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Processo n.º 77/2018. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorrida: B.
Assunto: Ilações do Tribunal de Segunda Instância sobre a matéria de facto provada.
Data do Acórdão: 21 de Novembro de 2018.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
   I – É lícito ao Tribunal de Segunda Instância, depois de fixada a matéria de facto, fazer a sua interpretação e esclarecimento, bem como extrair as ilações ou conclusões que operem o desenvolvimento dos factos, desde que não os altere.
   II - O Tribunal de Última Instância, atentos os seus poderes de cognição limitados à matéria de direito e, em regra, sem intervenção em matéria de facto, só pode censurar as conclusões ou desenvolvimentos feitos pelo Tribunal de Segunda Instância sobre a matéria de facto fixada, se este infringir o seu limite, tirando conclusões que não correspondam ao seu desenvolvimento lógico.
   
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
B intentou acção declarativa com processo comum ordinário contra A pedindo a sua condenação no pagamento de MOP$1,500.000.00, relativamente ao preço não pago da venda de ½ de uma fracção autónoma para habitação.
Por sentença do Ex.mo Presidente do Tribunal Colectivo, foi a acção julgada improcedente, com o argumento de que se provou que o preço não foi pago na escritura pública de compra e venda nem posteriormente, mas que não se provou que não foi pago antes da escritura.
Recorreu a autora B para o Tribunal de Segunda Instância (TSI) que, por Acórdão de 26 de Abril de 2018, julgou procedente o recurso e condenou a ré A a pagar à autora MOP$1,500.000.00, por ter considerado que das respostas aos quesitos 1.º e 2.º da base instrutória resultava ter-se provado que a ré não pagou o preço da venda.
Recorre, agora, para este Tribunal de Última Instância (TUI) a ré A, alegando que das respostas aos quesitos 1.º e 2.º da base instrutória não resulta ter-se provado que a ré não pagou o preço da venda antes da escritura pública de compra e venda.

II – Os factos
Estão provados os seguintes factos:
Em 18 de Junho de 2015, a Autora instaurou um processo de inventário facultativo no Tribunal Judicial de Base, cujo n.º é CV3-15-0041-CIV, o qual ainda se encontra a aguardar decisão. (alínea A) dos factos assentes, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
O processo de inventário visa tratar a matéria de sucessão hereditária dos bens pertencentes ao autor da sucessão C (doravante designado por “autor da sucessão”) que faleceu em Macau em 22 de Maio de 2015. (alínea B) dos factos assentes, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Após a morte do autor da sucessão, os herdeiros legítimos são apenas o seu cônjuge vivo (Autora) e a sua filha D. (alínea C) dos factos assentes, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Em 20 de Julho de 2015, a Autora foi nomeada cabeça-de-casal do processo de inventário. (alínea D) dos factos assentes, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Em 28 de Outubro de 2015, D e seu cônjuge efectuaram, por escritura pública, o repúdio da herança. (alínea E) dos factos assentes, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Em 9 de Outubro de 1995, o autor da sucessão e a Ré adquiriram em conjunto o direito de propriedade da fracção situada na [Endereço (1)], descrita sob o n.º XXXXX, inscrita na matriz predial da Direcção dos Serviços de Finanças sob o n.º XXXXX, com a inscrição de proprietário sob o n.º XXXX, XXXX e o n.º XXXXXXX (doravante designada por “fracção objecto”), tendo cada um a metade do direito de propriedade desta. (alínea F) dos factos assentes, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Desde a aquisição da metade do direito de propriedade da fracção objecto até agora, a Ré tem residido nela. (alínea G) dos factos assentes, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Em 8 de Maio de 2015, o autor da sucessão transmitiu, mediante escritura pública de compra e venda, a metade do direito de propriedade da fracção que ele possuía para a Ré, o teor da escritura pública vide fls. 30 a 32 dos autos e dá-se aqui por integralmente reproduzido. (alínea H) dos factos assentes, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Da página 1 da aludida escritura pública de compra e venda consta expressamente que a parte vendedora vendeu, livre de quaisquer ónus ou encargos, a metade do direito de propriedade da fracção objecto à Ré, pelo preço de MOP$1.500.000,00 (um milhão e quinhentas patacas). (alínea I) dos factos assentes, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Antes de falecer, o autor da sucessão entregou à ré a fracção objecto para o uso desta. (alínea J) dos factos assentes, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
No acto da celebração da acima referida escritura pública, a ré não efectuou, de imediato, o preço de MOP$1.500.000,00 (um milhão e quinhentas patacas) ao autor da sucessão (resposta ao artigo 1.º da base instrutória, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
Até à data da dedução da acção, a Ré ainda não efectuou voluntariamente o pagamento do preço referido (resposta ao artigo 2.º da base instrutória, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).


III – O Direito

1. Questão a apreciar
Há que conhecer da questão suscitada pela recorrente.


2. Ilações do Tribunal de Segunda Instância sobre a matéria de facto provada
A questão controvertida no processo era a de saber se o autor da sucessão não tinha recebido o valor do preço da venda de ½ de uma fracção autónoma para habitação.
Para tal, a base instrutória constava de dois quesitos:
1.º
No acto da celebração da acima referida escritura pública, a ré não efectuou, de imediato, o preço de MOP$1.500.000,00 (um milhão e quinhentas patacas) ao autor da sucessão?
2.º
Até à data da dedução da acção, a Ré ainda não efectuou voluntariamente o pagamento do preço referido?

Ambos os quesitos receberam a resposta de “provado” pelo Tribunal Colectivo.
A sentença da Ex.ma Presidente do Tribunal Colectivo interpretou os dois factos provados como dando como adquirido que a ré não pagou o preço na data da escritura nem posteriormente, mas que não se provou que o não tenha pago antes da escritura. Por isso e apenas por isso, absolveu a ré do pedido.
Deve dizer-se que não se percebe que, tendo a Ex.ma Presidente do Tribunal Colectivo interpretado os dois factos provados como dando como adquirido que a ré não pagou o preço na data da escritura nem posteriormente, mas que não se provou que o não tenha pago antes da escritura, por que é que, aquando da audiência de discussão e julgamento, não aditou à base instrutória o facto alegado pela autora no artigo 28.º da petição inicial, onde dizia “De facto, antes de falecer, o autor da sucessão nunca recebeu o preço pago pela ré”, ao abrigo da alínea f) do n.º 2 do artigo 553.º do Código de Processo Civil.
Não falta, aliás, quem defenda que mesmo na sentença o juiz deve conhecer da nulidade, determinando a ampliação da base instrutória1.
Neste artigo da petição inicial, a autora alegava que o autor da sucessão nunca tinha recebido o preço, o que abrangia, indiscutivelmente, os factos antes da celebração da escritura pública.
O acórdão recorrido interpretou os dois factos provados como dando como certo que a ré nunca pagou o preço. Por isso e apenas por isso, deu provimento ao recurso e condenou a ré a pagar ao autor MOP$1.500.000,00.
No presente recurso não está em causa nenhuma outra questão. Apenas a de saber se a decisão de facto foi a de que a ré nunca pagou o preço ou se os factos provados são apenas que a ré não pagou o preço na data da escritura nem posteriormente.
Afigura-se-nos que o acórdão recorrido interpretou a matéria de facto como lhe competia, não tendo extravasado, pelo que este TUI tem de aceitar os “factos materiais que o tribunal recorrido considerou provados”, nos termos do n.º 1 do artigo 649.º do Código de Processo Civil.
   Como decidiu este TUI no acórdão de 16 de Maio de 2012, no Processo n.º 20/2012, é lícito ao Tribunal de Segunda Instância, depois de fixada a matéria de facto, fazer a sua interpretação e esclarecimento, bem como extrair as ilações ou conclusões que operem o desenvolvimento dos factos, desde que não os altere. O Tribunal de Última Instância, atentos os seus poderes de cognição limitados à matéria de direito e, em regra, sem intervenção em matéria de facto, só pode censurar as conclusões ou desenvolvimentos feitos pelo Tribunal de Segunda Instância sobre a matéria de facto fixada, se este infringir o seu limite, tirando conclusões que não correspondam ao seu desenvolvimento lógico.
Com o que improcede o recurso.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.

Macau, 21 de Novembro de 2018.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
  
     1 Cf. VIRIATO LIMA, Manual de Direito Processual Civil, Acção Declarativa Comum, Macau, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 3.ª edição, 2018, p. 517, citando ABRANTES GERALDES e PAULA COSTA E SILVA.
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