打印全文
Processo n.º 660/2017 Data do acórdão: 2018-7-26 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– ofensa grave à integridade física por negligência grosseira
– abandono de sinistrado
– suspensão da execução da pena de prisão
– art.o 48.o, n.o 1, do Código Penal
– suspensão da execução da inibição de condução
– art.o 109.o, n.o 1, da Lei do Trânsito Rodoviário
S U M Á R I O

1. Atendendo a toda a factualidade provada em primeira instância, da qual ressaltam as graves lesões físicas sofridas pelo ofendido na sequência do embate provocado com culpa exclusiva do arguido, por um lado, e, por outro lado, à circunstância de o crime do arguido de ofensa grave à integridade física do ofendido ter sido cometido por negligência grosseira, com a agravante de que o arguido praticou inclusivamente o crime doloso de abandono de sinistrado, reclamando tudo isto conjugado naturalmente elevadas exigências da prevenção geral, não se afigura que a simples censura dos factos e a ameaça da execução da pena única de prisão do arguido consigam realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição sobretudo na vertente de prevenção geral, daí que não se lhe pode suspender a execução da pena única de prisão em sede do art.o 48.o, n.o 1, do Código Penal.
2. Só se coloca a hipótese de suspensão da execução da inibição de condução nos termos do art.o 109.o, n.o 1, da Lei do Trânsito Rodoviário, caso o arguido seja um motorista ou condutor profissional com rendimento dependente da condução de veículos.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 660/2017
(Recurso em processo penal)
Recorrente (arguido): B (B)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 422 a 432 do subjacente Processo Comum Colectivo n.o CR2-16-0085-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou condenado o arguido B, aí já melhor identificado, pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de ofensa grave à integridade física por negligência grosseira, p. e p. sobretudo pelo art.o 142.o, n.o 3, do Código Penal (CP), em conjugação com o art.o 93.o, n.os 2 e 3, alínea 5), da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), na pena de um ano e nove meses de prisão, com inibição de condução por um ano, de uma contravenção (traduzida no derespeito pela obrigação de paragem) p. e p. pelo art.o 99.o, n.o 1, da LTR, em três mil patacas de multa, e de um crime de abandono de sinistrado, p. e p. pelo art.o 88.o, n.o 1, da LTR, na pena de nove meses de prisão, com inibição de condução por seis meses, e, em cúmulo jurídico, na pena única de dois anos e três meses de prisão efectiva e na multa de três mil patacas, com inibição de condução por um período total de um ano e seis meses (contado a partir da soltura prisional).
Inconformado, veio o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), tendo alegado (no seu essencial) e peticionado o seguinte na sua motivação de fls. 449 a 452v dos presentes autos correspondentes:
– a decisão acima referida enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (porquanto o próprio recorrrente não agiu com dolo na conduta de abandono de sinistrado, já que ele, no momento dos factos, estava muito cansado mentalmente (por falta de descanso por mais de 24 horas, por causa do trabalho) e bebeu antes bebida alcoólica, pelo que ele saiu do local de ocorrência do acidente de viação dos autos só por causa do medo, inquietação e falta de capacidade de determinação, e não por qualquer intenção de abandonar o ofendido, pois ele deixou o veículo automóvel ainda no local, e chegou a apresentar-se voluntariamente à Polícia para confessar a sua responsabilidade e declarou que desejava pagar indemnização), devendo o crime doloso de abandono de sinistrado convolado para o crime negligente de abandono previsto no n.o 3 do art.o 88.o da LTR;
– a mesma decisão recorrida, ao não ter decidido pela suspensão da execução da pena, padece do vício de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova.
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal recorrido a fls. 466 a 468v no sentido de manutenção do julgado.
Subidos os autos, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fls. 480 a 481v, no sentido de não provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido encontrou-se proferido a fls. 422 a 432 dos autos, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Na contestação penal então apresentada pelo arguido (a fl. 226), ele, para além de arrolar a prova testemunhal, limitou-se a pedir ao Tribunal a consideração de todas as provas e circunstâncias a ele favoráveis com vista a uma decisão judicial justa.
3. Da fundamentação fáctica desse acórdão, resulta que o Tribunal sentenciador já julgou como provada toda a factualidade descrita no libelo acusatório.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
É nesses parâmetros que vai ser decidida a presente lide recursória.
O arguido pretende que passa a ser condenado pela prática de um crime negligente de abandono de sinistrado, em vez do crime doloso de abandono de sinistrado, e roga também, seja como for, a suspensão da execução da pena.
Para sustentar o seu pedido de convolação do crime doloso de abandono para o crime negligente de abandono, imputou o recorrente à decisão condenatória desse crime doloso o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Sucede que no caso dos autos, todo o objecto probando, à falta de alegação concreta de outros factos na contestação penal para defesa do arguido, já se encontrou delimitado pela factualidade descrita no libelo acusatório, e como o Tribunal recorrido já deu por provada toda essa factualidade então acusada ao arguido, esse Tribunal não pode ter cometido alguma omissão no apuramento do objecto probando do processo, daí que não pode ter havido, no caso, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP).
Sendo de frisar que a matéria de facto já dada por provada na parte respeitante ao crime de abandono de sinistrado é suficiente para suportar a verificação desse crime, praticado indubitavelmente na forma dolosa, e não negligente.
Improcede, pois, desde já, a primeira parte do recurso.
E agora quanto à pretensão da suspensão da execução da pena (de prisão e de inibição de condução):
A propósito da decisão de não suspensão da pena tomada pelo Tribunal recorrido, o arguido alega que essa decisão padece da contradição insanável da fundamentação e do erro notório na apreciação da prova.
Entretanto, ao invocar o vício de erro notório na apreciação da prova, o arguido não chegou a especificar em quê termos é que errou o Tribunal recorrido na apreciação da prova aquando da tomada de decisão de não suspensão da pena, pelo que não passa esse vício de alegação meramente abstracta, sem qualquer relevância para efeitos de delimitação do objecto do recurso.
E no tangente à alegada existência da contradição insanável da fundamentação, não se afigura que a decisão de não suspensão da pena tenha fundamentação contraditória.
Ao invés, o que acontece nos autos nesta parte é a discordância do recorrente da decisão de não suspensão da pena, alegando ele na motivação do recurso que não poderia ficar na prisão nem ficar efectivamente interditado de conduzir veículo automóvel.
Pois bem, atendendo a toda a factualidade provada em primeira instância, da qual ressaltam as graves lesões físicas sofridas pelo ofendido na sequência do embate provocado com culpa exclusiva do arguido, por um lado, e, por outro lado, à circunstância de o crime do arguido de ofensa grave à integridade física do ofendido ter sido cometido por negligência grosseira, com a agravante de que o arguido praticou inclusivamente o crime doloso de abandono de sinistrado, reclamando tudo isto conjugado naturalmente elevadas exigências da prevenção geral, não se afigura que a simples censura dos factos e a ameaça da execução da pena única de prisão do arguido consigam realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição sobretudo na vertente de prevenção geral, daí que não se lhe pode suspender a execução da pena única de prisão em sede do art.o 48.o, n.o 1, do CP.
Por fim, quanto à pretendida suspensão da inibição de condução:
Nos termos do art.o 109.o, n.o 1, da LTR, a execução da pena de inibição de condução pode ser suspensa, quando existirem motivos atendíveis. No caso dos autos, da matéria de facto provada em primeira instância não resulta que o recorrente trabalhe como motorista de profissão, pelo que fica a priori afastada a hipótese de suspensão da execução da pena de inibição de condução, sob pena de contrariar o rumo jurisprudencial seguido no TSI segundo o qual só se coloca a hipótese de suspensão caso o arguido seja um motorista ou condutor profissional com rendimento dependente da condução de veículos (nesse sentido, cfr., de entre outros, os acórdãos do TSI, de 17 de Julho de 2008, no Processo n.o 424/2008, e de 26 de Julho de 2012 no Processo n.o 707/2011).
Em suma, naufraga o recurso in totum.
Entretanto, é mister proceder oficiosamente à nova qualificação jurídico-penal dos factos provados em primeira instância, porquanto tida em conta a factualidade já descrita como provada no acórdão recorrido, é de condenar o arguido pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de mais um crime (em concurso real efectivo com um crime de ofensa grave à integridade física por negligência grosseira e um crime de abandono de sinistrado por que já ali vinha condenado), qual seja, o de fuga à responsabilidade, p. e p. pelo art.o 89.o da LTR, na pena de cinco meses de prisão (por não ser de escolher a pena de multa, dadas as necessidades de prevenção geral desse delito – cfr. o critério material na decisão sobre a espécie da pena, vertido no art.o 64.o do CP), pena esta graduada aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2 do CP, e não substituída por igual tempo de multa (devido à necessidade de prevenir o arguido da prática de novo crime – cfr. o critério material para a substituição da pena de prisão por multa, plasmado no art.o 44.o, n.o 1, do CP), com inibição de condução por cinco meses (imposta nos termos do art.o 94.o, alínea 2), da LTR).
Assim, em cúmulo jurídico desta pena parcelar de prisão com as duas penas de prisão parcelares já aplicadas na decisão recorrida (por um crime de ofensa grave à integridade física por negligência grosseira e um crime de abandono de sinistrado), é de condenar o arguido, nos termos ponderados do 71.o, n.os 1 e 2, do CP, na pena única de dois anos e cinco meses de prisão efectiva (para além da inibição de condução por um período total de um ano e onze meses – cfr. o art.o 71.o, n.o 4, do CP), sendo certo que essa nova pena única de dois anos e cinco meses de prisão e o novo período total de inibição de condução de um ano e onze meses têm que ficar, por efeito do princípio da proibição de reforma para pior (plasmado no art.o 399.o, n.o 1, do CPP), reduzidos a dois anos e três meses de prisão única efectiva e ao período total de um ano e seis meses de inibição de condução já aplicados no acórdão recorrido, de maneira que o arguido só tem que cumprir, na mesma, a pena única de dois anos e três meses de prisão efectiva e pagar a multa de três mil patacas, com inibição de condução por um período total de um ano e seis meses (contado a partir da soltura prisional).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso, mas com alteração oficiosa da qualificação jurídico-penal dos factos provados em primeira instância nos termos acima especificados.
Custas do recurso pelo arguido, com quatro UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão ao ofendido.
Macau, 26 de Julho de 2018.
_______________________
Chan Kuong Seng (com a declaração de que não seria de proceder à nova qualificação
(Relator) jurídico-penal dos factos provados, por o arguido se ter limitado a
impugnar, nos termos permitidos pelo art.o 393.o, n.o 1 e n.o 2, alínea b),
do CPP, a sua condenação no crime doloso de abandono de sinistrado
e o Ministério Público não ter interposto recurso para questionar a
qualificação jurídico-penal dos factos feita no acórdão recorrido)
_______________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_______________________
Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



Processo n.º 660/2017 Pág. 1/11