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Processo n.º 66/2018. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: Chefe do Executivo.
Recorridas: Grupo de Construção Top, Limitada e Top Builders Internacional, Limitada, Companhia de Construção de Obras Portuárias Zhen Hwa Limitada e Companhia de Construção & Engenharia Shing Lung, Limitada.
Assunto: Contrato de empreitada de obras públicas. Concurso. Adjudicação. Conluio. Falseamento de concorrência. Artigos 5.º e 96.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M, de 8-11.
Data da Sessão: 19 de Outubro de 2018.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I - O dono da obra exerce um poder discricionário de adjudicar ou de não adjudicar quando se esteja perante uma das situações previstas no artigo 96.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M, de 8-11.
II - O n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M impõe a rejeição das propostas e candidaturas apresentadas como consequência da prática de actos ou acordos susceptíveis de falsear as condições normais de concorrência.
III - A alínea f) do artigo 96.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M concede ao dono da obra o direito de não adjudicar a empreitada (ou de adjudicar, consoante entenda melhor servir o interesse público) quando haja forte presunção de conluio entre os concorrentes, nomeadamente nos termos do n.º 1 do artigo 5.º.
IV - No n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M abrangem-se todos os actos ou acordos susceptíveis de falsear as condições normais de concorrência.
A alínea f) do artigo 96.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M só abrange uma parte desses acordos, aqueles em que haja conluio entre os concorrentes.
V - No n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M a rejeição das propostas e candidaturas exige prova da prática de actos ou acordos susceptíveis de falsear as condições normais de concorrência.
A alínea f) do artigo 96.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M basta-se com uma forte presunção de conluio entre os concorrentes, mas não exige uma prova cabal desse conluio.
  O Relator,
  Viriato Manuel Pinheiro de Lima
  
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
Grupo de Construção Top, Limitada e Top Builders Internacional, Limitada interpuseram recurso contencioso de anulação do despacho de 29 de Novembro de 2016, do Chefe do Executivo, que adjudicou a empreitada de construção de habitação social de Mong Há – Fase 2 e de reconstrução do Pavilhão Desportivo de Mong Há, ao Consórcio formado pela Companhia de Construção de Obras Portuárias Zhen Hwa, Limitada e Companhia de Construção & Engenharia Shing Lung, Limitada.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por acórdão de 14 de Junho de 2018, concedeu provimento ao recurso contencioso e anulou o acto recorrido.
Inconformado, interpõe o Chefe do Executivo recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), finalizando a sua alegação com as seguintes conclusões:
A) O Acórdão ora recorrido sustenta a decisão de anular o acto de adjudicação na alínea f) do artigo 96.º do Decreto-lei 74/99/M, de 8-11, aplicável por força violação do artigo 5.º do mesmo diploma legal;
B) O artigo 96.º do referido diploma legal não impõe uma conduta, apenas se limitando a atribuir o direito de não adjudicação;
C) Não impondo uma conduta e limitando-se apenas a permitir que tal conduta seja admissível à face da lei, não deve ser anulado o acto de adjudicação de uma empreitada ainda que tenha havido violação do princípio a que se refere o artigo 5.º do mesmo diploma legal.
D) Pelo que, em nossa opinião, o Douto Tribunal de Segunda Instância incorreu em erro quando sustentou a sua decisão nos artigos 5.º e 96.º do Decreto-lei 74/99/M.
As ora recorridas Grupo de Construção Top, Limitada e Top Builders Internacional, Limitada requereram a ampliação do âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º do Código de Processo Civil, impugnando a improcedência do 2.º fundamento de recurso contencioso (violação dos artigos 55.º, n.º 1, alínea f) e 94.º, n. os 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 74/99/M, de 8-11).
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

II – Os factos
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
- Em 17AGO2016, foi publicado no B. O. o anúncio do concurso público para a empreitada de construção de habitação social de Mong Há – Fase 2 e de Reconstrução do Pavilhão Desportivo de Mong Há;
- Cinco concorrentes foram admitidos no concurso, entre os quais se encontrava o ora recorrente1;
- O concorrente nº 1 é um consórcio formado por Companhia de Construção Cheong Kong Limitada e Long Cheong – Construções e Engenharia, Limitada;
- O concorrente nº 2 é um consórcio formado por Companhia de Construção de Obras Portuárias Zhen Hwa, Limitada e Companhia de Construção e Engenharia Shing Lung, Limitada;
- A Long Cheong – Construções e Engenharia, Limitada, integrante do consórcio nº 1, tem como sócio e único administrador A;
- A Companhia de Construção e Engenharia Shing Lung, Limitada, integrante do consórcio nº 2, tem como sócios e administradores A e o seu cônjuge B;
- A proposta apresentada pelo consórcio formado por Companhia de Construção de Obras Portuárias Zhen Hwa, Limitada e Companhia de Construção e Engenharia Shing Lung, Limitada é assinado por A, enquanto administrador representante da Companhia de Construção e Engenharia Shing Lung, Limitada;
- A proposta apresentada pelo consórcio por Companhia de Construção Cheong Kong Limitada e Long Cheong – Construções e Engenharia, Limitada é assinado por A, enquanto administrador representante da Long Cheong – Construções e Engenharia, Limitada;
- De acordo com o relatório de análise de propostas, o consórcio formado por Companhia de Construção de Obras Portuárias Zhen Hwa, Limitada e Companhia de Construção e Engenharia Shing Lung, Limitada, o consórcio formado por Companhia de Construção Cheong Kong Limitada e Long Cheong – Construções e Engenharia, Limitada e o ora recorrente2 foram, respectivamente, classificados em 1º, 3º e 4º lugar; e
- Por despacho do Senhor Chefe do Executivo proferido em 29NOV2016, a empreitada foi adjudicada ao 1º classificado ou seja, o consórcio formado por Companhia de Construção de Obras Portuárias Zhen Hwa, Limitada e Companhia de Construção & Engenharia Shing Lung, Limitada;
Este é o acto recorrido.

III – O Direito
1. Questões a apreciar
i) No acórdão recorrido decidiu-se que a circunstância de duas das empresas integrantes de dois dos consórcios (cada um formado por duas empresas) concorrentes à empreitada em causa (em que foram apresentadas seis propostas), terem como sócio e administrador a mesma pessoa, A, (numa das empresas sendo o único administrador, na outra com dois administradores, o mesmo A e o seu cônjuge), que, aliás, assinou as duas propostas dos dois consórcios, falseava as condições normais de concorrência, o que impunha a rejeição das duas propostas.
ii) Recorde-se que os dois consórcios em causa foram classificados em 1.º e 3.º lugares, com a adjudicação ao 1.º classificado.
iii) Concluiu o acórdão recorrido que deveriam ter sido excluídas as propostas destes dois consórcios.
O Chefe do Executivo, no presente recurso jurisdicional, decidiu não impugnar o entendimento mencionado em i) (artigo 18.º da alegação de recurso). Limita-se a pretender que este Tribunal conheça da questão de saber se, face ao artigo 96.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M, que o acórdão recorrido invocou como tendo sido violado pelo acto recorrido, o dono da obra tem de excluir as propostas em que haja conluio dos concorrentes [alínea f)] ou se tem o direito discricionário de adjudicar ou de não adjudicar.
Esta questão não foi expressamente conhecida pelo acórdão recorrido, que considerou que a mera existência de violação do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M impunha a rejeição das propostas, se bem que tenha indicado como também sido violada a alínea f) do artigo 96.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M.
É esta a questão a apreciar e caso seja procedente o recurso, haverá que conhecer da questão suscitada na alegação das recorridas, a título subsidiário.

2. Os poderes do dono da obra conferidos pelo artigo 96.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M
O Decreto-Lei n.º 74/99/M rege o regime jurídico do contrato de empreitada de obras públicas.
Integrado no Título I do referido diploma legal, que tem como denominação, Disposições fundamentais, dispõe o artigo 5.º:
 Artigo 5.º
 (Concorrência)
 1. São proibidos todos os actos ou acordos susceptíveis de falsear as condições normais de concorrência, devendo ser rejeitadas as propostas e candidaturas apresentadas como sua consequência.
 2. Se de um acto ou acordo lesivos da concorrência tiver resultado a adjudicação de uma empreitada, deve ser suspensa a sua execução, seguindo-se o procedimento previsto no artigo 209.º, salvo se a autoridade competente decidir fundamentadamente de outro modo.
 3. A ocorrência de qualquer dos factos previstos no n.º 1 deve ser comunicada pelo dono da obra à entidade que, no Território, comprova a inscrição no registo oficial dos empreiteiros e, quando se trate de concorrente com sede ou sucursal fora de Macau, à sua congénere do país ou território onde se encontra estabelecido, para os devidos efeitos.
 
Por sua vez, no Título III, designado Da formação do contrato, consta a Secção VIII do Capítulo II (Do concurso público), que se refere à Adjudicação. O artigo 94.º é consagrado aos critérios de adjudicação.
Nesta mesma Secção estatui o artigo 96.º:
 Artigo 96.º
 (Não adjudicação)
 O dono da obra tem o direito de não adjudicar a empreitada:
 a) Quando resolva adiar a execução da obra por prazo superior a um ano;
 b) Quando todas as propostas, ou a mais conveniente, ofereçam preço total consideravelmente superior ao valor para efeitos do concurso;
 c) Quando todas as propostas, ou a mais conveniente, ofereçam preço total consideravelmente inferior ao valor para efeitos do concurso, e as razões justificativas não sejam suficientemente esclarecedoras;
 d) Quando, tratando-se de propostas condicionadas, ou de projectos ou variantes da autoria dos concorrentes, as condições oferecidas e os projectos ou variantes lhe não convenham;
 e) Quando, por grave circunstância superveniente, tenha de proceder-se à revisão e alteração do projecto posto a concurso;
 f) Quando haja forte presunção de conluio entre os concorrentes, nomeadamente nos termos do n.º 1 do artigo 5.º;
 g) Quando, na sequência de concurso limitado por prévia qualificação, ocorra a situação prevista no n.º 4 do artigo 109.º

A primeira questão que se põe é a de saber quais os poderes do dono da obra, conferidos pelo artigo 96.º, particularmente quando se verifique a situação prevista na alínea f).
A letra da lei não deixa muitas dúvidas: o dono da obra tem o direito de não adjudicar, não tem um dever de não adjudicar. Isto é, o dono da obra exerce um poder discricionário de adjudicar ou de não adjudicar quando se esteja perante uma das situações previstas no artigo 96.º.
Toda a interpretação da lei tem de partir da sua letra, embora não deva cingir-se a esta (n.º 1 do artigo 8.º do Código Civil).
Por outro lado, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2 do artigo 8.º do Código Civil).
Da ratio da lei e de outros elementos de interpretação afigura-se-nos que o sentido da norma coincide com o teor literal, já mencionado, o que também era entendimento da doutrina.
Na verdade, a doutrina portuguesa mais qualificada, quando vigorava o Decreto-Lei n.º 48871, de 19 de Fevereiro de 1969, que estatuía sobre o regime jurídico do contrato de empreitada de obras públicas, também anteriormente vigente em Macau e que foi substituído pelo diploma que estamos a examinar, o Decreto-Lei n.º 74/99/M, considerava que a norma correspondente ao artigo 96.º deste Decreto-Lei n.º 74/99/M, o artigo 92.º daquele Decreto-Lei n.º 48871, atribuía poderes discricionários ao dono da obra de adjudicar ou não a obra3.
Posteriormente, a lei portuguesa mudou de sentido. O Decreto-Lei n.º 235/86, de 18.8 (artigo 95.º) ainda dizia que o dono da obra podia decidir não adjudicar a obra, mas o Decreto-Lei n.º 405/93, de 10 de Dezembro (artigo 99.º) e o Decreto-Lei n.º 59/99, de 2.3 (artigo 107.º), passaram a estatuir que o dono da obra não pode adjudicar a obra, quando se verifiquem determinadas circunstâncias, designadamente quando haja indícios de conluio entre os concorrentes.
Concluindo: o dono da obra exerce um poder discricionário de adjudicar ou de não adjudicar quando se esteja perante uma das situações previstas no artigo 96.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M.

3. A interpretação do n.º 1 do artigo 5.º e da alínea f) do artigo 96.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M
Vejamos qual o sentido do n.º 1 do artigo 5.º e da alínea f) do artigo 96.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M.
Aparentemente, à primeira vista, as normas contradizem-se: no n.º 1 do artigo 5.º diz-se que as propostas são rejeitadas quando existam actos ou acordos susceptíveis de falsear as condições normais de concorrência,
Na alínea f) do artigo 96.º não se impõe ao dono da obra a rejeição das propostas, mas apenas que o dono da obra tem o direito de não adjudicar quando haja forte presunção de conluio entre os concorrentes, o que é substancialmente diverso.
Numa leitura mais fina, há espaço para conciliar as normas, não tendo o intérprete, necessariamente, que concluir pela vigência de uma e pela interpretação revogatória da outra.
E essa leitura é esta:
O n.º 1 do artigo 5.º impõe a rejeição das propostas e candidaturas apresentadas como consequência da prática de actos ou acordos susceptíveis de falsear as condições normais de concorrência.
A alínea f) do artigo 96.º concede ao dono da obra o direito de não adjudicar a empreitada (ou de adjudicar, consoante entenda melhor servir o interesse público) quando haja forte presunção de conluio entre os concorrentes, nomeadamente nos termos do n.º 1 do artigo 5.º.
E onde residem a diferença entre os pressupostos de aplicação das duas normas?
No n.º 1 do artigo 5.º abrangem-se todos os actos ou acordos susceptíveis de falsear as condições normais de concorrência.
A alínea f) do artigo 96.º só abrange uma parte desses acordos, aqueles em que haja conluio entre os concorrentes.
No n.º 1 do artigo 5.º a rejeição das propostas e candidaturas exige prova da prática de actos ou acordos susceptíveis de falsear as condições normais de concorrência.
A alínea f) do artigo 96.º basta-se com uma forte presunção de conluio entre os concorrentes, mas não exige uma prova cabal desse conluio.
Assim, para que a rejeição das propostas seja oponível ao dono da obra tem de estar feita a prova de prática de quaisquer actos ou acordos susceptíveis de falsear as condições normais de concorrência e não apenas de conluio entre os concorrentes.
Para que o dono da obra tenha o direito de adjudicar ou não adjudicar a empreitada, basta haver forte presunção de conluio entre os concorrentes.

4. O caso dos autos
No caso dos autos não vem impugnado o entendimento de que existem actos, subjacentes às propostas dos dois concorrentes em causa, susceptíveis de falsear as condições normais de concorrência, o que integra a previsão do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M.
Donde, as propostas tinham de ser rejeitadas, como decidiu o acórdão recorrido.
É certo que este invocou erradamente o artigo 96.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M, o que é de todo irrelevante, já que o exercício dos poderes previstos no artigo 5.º, n.º 1, é de natureza vinculada, ao contrário dos previstos no artigo 96.º, como vimos.
Não merece provimento o recurso.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pelas recorridas particulares Companhia de Construção de Obras Particulares Zhen Hwa, Limitada e Companhia de Construção e Engenharia Shing Lung Limitada, com taxa de justiça fixada em 3 UC.
Macau, 19 de Outubro de 2018.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa


     1 Recorridas no recurso jurisdicional.
     2 Recorridas no recurso jurisdicional.
     3 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, 10.ª edição, I Volume, p. 603 e 604, SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, Almedina, 1987, p. 698 e segs., MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Lisboa, Almedina, 1980, p. 673, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Concursos e Outros Procedimentos de Adjudicação Administrativa, Coimbra, Almedina, 1998, p. 570. Em sentido contrário, mas isolado no seu entendimento, JORGE ANDRADE DA SILVA, Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, Porto, Athena, 1973, p. 210 e segs.
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