da formação da sua livre convicção sobre os factos, não podendo, assim, a 2.a arguida vir fazer uma interpretação fragmentária das provas para suportar a sua tese fáctica das coisas.
Quanto ao vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, imputado pelos 1.o e 2.a arguidos à decisão condenatória do crime de tráfico de estupefaciente deles, é de improceder esta questão, porquanto:
– desde logo, do teor da fundamentação fáctica do acórdão recorrido, se vê, com nitidez, que todo o objecto probando do ora subjacente processo penal já ficou investigado pelo Tribunal recorrido, pelo que não se pode verificar o vício referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP;
– aliás, a argumentação concretamente tecida pelos dois arguidos recorrentes para sustentar a existência desse vício tem a ver propriamente com a questão de subsunção dos factos provados ao Direito, a ser abordada de modo seguinte:
– é certo que no facto provado 10-a se escreveu materialmente que as substâncias estupefacientes referidas no facto provado 10 (as quais incluíram 9,11 gramas líquidos e 0,253 grama líquido de metanfetamina) foram adquiridas pelo 1.o arguido a pessoa de identidade desconhecida, com o objectivo de serem consumidas em conjunto com a 2.a arguida e serem vendidas, em comparticipação com a 2.a arguida, a outrem dependendo de oportunidade;
– mas também não é menos certo que no facto provado 1 se escreveu que o 1.o arguido e a 2.a arguida chegaram ao acordo entre si e praticaram, com divisão de tarefas, os factos descritos nos pontos seguintes da fundamentação fáctica do acórdão, e que no facto provado 13 se escreveu que o 1.o arguido e a 2.a arguida detiveram a metanfetamina acima referida;
– assim sendo, estes dois arguidos são indubitavelmente co-autores materiais na detenção daquela quantidade líquida toda de metanfetamina, ainda não consumida efectivamente por eles;
– pois bem, à data dos factos dessa detenção, já entrou em vigor a redacção dada à Lei n.o 17/2009 pela Lei n.o 10/2016, pelo que já não pode fazer mais questão o facto de não se ter especificado na factualidade provada em primeira instância qual a quantidade concreta da metanfetamina detida pelos dois arguidos recorrentes em co-autoria material é que seria destinada por eles ao consumo próprio deles e qual a quantidade concreta da mesma substância é que seria destinada por eles à venda a outrem;
– é que a razão é muito simples: o n.o 3 do art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.o 10/2016, prevê que “[…] são contabilizadas as […] substâncias […] que se destinem a consumo pessoal na sua totalidade, ou aquelas que, em parte, sejam para consumo pessoal e, em parte, se destinem a outros fins ilegais”, daí que como a quantidade líquida total de metanfetamina detida em co-autoria material pelos 1.o e 2.a arguidos já excede o quíntuplo da quantidade de referência de uso diário da mesma substância, eles dois devem ser punidos de facto nos termos do art.o 8.o, n.o 1, por força nomeadamente do n.o 2 do art.o 14.o do mesmo diploma legal (tudo na dita redacção nova);
– com o que improcede a pretensão desses dois arguidos de convolação do crime do n.o 1 do art.o 8.o para o do n.o 1 do art.o 11.o da mesma Lei (na dita redacção nova).
Os dois arguidos recorrentes assacaram também à decisão recorrida o excesso na medida concreta da pena.
Entretanto, consideradas todas as circunstâncias já apuradas em primeira instância aos padrões da medida concreta da pena vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do Código Penal (CP), dentro da moldura penal aplicável, no caso, de cinco a quinze anos de prisão ao crime de tráfico (do n.o 1 do art.o 8.o, ex vi dos n.os 2 e 3 do art.o 14.o, todos da mesma Lei, na dita redacção nova) e da moldura penal aplicável, no caso, de três meses a um ano de prisão ao crime de consumo ilícito de estupefaciente (do n.o 1 do art.o 14.o da mesma Lei, na dita redacção nova), as penas parcelares já achadas no acórdão recorrido para estes dois crimes dos dois arguidos recorrentes já não podem admitir mais redução, e o mesmo se pode dizer em relação à pena única finalmente imposta aí à 2.a arguida recorrente, à luz do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP.
Resta aplicar nova pena única ao 1.o arguido na sequência da decidida absolvição dele do crime de detenção indevida de utensílio. Pois bem, em cúmulo jurídico das penas parcelares de prisão já aplicadas no acórdão recorrido para os seus crimes de tráfico ilícito de estupefaciente e de consumo ilícito de estupefaciente, é de impor-lhe finalmente a nova pena única de sete anos e oito meses de prisão, nos termos do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP.
Procede, pois, parcialmente o recurso do 1.o arguido e naufraga totalmente o recurso da 2.a arguida, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar parcialmente provido o recurso do 1.o arguido e não provido o recurso da 2.a arguida, passando, por conseguinte, a absolver o 1.o arguido do crime de detenção indevida de utensílio por que vinha condenado no acórdão recorrido, e a condenar o mesmo arguido na pena única de sete anos e oito meses de prisão, como resultante do cúmulo jurídico das penas concretas já impostas a ele no acórdão recorrido pela prática dos crimes de tráfico de estupefaciente e de consumo ilícito de estupefaciente.
Custas do recurso da 2.a arguida a cargo desta, com três UC de taxa de justiça e duas mil patacas de honorários ao seu Ex.mo Defensor Oficioso.
Pagará o 1.o arguido 2/3 das custas do seu recurso e duas UC de taxa de justiça por causa do decaimento parcial desse recurso. Fixam em duas mil patacas os honorários do seu Ex.mo Defensor Oficioso, sendo 2/3 dessa quantia por conta do 1.o arguido e o remanescente 1/3 suportado pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 30 de Julho de 2018.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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